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A força de trabalho no campo da saúde e as requisições da flexibilização do

2 A NOVA ERA DO SETOR SERVIÇOS: OS FIOS QUE TECEM A

3.4. A (des) regulamentação do trabalho: a Reforma Gerencial e suas novas

3.4.1 A força de trabalho no campo da saúde e as requisições da flexibilização do

Como já apontamos, os serviços públicos de saúde assumem uma significância dentro da Reforma Gerencial e a força de trabalho inserida no setor incorpora o processo de desregulamentação do trabalho. No decorrer das primeiras décadas dos anos 2000 a tendência reformista permanece no campo da saúde. O governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva iniciado em 2003 não concretiza nenhuma ação que reconduza o viés político da contra-reforma empreendida nos anos noventa.

No que se refere especificamente à gestão do trabalho no campo do serviço público de saúde, a iniciativa governamental dá um passo à frente em relação à gestão anterior a partir do momento que reconhece a situação de precarização do trabalho no setor saúde. As preocupações que envolvem a desregulamentação do trabalho na saúde emergem, a partir de uma agudização da precarização do trabalho que atinge do médico ao agente comunitário de saúde e que tem uma expressão crescente no final dos anos noventa.

Nesta direção, medidas pontuais foram assumidas pelo Ministério da Saúde a partir de 2003, a exemplo da proposta do Programa DesprecarizaSUS, que teve como foco central a regularização dos vínculos de trabalho. Este programa teve como marco importante o Seminário Nacional sobre a Política de Desprecarização das Relações de Trabalho no SUS (2003), no qual ficou explícito um discurso de

combate à precarização do trabalho tendo como referência a crítica a gestão do trabalho imposta pela Reforma Gerencial de FHC.

O relatório deste seminário registra uma análise conjuntural que localiza a origem da precarização como herança do governo anterior, quando afirma que:

Ao longo dos anos 90, passou-se a adotar no SUS a política da flexibilização e da precarização das relações de trabalho, adotando diversas modalidades de vinculação. Tal política preconizada pelo Governo Federal acabou sendo seguida em boa parte dos estados e municípios, provocando um enorme processo de precarização do trabalho no SUS (BRASIL, 2003, p. 9).

Com isso, aponta como conseqüência dessa lógica a instauração do atual quadro de precarização no SUS. Neste relatório também está indicado que um grande número de profissionais do setor público de saúde estejam precarizados e, mesmo sem ter dados concretos, estimam que aproximadamente 800 mil trabalhadores estejam sob relações de trabalho precárias, o que equivale a 40% da força de trabalho inserida no setor (BRASIL, 2003, p. 9).

O relatório baliza diante desse quadro um conjunto de estratégias para enfrentar a precarização do trabalho no SUS e constitui um Comitê Nacional Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS (Portaria nº 2430 de 23/12/2003) tendo como meta elaborar uma política de gestão que elimine os vínculos precários de trabalho na saúde. Dentre suas competências estão, apoiar e estimular a criação de Comitês Estaduais e Municipais de desprecarização do trabalho; propor mecanismos de financiamento pelo governo federal que possibilitem as formas legais de relações de trabalho; e indicar formas legais de contratação tendo em conta a política de preservação do emprego e renda dos ocupados no setor.

O que se concretizou foi que essas e outras medidas indicadas para o Comitê não apresentaram resultados efetivos e teve repercussões ínfimas para os Estados e municípios, os principais gestores da força de trabalho na saúde. Os seus efeitos não tem expressão frente ao crescimento da precarização do trabalho no setor pela via da ampliação da flexibilização das relações de trabalho no setor público.

Como demonstra o estudo de Nogueira (1996), a questão da desregulamentação do trabalho na saúde está relacionada à dimensão que

determinadas modalidades de contratos de trabalho assumem na composição da força de trabalho do serviço desaúde. Ele afirma que:

A flexibilização na gestão de pessoal no SUS é hoje aceita consensualmente como uma imposição de governabilidade diante da rigidez introduzida pelo Regime Jurídico Único (RJU). Os controles políticos- burocráticos impostos aos concursos e a pouca adaptabilidade das normas de remuneração tanto para profissionais altamente qualificados (de informática, por exemplo) como para pessoal sem qualificação específica(como o agente comunitário de saúde, por exemplo) levam os gestores a buscar soluções mais ágeis que acabam passando por algum tipo de triangulação mediada por uma fundação de apoio, associação comunitária, empresa de serviços, etc (NOGUEIRA, 1996, p.20)

A rigor, nesse quadro se expressa a flexibilização das relações de trabalho e, nos serviços públicos de saúde isto se configura no momento em que a gestão do trabalho deixou de ser sinônimo de administração de pessoal próprio.

Embora seguindo com ações limitadas e pontuais no enfrentamento da desprecarização do trabalho no SUS, o Governo Federal convoca em 2005 a 3ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho. No tocante à gestão do trabalho em saúde, a Conferência possibilita a ampliação do leque de discussão da temática do trabalho em saúde. O debate nos grupos de trabalho avançou porque incorporou as problemáticas que afligem os trabalhadores e suas entidades representativas neste campo como: a precarização dos vínculos de trabalho, os Planos de Carreira, Cargos e Salários, a Negociação do trabalho, o fortalecimento da capacidade gestora dos Estados e municípios e o financiamento da Gestão do trabalho.

A Conferência favoreceu o fortalecimento da luta dos trabalhadores em defesa do cumprimento da NOB/RH-SUS98 que foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 4 de novembro de 2003, mas que vem encontrando dificuldades de operacionalização, principalmente na gestão do trabalho no âmbito municipal.

O que prevalece é uma relação precária de trabalho que é funcional ao modelo de gestão do trabalho adotado, no início dos anos 1990 e as iniciativas de desprecarizar o trabalho na saúde não revelaram, até o momento a inversão desta lógica. Muito pelo contrário, o segundo mandato do Governo Lula da Silva, iniciado

98

A NOB/RH-SUS prevê a normatização de uma Política Nacional para Gestão do Trabalho e Educação no SUS. Ela traz orientações fundamentais para organização da gestão do trabalho no campo da saúde. Ela formaliza uma proposta que envolve a instalação de uma Mesa Nacional de Negociação do SUS e a criação da Câmara de Regulação do Trabalho instrumentos fundamentais para a participação democrática dos trabalhos e entidades representativas na condução da gestão do trabalho no campo da saúde.

em 2006, tem como carro chefe para contornar os problemas de gerenciamento no SUS, o Projeto Fundação Estatal.

Em verdade, esse projeto vem coroar o projeto de contra-reforma do Estado empreendido pelo Governo Lula quando reedita o viés de privatização das instituições públicas, bem ao gosto do ideário neoliberal. O Projeto Fundação Estatal emerge, como constam nos documentos oficiais, da eminente necessidade de dotar o Governo de agilidade e eficácia no atendimento das demandas sociais (BRASIL, 2007). “A essência da FUNDAÇÃO ESTATAL é aperfeiçoar a gestão dos serviços públicos e melhorar o atendimento do Estado em áreas prioritariamente sociais” (BRASIL, 2007, p. 3). Com esse discurso, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, assume a propositura de que as Fundações Estatais representam a alternativa de gestão pública com maior autonomia, profissionalização e eficiência.

Esta proposta está representada no Projeto de Lei Complementar nº 92/2007 que tramita no Congresso Federal e que inclui entre outros aspectos, a redefinição da gestão da força de trabalho nos serviços públicos, um dos pontos chave da proposta99. Propõe regulamentar a Emenda Constitucional nº 19/1998 que, como vimos, atingiu frontalmente os trabalhadores públicos e formalizou novos parâmetros de regulamentação do trabalho para os serviços públicos. Seguindo a mesma lógica da Reforma Gerencial de FHC, a gestão da força de trabalho assume lugar de destaque, mas agora travestida de um novo elemento: “eliminar a precarização do trabalho” (BRASIL, 2007, p.9).

Diante da agudização da crise do gerenciamento dos serviços de saúde, principalmente dos hospitais públicos, a proposta da Fundação Estatal é assumida como a alternativa para o setor saúde. Recai sobre os trabalhadores da saúde os efeitos mais negativos desta proposta. Como destaca Granemann (2006, p. 46) o Projeto Fundação Estatal “ao reduzir a ação do Estado para o trabalho o amplia como horizonte de atuação do capital”, desta forma, sendo diretamente prejudicial aos trabalhadores.

99O projeto das Fundações Estatais de Direito Privado, foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2008 por duas comissões, a do Trabalho Administração e Serviço Público e a de Constituição e Justiça. O regime de tramitação é de prioridade e já no inicio de 2009 deve esta pronto para exame no Plenário da Câmara Federal e segue depois para o Senado. Alguns estados da federação já caminham na frente desta aprovação, criando Fundações Estatais dentro do campo da saúde no formato já recomendado na proposta a exemplo dos Estados da Bahia, Acre Pernambuco e Rio de Janeiro. Este Projeto de Lei que cria Fundações Estatais com personalidade jurídica de direito privado, também é recomendado para desenvolverem atividades nas áreas da educação, assistência social, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, desporto, comunicação social, entre outras.

Podemos apontar três aspectos desta proposta que notabilizam um descompasso da gestão do trabalho no serviço público com o que está previsto pela Constituição de 1988 e assegurado pelo Regime Jurídico Único. O primeiro está relacionado à forma de contratação a ser mantida pelas Fundações que será pelo regime de CLT e com seleção por meio de concurso público. A particularidade está na manutenção do concurso, mas sem a obrigatoriedade da estabilidade no trabalho. Como alerta Granemann (2006, p.46), “parece-nos que as tão louvadas ‘regras de mercado’ aplicam-se às obrigações para a força de trabalho, mas não aos seus direitos”. Dentro dos parâmetros da CLT, poder de contratar é poder de demitir. Seguindo esta lógica, a Fundação Estatal tem a pretensa intenção de manter um quadro de trabalhadores qualificados e com melhores salários.

O segundo aspecto diz respeito à formação do quadro de pessoal, pois cada Fundação terá seu próprio quadro, com plano de carreira, emprego e salários. Isso tem repercussões diretas sobre a organização da força de trabalho no setor saúde, que vai agudizar a fragmentação dos trabalhadores e fragilizar ainda mais as lutas, as negociações e acordos coletivos tão buscados no campo da saúde.

O último aspecto é destacado por Granemann (2006), quando alerta que a remuneração da força de trabalho será subordinada a um Contrato de Gestão que cada Fundação Estatal deve estabelecer com o próprio Estado e com outros agentes do mercado. Desta forma, o próprio Estado mantém-se como o grande financiador desta nova forma de gerenciamento. A centralização da proposta retoma a lógica racionalizadora da economia dos custos com a força de trabalho.

Em síntese, a Fundação Estatal reincorpora para a gestão do trabalho o mesmo formato das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), das Organizações Sociais (OS) e das Fundações de Apoio, que representam a estratégia de privatizar o bem público. A força de trabalho, a prestação dos serviços e o acesso aos usuários são sempre o alvo privilegiado, quando o Estado busca a eficiência e eficácia do serviço público, através de sua investida privatizante.

O setor saúde assume a área de maior visibilidade desta proposta que já é realidade principalmente nos Estados da Bahia e Rio de Janeiro. Seu maior foco de resistência é o Conselho Nacional de Saúde que vem qualificando o debate e articulando forças com as organizações dos trabalhadores para enfrentar mais esta investida de desestruturação do SUS.

O conteúdo da proposta da Fundação Estatal revela a clara noção de que as políticas sociais, como analisa Granemann (2006), estão sendo empreendidas nos moldes análogos aos serviços privados. Esta é mais uma faceta da contra-reforma do Estado que tem implicações significativas sobre a gestão da força de trabalho na saúde. No atual contexto, o projeto da Fundação Estatal representa um patamar de regulamentação do trabalho na saúde que revela o processo efetivo da flexibilização do trabalho no setor público. É possível que estejamos presenciando uma outra etapa da desregulamentação do trabalho na saúde, ou o estabelecimento de novos parâmetros para a gestão do trabalho nos serviços públicos de saúde.

Nossa intenção é que os elementos da realidade nos auxiliem nas reflexões e análises que explicitam as particularidades da desregulamentação do trabalho na Estratégia Saúde da Família. Este é o nosso próximo desafio.

4 O TRABALHO EM SAÚDE: AS EXPRESSÕES CONCRETAS DA (DES)