• Nenhum resultado encontrado

A seção anterior cumpriu o objetivo de apresentar características gerais do quadro clínico, prognóstico e implicações das linhas de tratamento em contexto brasileiro. É comum que o contato da população com o transtorno se dê a partir de informativos, matérias e jornais que apresentam dados gerais sobre a prevalência, sintomas e tratamento. Não se discute, entretanto, quais são os instrumentos de diagnóstico ou mesmo o marco histórico em que esse transtorno foi descoberto. Assim, a maioria das pessoas diagnosticadas ou seus familiares ―incorporam‖ o diagnóstico sem, ao menos, tomar conhecimento de sua história.

Acreditamos que tal conhecimento histórico produz reflexões acerca das linhas de tratamento usuais e das estratégias terapêuticas alternativas no acompanhamento e prevenção de pessoas diagnosticadas com o transtorno. Nesse sentido, apresentaremos um breve panorama histórico interpelando avanços e limitações. Antes disso, o próximo tópico abordará como e por que muitos sistemas explicativos (histórias) como os mitos, as filosofias e as ciências, sobrevivem ao longo dos tempos e o que isso tem a ver com a constituição e categorização do Transtorno Bipolar.

3.1 A Arte de explicar: O para quê das coisas precede o porquê das coisas

A era digital informatizada do século XXI possibilita que nos comuniquemos em tempo real numa velocidade inimaginável e que, em poucos segundos, alcancemos milhares e milhares de pessoas. Os recursos tecnológicos e primários à nossa sobrevivência modificaram significativamente desde o surgimento do Homo Sapiens, há cerca de 100 mil anos. Não é difícil comunicar novas ideias, opiniões e informação; todavia, o registro rápido e a formação passada adiante é uma conquista recente em comparação aos milhares de anos de um ambiente primitivo que selecionou as características elementares que nos definem enquanto espécie e que nos possibilita fazer história.

As mudanças nas estações no ano, estações gélidas ou escaldantes, grandes fenômenos da natureza e suas regularidades foram também observadas. Problemas relativos à sobrevivência humana primitiva como a escassez de

recursos, mudanças climáticas, a proteção do grupo, a caça, a domesticação de animais e plantas bem como as estratégias para solucioná-los foram situações que permitiram a emergência de símbolos representativos de grupos. As estratégias e símbolos que favoreceram a sobrevivência do grupo foram cultivados e passados de geração a geração por meio da fala, de pinturas, objetos ou pela escrita: assim começaram os costumes, a História, a Cultura (do latim Colere, que significa ―cultivar plantas‖).

Um significado moderno de Cultura a apresenta como um conjunto de características (padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, hábitos, etc.) que distinguem um grupo social de outro (SANTOS, 2006, p. 29). No entanto, uma outra compreensão materialista sugere que determinantes ambientais, ecológicos e econômicos precedem a formação de estilos de vida (e seus símbolos) diferentes.

Compreendemos que a Cultura nada mais é do que uma série de costumes que de tão úteis e funcionais à sobrevivência de um grupo puderam ser passados à geração seguinte. Quando Jesus Cristo dizia ―dai a César o que é de César‖ o que fazia, fosse sua intenção ou não, era manter um costume que foi útil à sobrevivência de um grupo dominante em sua época. Dos extremos Norte ao Sul do planeta, por mais que alguns pareçam tão inexplicáveis ou estranhos, os costumes são produtos de processos adaptativos, têm ou tiveram uma utilidade prática na vida dos grupos que partilharam destes (ainda que por evidências indiretas).

Marvin Harris, um antropológico da Universidade de Columbia, Nova York, escreveu sobre isso no livro ―Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas: os enigmas da Cultura‖. O livro trata de uma compreensão racional e prática de estilos de vida aparentemente irracionais e inexplicáveis.

Costumes são mantidos ao longo dos séculos na medida em que correspondem à necessidade material daquele povo e que apenas tais costumes poderiam ajudá-lo a sobreviver. Um olhar racional e científico sobre as culturas nos permite entender porque os hindus concebem as vacas como seres sagrados ou porque algumas práticas como o canibalismo, embora estranhe a nós atualmente, por muito tempo estiveram associadas à sobrevivência de grupos primitivos.

Isso nos ajuda a entender porque culturas com um número maior de ferramentas de controle, persuasão e desenvolvimento tecnológico frequentemente se tornam dominantes e se sobrepõem a culturas mais simples, com poucos recursos de defesa e ataque, fragilizados do ponto de vista identitário ou desorganizados. O fato é que a cultura muda a depender do quão vantajoso for mudar diante da escassez ou da fartura de recursos, de bases materiais e também simbólicas à sobrevivência do grupo (HARRIS, 1978).

Entende-se Cultura aqui não apenas enquanto ações observadas publicamente de organização do grupo, mas interpretações, ideias, linhas de pensamento e raciocínio sobre o que acontece ao redor do grupo. Assim, não somente ações observáveis sobrevivem a depender do quão favorável for mantê- las diante de um contexto ambiental específico, mas também interpretações sobre o mundo seguem a mesma lógica de manutenção.

Por exemplo. Para nós, humanos e brasileiros do século XXI, é normal conceber que existem várias pesquisas envolvendo a dissecação animal - a retirada da pele de um animal para que o estudioso observe a anatomia e funcionamento desse corpo. Assim também hoje nos é possível investigar a fisiologia de alguma doença através do exame em órgãos do corpo humano após sua morte. No entanto, por muito tempo essa prática foi inconcebível uma vez que corpo humano era considerado um tempo sagrado, casa de manifestação divina. Todas as observações médicas eram meramente externas e poucos puderam desafiar a autoridade religiosa para estudar o corpo humano vivo ou morto, ainda que não houvesse danos. Foi ao notar as vantagens nesse tipo de estudo para prevenir doenças que a prática passou a ser levada em consideração.

É também comum para nós ouvir palavras como ―Depressão‖, ―Ansiedade‖, ―Transtorno Bipolar‖, ―Pânico‖ entre outras ―doenças mentais‖ como se fossem vírus, agentes externos que penetram o nosso corpo e nos adoecem. É normal ouvir que a Depressão é o ―mal do século‖ XXI, como se a depressão fosse uma coisa estranha que causa nosso mal-estar, como um vírus que causa a gripe. Para algumas pessoas ainda hoje, como por muito tempo se pensou, a subjetividade seria tão complexa e inacessível, por exemplo, quanto uma entidade mágica, mitológica, um ―fantasminha‖ que vive dentro de nós e nós não podemos controlar. Nossa hipótese, muito influenciada por Harris (1978) é que também essas interpretações de algum modo são úteis a manutenção de certos grupos no

domínio do conhecimento.

Hoje, pesquisas em Neurociências e Genética têm evidenciado que nós não só podemos nos antever a distúrbios psicológicos, como podemos prever e modificar o comportamento do consumidor (SILVA, 2015) ou da pessoa com Mal de Alzheimer (LIMA, 2014), por exemplo; isso justamente porque processos históricos e adaptativos favoreceram a legitimidade de conhecermos os mecanismos neurais e contextuais de funcionamento comportamental, mensurando aspectos físicos de nosso agir e pensar.

Tais avanços são possíveis porque, provavelmente, em algum momento da nossa história, elementos ambientais (doenças contagiosas, escassez de recursos de tratamento, por exemplo) e simbólicos (controle sobre outras pessoas, prestígio social) denunciaram riscos ou vantagens à sobrevivência de certos grupos. A partir disso, se tornou plausível acreditar que o corpo e o comportamento humano eram fenômenos como quaisquer outros da natureza, passíveis de ser observados e estudados como tal.

Todavia, se em algum momento histórico o estudo pós mortem foi bloqueado pelo viés religioso (visto como um ser divino e templo sagrado), sobrevivem ainda resquícios de uma compreensão sobrenatural do comportamento humano. Para alguns, não somente a subjetividade humana seria inacessível à investigação científica quanto qualquer tentativa dessa natureza representaria coerção e retirada da liberdade humana. Mas seria a liberdade individual ausente de

determinantes e a subjetividade humana tão obscura assim?

Uma das matrizes do pensamento internalista pode ser observada a partir de certas mudanças estruturais da sociedade ocidental ocorridas ao fim da Idade Média. A noção de um eu que só existe quando responsável por um grupo ou de um eu subordinado a um uma entidade divina é gradualmente substituído pelo eu

selecionador, livre, dotado de razão e por isso interpretativo e reflexivo durante a

transição da Antiguidade cristã e da formação do Estado moderno, como nos lembra Ferreira (2006):

Para entendermos como essa experiência que cinde a nossa existência entre o plano do foro íntimo privado e o das representações públicas, tão natural à nossa vida atual, pode ter sido diferente, basta considerarmos que muitos dos nossos pensamentos e gestos mais íntimos

reservados se desenrolavam na naturalidade da vida cotidiana. […] É

representações públicas vai se constituindo, relegando ao plano íntimo

uma série de atos e pensamentos. Esse processo vai se disseminando paulatinamente para diversos setores sociais, inicialmente estranhos à sociedade de corte, como os próprios grupos burgueses e urbanos. […] Isto conduziria à partilha entre uma intimidade livre a ser cultivada em contraposição a uma obediência pública ao poder monárquico. (FERREIRA, 2006, p. 17, grifo nosso).

Essas transformações fazem pertinente a análise de Harris (1978) uma vez que novamente provam ser a mudança radical de práticas culturais tradicionais, se não produto, reflexo de uma mudança estrutural e material de um povo. A nova concepção de self íntimo e livre foi base para o surgimento de estudos filosóficos posteriores, muitos dos quais forneceriam elementos para a constituição da Psicologia e Psiquiatria do século XIX.

Cumpre destacar que a formação do eu moderno implica na emergência do conceito de subjetividade livre e, de certa forma, responsável ou vilã das mazelas comportamentais observáveis. A individualidade cresce em um clima de ausência

de controle sobre os desígnios mentais interiores ao sujeito. As implicações

práticas dessa concepção podem ser observadas nos saberes cotidianos, onde uma penumbra sobre a origem dos transtornos mentais ainda se faz presente. Além disso, o saber médico impera como o único que pode controlar a expressão de uma mente ou de um cérebro doentio por meio da medicação.

Ora, se por muito tempo os comportamentos de crianças com Autismo, por exemplo, foram atribuídos a causas e agente internos, hoje o que não faltam são sistemas educacionais baseados em evidências que mostram a importância de uma análise científica e ambiental do manejo de comportamentos atípicos. Ainda assim, quando se trata de ―transtornos mentais‖ e ―bipolaridade‖, paira uma atmosfera de medo, de ausência de controle, como se estes transtornos representassem uma falha numa peça da engrenagem mental inacessível, irreparável ou cujo ―conserto‖ se daria primariamente pelo controle orgânico.

Nesse sentido cabe destacar que, se as mudanças estruturais de uma sociedade são também prerrogativas de mudanças de práticas culturais, do mesmo processo derivaria os diferentes modelos explicativos do agir e pensar humano. Portanto, a forma como nomeamos e buscamos apreender o comportamento ao longo da história dependeu, em partes, de aspectos úteis à sobrevivência e manutenção do poder, se não da sociedade, mas de suas classes

dominantes em cada período. Também a prática de pesquisa na Medicina e seu enfoque orgânico provavelmente seria influenciada pelos efeitos práticos de sua intervenção, favorecendo o poderio dessa área na explicação dos transtornos mentais. Essa hipótese, cuja investigação foge do escopo de nosso trabalho, merece especial destaque no desenrolar da seção seguinte.

Desse modo, para compreendermos a pessoa diagnosticada com o Transtorno Bipolar é preciso conhecer não somente sua história em seus aspectos físicos ou o contexto de suas relações interpessoais, mas antes mesmo conhecer a história concreta do que chamamos ―bipolaridade‖. Afinal, seriam os comportamentos da pessoa diagnosticada (quando não induzidos por substâncias) expressão direta de um funcionamento interno desregulado? Ou seriam os comportamentos relações passadas entre o organismo e seu contexto

genético/evolutivo, biológico, físico, interpessoal e cultural?

A compreensão de uma origem biopsicossocial do transtorno bipolar parece ser uma alternativa m a s , na prática, essas duas perguntas produzem protocolos diferentes no manejo do Transtorno Bipolar. Para que isso fique mais claro recorreremos à evolução do diagnóstico.

3.2 De Hipócrates (V a.C.) a Kraepelin (XIX d.C.): Cérebro e Mente em Foco

Esse tópico abordará, de forma sucinta, um panorama histórico dos principais autores que contribuíram para o diagnóstico atual do Transtorno Bipolar. Cumpre relembrar ao leitor de que a classificação diagnóstica na Psiquiatria é produto histórico, é como uma colcha de retalhos confeccionada por diversos ―artesãos‖ ao longo da história. Nossa abordagem não focará nos aspectos políticos e sociais de cada período mas em seus aspectos conceituais e metodológicos na investigação do transtorno mental.

Irritabilidade, fúria, tristeza e melancolia são comportamentos típicos em seres humanos e datados desde os primeiros registros escritos. Descrever o trajeto de classificação do que hoje chamamos de Transtorno Bipolar seria como descrever a história da nossa civilização. Os escritos bíblicos nos contam, por exemplo, de Saul, um rei valente e forte guerreiro. Por vezes sentia-se triste, atormentado, desconfiado de sua capacidade de liderar e guerrear. Ainda que

muitas explicações míticas circundem uma compreensão sobrenatural sobre a melancolia, a História nos conta que mudanças na investigação desse comportamento iniciaram na antiguidade grega.

Hipócrates (460-337 a.C.), fortemente influenciado pela visão materialista de Pitágoras e Alcmaeon de Crotona, foi o primeiro a sistematizar estados corporais de mal estar correlacionando a causas orgânicas, ainda no século V antes de Cristo.

Angst e Marneros (2001, p. 4) nos contam que, antes de Hipócrates, Alcméon tenha sido talvez o primeiro médico grego e cientista a experimentar utilizando cérebros de animais. Ele haveria tentado encontrar canais visuais e auditivos no cérebro ao pressupor que a origem das doenças era fruto de um distúrbio entre fluidos corporais e cerebrais. No entanto, é Hipócrates que estrutura a primeira classificação das chamadas doenças mentais, dividida em melancolia, mania e paranoia (Angst e Marneros, 2001, p. 5). Em sua perspectiva, o cérebro seria um órgão tão especial que, se adoecido, poderia ser responsável por uma série de desordens.

O povo deve saber que o cérebro é a única origem do prazer e da alegria, do riso e das brincadeiras, da tristeza e preocupação, bem como da disforia e do choro. Através do cérebro podemos pensar, ver, ouvir e diferenciar entre sentir-se embaraçado, bem, mal, feliz... Através do cérebro nos tornamos insanos, enraivecidos, desenvolvemos ansiedades e medos, que podem surgir à noite ou durante o dia. Sofremos com insônia, cometemos erros e temos preocupações infundadas, perdemos a capacidade de reconhecer a realidade, nos tornamos apáticos e não podemos participar da vida social... Sofremos todos os mencionados acima através do cérebro quando está doente [...] (HIPPOKRATES, 1897 apud ANGST; MARNEROS, 2001, p. 5, tradução nossa).

Imagine que, antes da observação pelo método clínico, há mais de dois mil anos se discutia a origem das emoções de uma forma mitológica, ou seja, as pessoas atribuíam essas sensações a seres inanimados, sobrenaturais. Nesse sentido, a grande contribuição dos médicos atenienses muito influenciados pelo filósofo Aristóteles foi direcionar a investigação para elementos materiais e naturais, para certas experiências humanas e orgânicas – e submetê-las à verificação empírica. Vê-se então a primeira tentativa de sistematizar esses relatos dentro de um quadro clínico observável e, nesse contexto, comportamentos

presentes no diagnóstico atual de Transtorno Bipolar já eram descritos.

O conceito melancolia (―melan‖: negro; ―cholis‖: bile) traduzia um conjunto de relatos e expressões faciais/corporais de abatimento, insônia, irritabilidade, aversão aos alimentos, desalento e inquietude. Areteu da Capadócia, um dos médicos mais notáveis da Grécia antiga, foi o primeiro a estabelecer um vínculo entre a mania e a melancolia, supondo que ambas seriam faces de uma única doença. Isso significa que dois ―estados‖ emocionais seriam um continuum comportamental, ou seja, oscilavam com o passar do tempo. Em seu livro ―Sobre a Etiologia e Sintomatologia das Doenças Crônicas‖, escreveu:

Penso que a melancolia é o início, e como tal, parte da mania… O desenvolvimento da mania é o resultado da piora da melancolia, em vez de se constituir na mudança para uma doença diferente. […] Na maioria dos melancólicos a tristeza se converte em alegria; e os pacientes então desenvolvem o que se chama de mania. (ARAETEUS apud MARNEROS, 2001, p. 230, tradução nossa).

Como nos conta Marneros (1999), Areteu concedia uma mesma origem aos dois estados, atribuindo-lhe a noção de que eram distúrbios de funções no cérebro e alguns outros órgãos. Para ele, além da mania ser um tipo de ―agravamento‖ da melancolia, embora concordasse que sua origem é biológica, diferenciava a melancolia de uma reação depressiva à perda de algo importante – essa última seria de causa inacessível ao médico.

Embora os termos e as explicações estivessem um tanto distantes da categorização moderna de Psicopatologia, a descrição da literatura médica grega a.C. pode ser considerada a primeira tentativa de sistematização sobre o que compreendemos atualmente por bipolaridade. Além disso, as similaridades e as diferenças entre os conceitos antigos e modernos bem como o envolvimento de estados mistos nas descrições denunciam um caráter híbrido e histórico dos critérios diagnósticos.

A compreensão de doença mental foi alvo de investigação médica até meados do início da era cristã. Nesse período, o Império Romano dominava tudo o que conhecíamos sobre civilização, consagrando um poderio militar, econômico e cultural.

Num momento em que o Cristianismo ainda estava se consolidando e não havia se tornado a religião oficial do Império Romano, Cláudio Galeno de Pérgamo

(130 a.C a 210 d.C.), provavelmente o mais talentoso médico investigativo da época, definiu a melancolia como uma doença crônica primária do cérebro ou secundária para outras doenças (ALCÂNTARA et al, 2003). Chamaremos atenção para o fato de que até esse período tanto a compreensão sobre a natureza dos transtornos mentais quanto o enfoque no funcionamento do cérebro se mantinha conforme a tradição grega.

Após a queda do Império Romano e a consolidação da Igreja Católica durante a Idade Média, os transtornos mentais passaram a ser alvo de investigação de teólogos e readquiram conotação espiritual, sobrenatural, como nos conta Melo (2013)

Obtém grande importância a ideia de vida perfeita, sem pecados, sem aberrações, fiel ao que mandam a Escritura e os escritos dos Santos Padres. Dessa forma, condutas aberrantes, como a considerada insanidade mental, eram explicadas segundo os conceitos metafísicos, destacando-se o de possessão demonista. (MELO, 2013, p. 15).

Embora ainda hoje alguns líderes religiosos atribuam uma conotação demonista ao transtorno mental, suas propostas não passam de exceções. Isso porque com as grandes navegações e o advento de uma filosofia renascentista/iluminista, o século XV e XVI foi marcado pela retomada de objetividade conceitual e uma nova tentativa de categorização do fenômeno mental. Felix Plateur (1536 – 1614) criou o conceito de alienação mental, resgatando o território de estudos da loucura para a medicina (MELO, 2013, p. 27).

Pessoti (1999) nos conta que esse conceito trouxe uma visão mentalista da loucura, não sendo mais atribuída a humores, agentes orgânicos ou substâncias materiais. Agora, a desrazão era explicada a partir da lesão de uma estrutura que não se podia observar, uma entidade interna ao sujeito: a mente. De uma explicação baseada em possessão demoníaca à noção de transtorno mental, a viagem histórica que propusemos até aqui nos parece mais familiar.

Ainda conforme o autor, todas as explicações posteriores estariam focadas em uma busca por causas endógenas (através de processos etiológicos cerebrais) ou na categorização de prejuízos dos aspectos sintomáticos. Vale salientar que

mesmo que as explicações girassem em torno de uma causa orgânica, a natureza dos sintomas era agrupada em torno da noção de entidade, de um produto derivado dessas disfunções fisiológicas: o aparato mental. Ou seja, os sintomas teriam uma natureza orgânica mas as propriedades dessa variável orgânica seriam difíceis de mensurar.

Para que fique mais claro ao leitor, uma característica das explicações mentalistas é que embora admitam uma causa orgânica material, elas são de natureza meramente especulativa: não há métodos ou instrumentos capazes de mensurar os processos ditos mentais, a não ser a dimensão neural, o comportamento observável ao médico ou ao cientista. Embora existam mecanismos de resposta fisiológica a situações ambientais, é discutível até que ponto estas podem ser consideradas causas de comportamentos observáveis ou

Documentos relacionados