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Os fios que tecem a flexibilização e precarização do trabalho no serviço de

4 O TRABALHO EM SAÚDE: AS EXPRESSÕES CONCRETAS DA (DES)

4.3 Os fios que tecem a flexibilização e precarização do trabalho no serviço de

Saúde da Família

A construção dos argumentos que envolvem a flexibilização e precarização do trabalho no serviço de saúde se apóiam, neste momento, nas evidências empíricas reveladas na experiência da ESF de Campina Grande/PB. Os elementos da realidade expressos no cotidiano do trabalho das equipes de saúde

ajudaram a delinear a síntese do que estamos indicando como nova conformação da força de trabalho em saúde e constituem-se como referência para analisar novas e antigas requisições para atuação da força de trabalho no campo da saúde.

As mudanças indicadas no campo dos serviços de saúde que apresentamos no segundo capítulo deste estudo, revelam as características do trabalho nesses serviços redesenhando o perfil de suas atividades e as particularidades do trabalho em saúde. A análise documental registrada no terceiro capítulo indica novas bases de regulamentação para o trabalho nos serviços públicos e isso interfere diretamente nos serviços de saúde e na força de trabalho contratada no âmbito municipal. A partir dos argumentos analisados no decorrer deste estudo, propomos estabelecer, neste momento, uma mediação com as informações empíricas da pesquisa retratando a real conformação do trabalho em saúde e os rebatimentos sobre esta força de trabalho das atuais exigências de adequação dos serviços de saúde a uma lógica mercantil.

4.3.1. A particularidade do processo de trabalho

É na dinâmica do processo de trabalho que se revela um traço característico, peculiar ao trabalho em saúde. É na efetivação desse processo de trabalho que se concretiza a relação imprescindível entre trabalhador e usuário. É nela que se processa a potencialidade de intervenção e interação numa determinada situação ou atividade, e que tem como condição fundamental a centralidade do trabalho humano na efetivação das ações de saúde.

Hoje o processo de produção de serviços de saúde, esteja ele relacionado à atenção básica ou não, passa como vimos, a assumir uma nova modelagem. Ele incorpora os avanços técnico-científicos de procedimentos, equipamentos e medicamentos à utilização intensiva do fator trabalho, o que significa modificações nas formas de organização do trabalho e na própria natureza do trabalho. Mesmo as ações de saúde de menor complexidade, como as da ESF não passam ilesas a este movimento mais geral.

As formas de organização do trabalho e a natureza do trabalho mantêm as características gerais dos serviços de saúde, mas na ESF apresentam uma conotação diferenciada que se coaduna com as diretrizes impostas por um modelo

de saúde pautado na contenção de gastos e na economia e desvalorização de sua força de trabalho. Neste sentido, o trabalho na ESF apresenta algumas particularidades.

A proposta de reorganização das práticas de saúde requeridas para a ESF tem na sua operacionalização uma equipe básica de saúde, ou mínima, como lembra Merhy (1997). É uma configuração de equipe de saúde que para responder a uma “cesta básica” de serviços integra uma composição mínima de profissionais para atender a complexa e diversificada demanda da população115. Nesta direção, estrutura-se uma equipe básica de saúde com características de racionalização dos custos com a força de trabalho. Nesta conformação, a força de trabalho assume um conjunto de ações que lhes são requisitadas exigindo a reorganização do seu processo de trabalho.

A organização do processo de trabalho na atividade da ESF tem como referência duas dimensões: um processo de trabalho da equipe, que corresponde à organização e planejamento das atividades integralizando os processos de trabalho de cada trabalhador e; o processo de trabalho pensado e projetado por cada trabalhador, a partir da sua especificidade profissional.

Para esta conformação do processo de trabalho da equipe de saúde são requisitadas um conjunto de ações que correspondem a: conhecer a realidade das famílias com destaque para as características sociais, demográficas e epidemiológicas; identificar os problemas de saúde e as situações de risco da população adscrita; prestar assistência integral com ênfase na promoção da saúde; elaborar, com a participação da população usuária, um plano local para enfrentamento dos problemas relacionados com o processo saúde doença e; resolver, através da referência e contra-referência os principais problemas detectados na área de abrangência (BRASIL, 1996, p. 14).

A partir destas atribuições indicadas para as equipes é possível perceber que existem novas requisições colocadas para os trabalhadores de saúde que exigem um perfil de um profissional habilitado para trabalhar com um enfoque na prevenção e promoção a saúde. Há uma requisição clara de um trabalhador que supere o enfoque biomédico e incorpore à sua ação processos educativos que

115 Como vimos esta equipe é formada prioritariamente por médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e ACS. Também integram a essa equipe, ainda de forma parcial, o cirurgião dentista, o ACD e o assistente social.

redimensionem as práticas centradas na doença. Isso fica evidente quando é requisitado como base de atuação para todos os componentes da equipe de saúde atividades como: visitas domiciliares, acompanhamento de internação domiciliar e participação em grupos comunitários.

A forma de organização do processo trabalho na equipe da ESF denota uma peculiaridade, pois articula uma ação referenciada na equipe mas, também preserva uma atribuição específica para cada trabalhador. É a dinâmica do processo de trabalho que se dá no cotidiano dos trabalhadores de saúde, que poderá revelar uma recondução das práticas de saúde bem como, a emergência de novas exigências e competências para esse trabalhador. Este será o caminho para revelar a conformação do processo de trabalho na ESF e seus indicativos de precarização. Na direção dessa reflexão recuperamos as atribuições indicadas pelo Ministério da Saúde para cada componente da equipe e estabelecemos uma relação com os processos de trabalho efetivamente realizados pelos (as) trabalhadores (as) entrevistados (as).

Ao médico é requisitado atender a todos os componentes da família, independente de sexo ou idade, o que exige uma formação generalista. Deve, segundo o protocolo do Ministério da Saúde (BRASIL, 1996), executar ações de assistência à criança, idoso, ao adulto, ao adolescente, à mulher e ao trabalhador, devendo prestar assistência a pequenas cirurgias ambulatoriais e os primeiros cuidados em urgências; valorizar a relação médico-paciente como parte do processo terapêutico; executar ações básicas de vigilância epidemiológica e sanitária e; participar do processo de programação e planejamento das ações e da organização do processo de trabalho da unidade de saúde.

Efetivamente na realidade da ESF, foi possível observar que ao descrever o processo de trabalho médico é visível a relação estreita com o processo de trabalho da equipe, mas esta relação revela os primeiros indicativos de uma fragmentação das ações e da centralização no foco curativo e da quebra da integralidade no atendimento. Vem se configurando um processo de trabalho centrado na doença, numa ação direta e individualizada do profissional.

No momento em que questionamos como o processo de trabalho está organizado e qual a atividade mais requisitada para o trabalho do médico as respostas revelam os indicativos referidos acima:

A consulta, consulta, consulta...

Tem o atendimento médico, o da enfermeira e o atendimento da auxiliar de enfermagem. Isso tudo existe: o atendimento na unidade, na maior parte do tempo. Existe o atendimento no domicílio, um paciente que não pode vir [...] aí a gente vai atrás fazer a busca.

Mas as atividades educativas, sinceramente, está mais no papel do que na prática. Que seriam as atividades em grupo, de sala de espera e que aqui a gente não tem feito. Não tem feito realmente, o grupo tem sido pra entrega de medicação basicamente.

Aqui eu acho que estou fazendo muito o papel antigo. Eu não sei se é porque aqui a população é mais carente, adoece mais, aí você tem que correr atrás de curar, não tem tempo pra trabalhar a prevenção. Eu como médica, de certa forma, entrego mais a prevenção para a enfermagem. É lógico que eu também faço. Mas na outra equipe onde eu trabalhava antes, eu trabalhava mais a promoção e prevenção, o médico participava bem. Aqui eu fico mais com a parte curativa.

Esses argumentos denotam que o processo de trabalho médico, e também dos demais trabalhadores como veremos adiante, é determinado também pela forma de organização dos serviços e das prioridades demandadas pela gestão da política de saúde municipal. É um processo de trabalho que está centrado no atendimento individualizado não diretamente por definição e opção do trabalhador e da equipe, mas tem a ver com as requisições impostas à sua atividade e às condições objetivas para sua execução, esteja ele organizado individual ou coletivamente. Podemos refletir sobre isso, a partir desses depoimentos das médicas.

Eu creio que na gestão anterior os profissionais eram muito estimulados. Trabalhavam muito esse papel importante na prevenção, na promoção. E na gestão atual, é lógico que eles falam... Mas eles exigem mais, a cobrança maior é no atendimento ao que está doente. [...]

Mesmo não tendo aquela demanda espontânea exagerada, você não tem tempo, você não é estimulado a trabalhar como trabalhava antes.

Aqui eu praticamente não tenho tempo de trabalhar a prevenção.

Aqui o grupo tem sido pra entrega de medicação basicamente. O grupo do planejamento familiar aqui é mais difícil por conta das distâncias. Aqui ... a gente trabalha na sede mas tem as Âncoras do Monte Alegre, do Covão e do Olho d’água. A do Monte Alegre segue uma área de assentamento que é grande e muito distante do posto. É muito difícil e desumano dizer: Você só vai pegar anticoncepcional se você for pra reunião. Não tem condições de fazer isso!

Apresenta-se um processo de trabalho determinado pelas formas de organização do trabalho e pelas condições reais de sua execução.