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4 O TRABALHO EM SAÚDE: AS EXPRESSÕES CONCRETAS DA (DES)

4.1 O município como gestor da força de trabalho em saúde: as peculiaridades

4.1.1 A Estratégia Saúde da Família em Campina Grande: a configuração da

A experiência da implantação da ESF de Campina Grande, em 1994, integraliza as tendências apresentadas, ao incorporar suas primeiras equipes de saúde, através de seleção pública simplificada firmando contratados de trabalho pelo regime celetista com uma força de trabalho para atuar no âmbito do serviço público municipal. Esta vinculação trabalhista, embora formal com carteira assinada e direitos trabalhistas, é indicada como fora dos padrões de exigência de ingresso e vínculo com o serviço público, como preconiza a Constituição Federal de 1988. Com esta conformação trabalhista foram formadas as primeiras equipes básicas compostas inicialmente por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde. A partir de 2001, foram incluídos o cirurgião dentista/odontólogo, o atendente de consultório dentário e o técnico de higiene dental, como integrante da equipe básica.

Seguindo esta nova conformação trabalhista, os contratos de trabalho da ESF passam a se diferenciar do restante dos trabalhadores municipais da saúde. Para a força de trabalho que integra a ESF foi estabelecida uma relação trabalhista baseada num convênio firmado entre a Secretaria de Saúde e as Associações de Moradores e Amigos do Bairro. Este convênio, conforme informações coletas nas entrevistas e no estudo de Farias (2005) foi estabelecido entre a Secretaria de Saúde, o órgão gestor e a Associação de Moradores de Bairro diretamente relacionada ao local no qual seria instalada a equipe de Saúde da Família.

Esta relação trabalhista é descrita por alguns trabalhadores da ESF, que antes do concurso de 2006, tinham seus contratos regulados nos marcos desta modalidade de terceirização na prestação dos serviços de saúde. O depoimento da trabalhadora abaixo confirma o estabelecimento desta modalidade de relação trabalhista.

De 1994 até 2006, com a carteira assinada, que era um convênio entre a Prefeitura de Campina Grande e a Associação de Moradores do Bairro. Então, onde tinha PSF no bairro esse convênio era feito. Então a Associação assinava nossa carteira de trabalho e a prefeitura era quem administrava e gerenciava todo o pagamento, todo dinheiro.

Esta informação demonstra a configuração de um vínculo trabalhista formal, que assegurava direitos trabalhistas previstos na CLT, entretanto evidencia dois aspectos: institui-se uma outra modalidade de vinculação ao serviço público, fora das exigências do Regime Jurídico Único que prevê o ingresso por concurso público e a garantia da estabilidade assegurada a essa forma de vínculo. Outro aspecto é uma apartação entre quem contrata a força de trabalho e quem gerencia financeiramente, politicamente e tecnicamente a força de trabalho. O estabelecimento deste convênio deixa claro que o papel da Associação dos Moradores aparece apenas como um artifício gerencial para “formalizar” este contrato de trabalho, sem manter nenhum controle sobre a gestão do trabalho. No entanto, ela é participe de um processo que terceiriza a prestação dos serviços de saúde através desta nova forma de vinculação da força de trabalho no serviço público municipal.

Institui-se uma forma de vinculação trabalhista que além de ferir os princípios constitucionais do emprego público, contraria também as recomendações do Direito do Trabalho. Nos Enunciados nº 331 e 256 do Tribunal Superior do Trabalho são vedadas a terceirização das atividades fins, bem como a qualquer intermediação de mão de obra que caracterize locação, arrendamento ou aluguel de força de trabalho. Desta forma, a vinculação dos trabalhadores ao serviço municipal de saúde pela via da Associação de Moradores caracteriza-se como uma intermediação de força de trabalho, que para o serviço público foge aos critérios legais de vinculação de seus trabalhadores107.

Caracterizou-se neste sentido uma formalização do vínculo de trabalho para os trabalhadores da ESF, mas inconstitucional para o serviço público, muito embora a EC nº 19 tenha normatizado uma outra possibilidade de vínculo com o serviço público, como apresentamos no terceiro capítulo.

As distorções desta relação trabalhista se evidenciam também fora dos marcos legais. Análises realizadas no estudo de Farias (2005) apresentam alguns

107

De acordo com o documento “Bases normativas e conceituais da política de desprecarização e regularização do trabalho no SUS” (UnB, 2004, p. 13) a contratação pelo poder público deve obedecer aos seguintes critérios legais: ”a contratação deve ser precedida de processo licitatório, nos termos da lei (garantindo a impessoalidade e publicidade do processo); os contratos só podem atuar em funções de apoio (tais como limpeza, segurança, alimentação, etc); não podem ocupar-se de atividades fins peculiares a instituição, de tal modo a não caracterizar uma substituição de funções e de servidores próprios do quadro permanente da instituição (constituem atividades fins[...] os serviços de saúde nos hospitais e ensino nas escolas ou faculdades); os contratos devem estar isentos de subordinação hierárquica aos cargos e empregos próprios da instituição contratante(ou seja, devem responder à estrutura de mando estabelecida pela entidade contratada)”

elementos que desvirtuam esta relação de trabalho formal para a força de trabalho na ESF, evidenciandoalguns complicadores. Vejamos o que relata Farias (2005, p. 51):

Apesar de tal situação representar um avanço em relação à situação quase universal de precarização dos trabalhadores do Saúde da Família no país, ainda se constitui em uma inadequação já que não existe vínculo com o setor público, responsável pela prestação da atenção à saúde, e expõe o trabalhador a ingerências políticas das lideranças comunitárias contratantes.

Isso demonstra que esta relação formal esteve envolvida com situações que potencializavam a desagregação do trabalho em saúde. Como está demonstrado, a intermediação da relação trabalhista por uma entidade que representa uma liderança política no bairro possibilita a ingerência dos interesses políticos locais interferindo nas condutas e práticas das equipes de saúde. Nesta relação trabalhista mais um elemento de conflito se instaura, o confronto dos interesses de lideranças locais com as reais necessidades de saúde identificadas pelas equipes e suas condutas para enfrentá-las.

Dentro desta realidade peculiar da ESF de Campina Grande merece destaque também a situação dos Agentes Comunitários de Saúde. Como relata Farias (2005, p. 51),

Os agentes comunitários de saúde apresentavam situação de extrema precarização sendo considerados bolsistas durante quase nove anos, sem nenhum direito trabalhista.

Este trabalhador foi mantido por um longo período numa situação de extrema precarização sem direitos trabalhistas assegurados. Foi só a partir de julho de 2004, que os ACS foram contratados pela Prefeitura Municipal de Campina Grande, através de um contrato temporário de 2 anos. Segundo Farias(2005), um contrato acordado sobre a promessa de que passariam a ter garantido os direitos previstos na CLT, “o que acabou não ocorrendo em função de atraso no recolhimento de encargos sociais” (FARIAS, 2005, p. 51).

Este fato, segundo Farias (2005), inviabilizou neste período o acesso dos ACS aos benefícios da previdência social. Os ACS passam a ter a carteira assinada, num contrato temporário, que só sofreria modificações em março de 2007, quando o município, em cumprimento à Emenda Constitucional nº 51 de 14 de fevereiro de

2006, efetiva o vínculo trabalhista desses trabalhadores, como veremos com detalhes mais adiante.

Ainda buscando situar alguns elementos que historicizam as formas de gestão do trabalho empreendida no campo da saúde pelo município, apresentamos outra situação peculiar à realidade de Campina Grande que foi a inserção do assistente social às atividades desenvolvidas pelas equipes de saúde.

Como relata o estudo de Vasconcelos (2009), em 1995 as assistentes sociais já estavam desenvolvendo atividades junto a algumas equipes da ESF. No período de 1995-2002, o assistente social integrou as equipes de saúde, embora isto não tenha correspondido ao estabelecendo de um vínculo trabalhista com a Estratégia Saúde da Família. Os profissionais eram vinculados à Prefeitura Municipal de Campina Grande e foram cedidos para prestar serviço na ESF, com condições salariais e carga horária diferenciada do restante da equipe. Isso significa dizer, que esses profissionais percebiam salários abaixo da média dos trabalhadores de nível superior da ESF e que sua carga horária era distribuída entre as atividades das equipes de saúde e outras atividades que envolviam o seu vínculo trabalhista com o município.

Embora sob essas condições de trabalho, as ações do Serviço Social passam a ter uma relevância reconhecida pelas equipes de saúde. Isto articulou forças numa luta pela sua inserção formal na ESF que se concretizou em 2002, com a incorporação de 26 assistentes sociais através de seleção pública simplificada passando estes a atuarem nas 50 equipes de saúde que existiam na época. Esse grupo de profissionais passa a integrar a equipe de saúde sem que o Ministério da Saúde repasse verba para sua remuneração, instituindo uma contrapartida da gestão municipal para a dinamização e qualificação da ESF. Nos estudos de Farias (2005) e Vasconcelos (2009), a inserção do assistente social foi resultado de um longo processo de luta dos profissionais, mas também reflete a decisão política de valorizar as ações de promoção da saúde, desta forma potencializando as ações de educação em saúde.

Esses elementos apresentados retratam aspectos da gestão do trabalho no âmbito municipal que se manteve até meados dos anos 2006. É uma realidade que sinaliza a ocorrência de relações de trabalho com trajetórias diferenciadas para os trabalhadores de saúde que integram a ESF de Campina Grande. Alguns vivenciaram por quase 12 anos, uma vinculação trabalhista mediada pelas

Associações de Moradores do Bairro sem estabelecer vínculo formal com o serviço público, a exemplo da equipe mínima. Outros, como os ACS, vivenciaram a extrema precarização, como bolsista federal, prestador de serviços do município, alguns inclusive advindos do PACS108, estando nesta relação trabalhista desde 1991, sem

amparo legal e proteção social garantida a um trabalhador do serviço público. Por outro lado, os assistentes sociais, que inicialmente incorporam-se de forma parcial, sem vínculo direto e posteriormente integram a forma de relação trabalhista mantida com os outros trabalhadores de nível superior.

Este quadro revela a concretização das diretrizes da reforma gerencial iniciada nos anos noventa por FHC. Manteve-se para o setor público de saúde uma direção focalizada centrada num modelo assistencial que operacionalizou um “Sistema de Entrada e Controle” através das ações básicas. Nesta lógica, a ESF, pela sua crescente expansão109, foi o mecanismo de concretização desta proposta. Por intermédio da ESF também foi possível concretizar os mecanismos de racionalização dos custos com a força de trabalho. A composição das equipes de saúde segue uma lógica de “composição mínima”, em que os trabalhadores com menor remuneração aparecem em maior número, como os ACS. É estabelecido para cada equipe de saúde que faça um cobertura em torno de 600 a 1.000 famílias, que estejam envolvidos no mínimo 6 ACS. E como vimos, são os ACS os trabalhadores que sofrem os maiores efeitos do trabalho desregulamentado na saúde e que vivenciam as formas mais agudas da precarização do trabalho em saúde.

Em nossas referências, a recuperação de aspectos da gestão do trabalho da ESF de Campina Grande, até os anos 2006, evidencia fortes traços de uma desregulamentação do trabalho que acompanha as tendências indicadas em nossas análises teóricas construídas anteriormente. A ESF possibilitou uma ampliação do mercado de trabalho em saúde no município, mas também acompanhada pela flexibilização das relações de trabalho no setor público de saúde, por meio da manutenção de diferentes vínculos trabalhistas.

108 Alguns agentes comunitários de saúde já trabalhavam no PACS, desde 1991, quando foram implantadas as primeiras equipes deste programa no município de Campina Grande.

109 Segundo o Ministério da Saúde, em notícia divulgada no portal da saúde em 04/05/07, as equipes de Saúde da Família já atingem 5110 municípios, representando 92% dos municípios brasileiros. Sua expansão é evidente quando entre dezembro de 2002 e março de 2007, o número de equipes aumentou de 16.700 para 27.146 equipes. Isto significa uma ampliação da cobertura populacional de 54,9 milhões para mais de 86 milhões de pessoas.

Isto significa que o gestor municipal do SUS vivenciou também a retração do quadro de pessoal permanente para implementar as ações de saúde e isto tem repercussões graves como, a perda da memória institucional, o comprometimento da continuidade de ações que são estruturantes para o sistema público de saúde, além do impacto na qualidade do atendimento.

Com base nessas informações, consideramos que a experiência da ESF de Campina Grande, até 2006, revela um processo contraditório de regulamentação das relações de trabalho, evidenciando uma ausência de política de gestão do trabalho no âmbito do SUS comprometendo a proteção social ao trabalho no serviço público. A gestão municipal adotou ao longo da expansão da ESF dos anos 1994 – 2003, a estratégia de incorporar sua força de trabalho, através de seleção pública110, com contratos de trabalho firmados com as Associações de Moradores do município, desta forma, caracterizando-os como “contratos precários” para o serviço público.

Mesmo as ações previstas e recomendadas pelo Governo Lula em seu Programa DesprecarizaSUS, a partir de 2003, não dão sinais concretos de efetivação na realidade de Campina Grande. A gestão do trabalho no âmbito municipal passou longe da negociação coletiva, da qualificação permanente da força de trabalho e da formulação de um Plano de Cargos, Carreira e Salários.

As informações referentes à gestão do trabalho em saúde no município demonstram a especificidade que esta realidade apresenta, quando implanta e expande um programa estratégico no campo da saúde com uma força de trabalho, que mantém relações de trabalho flexíveis e precárias.

4.1.2 Novos parâmetros para a regulamentação do trabalho na ESF: algumas