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Até agora retratamos o quadro clínico geral e a história na classificação nosológica médica do Transtorno Bipolar. Evidenciamos que, desde o início do método clínico e da medicina grega, a origem do comportamento melancólico e maníaco por muito tempo foi relacionada a uma disfunção orgânica. A partir do século XVIII houve um esforço em classificar os transtornos mentais e delinear com mais precisão critérios diagnósticos. Ainda assim a etiologia do transtorno bipolar permanece, no campo médico psiquiátrico, associado a dimensões orgânicas, seja pela ênfase no estudo do desequilíbrio neuroquímico, seja pela busca de biomarcadores genéticos. Em linhas gerais, o comportamento bipolar permanece sendo estudado na Medicina a partir das modificações e desregulações do organismo.

Cumpre sublinhar que a categorização nosológica representou um avanço na discriminação de padrões de comportamento considerados ―anormais‖ (associados a intenso sofrimento humano). Por outro lado, a dificuldade acentuada em se encontrar a origem de diversos comportamentos nos transtornos sinaliza a necessidade de ir além da categorização topográfica, de seus caracteres epidemiológicos e o enfoque nas alterações fisiológicas do organismo. A ciência psicológica seria, então, uma alternativa viável na compreensão dos transtornos mentais?

4.1 As Primeiras Propostas Metodológicas da Psicologia

Paralela aos estudos médicos na Psiquiatria, a Psicologia nasceu como um campo de pesquisa científica e, posteriormente, se consolidou como profissão. O projeto de Wilhelm Wundt (1832 - 1920), conhecido como o fundador da Psicologia como disciplina científica (ARAÚJO, 2006), visava uma ciência independente de teorias espiritualistas, ligada à pesquisa e a formação de profissionais que utilizassem dos conhecimentos por ela produzidos (FREITAS, 2006, p. 94).

A experiência, a formação de ideias e hábitos já eram fenômenos estudados no campo filosófico; no entanto, foi Wundt que criou o Instituto de Psicologia onde

seria realizado um estudo científico da experiência. Algumas transformações metodológicas no desenvolvimento da Psicologia merecem destaque e são de fundamental importância para compreendermos as seções seguintes.

Edward Titchener (1867 - 1927), um dos mais famosos alunos de Wundt e principal responsável pela divulgação da psicologia nos Estados Unidos da América, acreditava que a Psicologia seria o estudo dos elementos da consciência através da introspecção (FREITAS, 2006, p. 102). Os processos psíquicos conscientes poderiam ser, assim, decompostos e descobertos seus mecanismos associativos subjacentes. No século XIX outros estudos viriam a marcar o desenvolvimento da

Psicologia Norte-Americana, dentre eles a obra do naturalista britânico Charles Robert Darwin (1809 - 1882). Nesse momento

A psicologia entra em cena nos trabalhos de Darwin a partir de sua tentativa de saber como o homem descende de alguma forma preexistente. Se no livro Origem das espécies (1859) não houve menção à genealogia humana, com o sucesso de suas propostas, a pergunta encontra seu encaminhamento vinte e poucos anos depois em A ascendência do homem (1871) e em A expressão das emoções em homens e animais (1872). (PORTUGAL, 2006, p. 111, grifo nosso).

Portugal (2006) comenta, ainda, que essa aproximação entre a origem dos homens e de outros animais causou intenso desconforto fossem aos filósofos ou aos pensadores da Psicologia Inglesa da época. Isso porque

Muito mais do que uma fonte intelectual e documental para a construção de uma psicologia comparada ou uma etologia, a psicologia de Darwin se apresenta como uma crítica aos argumentos que isolam qualitativamente homens e animais. […] O trajeto da comparação tem como ponto de partida o aspecto mental dos homens, passando em seguida a seu aspecto corporal, de onde, dadas as semelhanças, passa-se ao aspecto corporal de alguns animais para, finalmente, alcançarmos seu aspecto mental. A teoria da evolução constitui o solo desse trajeto, já que tanto o aspecto mental quanto o corporal são o

resultado de exigências ambientais. (PORTUGAL, 2006, p. 113, grifo

nosso).

A obra Darwiniana viria a influenciar muitos psicólogos de sua época. Ao final do século XIX e início do século XX um outro grupo de pesquisadores norte- americanos, liderados por William James (1842 – 1910) e John Dewey (1859 –

1962) oficializaram um novo movimento filosófico para o estudo da consciência humana, baseando-se não mais em definir seus elementos ou ―propriedades‖, mas as funções dos processos mentais: o funcionalismo (FERREIRA; GUTMAN, 2006, p. 124). Para esse grupo, ―subjetividade‖ humana deveria ser observada a partir de seu efeito útil sobre o ambiente. Em outras palavras, a consciência ou qualquer que fosse a atividade considerada psíquica deveria ser observada a partir da relação íntima entre organismo e ambiente. Assim, a pergunta que subsidiaria a pesquisa não seria ―Por que ou como um organismo pensa, sente e faz?‖ mas ―Em função de quê ele pensa, sente e faz?‖. Ou seja, ―qual o valor dessa atividade para a sobrevivência desse organismo?‖.

James também é considerado um dos fundadores do Pragmatismo, filosofia que orienta extrair o valor da proposta teórica por meio de seu efeito prático e

observável no ambiente. O pragmatismo seria, então, não uma teoria, mas um

caminho, um método para elaborar uma teoria, cujo critério de verdade seria o quão útil uma teoria é para modificar a realidade social externa ao sujeito.

Essa proposta tem fundamental importância para o desenvolvimento da ciência psicológica norte-americana uma vez que diferente do movimento estruturalista e introspectivo da época, a validade das teorias deveriam ser submetidas à observação empírica por meio da concordância de observadores. As teorias, então, tornar-se-iam instrumentos e não respostas aos enigmas.

A tese aqui defendida é que, dentro desses novos referenciais, a consciência e a experiência não são mais abordáveis no afã analítico de decompô-las em seus elementos mínimos, a fim de distinguir a verdade das ilusões (como almejava a psicologia alemã). Como não

há verdade prévia, mas apenas efeitos de verdade, deve-se tomar a

experiência consciente a partir de seus processos e efeitos. É desta maneira que ela passa a ser considerada a partir da sua função em um duplo sentido: enquanto um processo dinâmico (um ato) e como processo orgânico dotado de finalidade adaptativa. Aqui, a experiência consciente se coloca conforme uma nova questão: para que serve? Como opera? Qual é a sua função biológica? (FERREIRA; GUTMAN, 2006, p. 129, grifo nosso).

A compreensão funcionalista e pragmática orientou estudiosos da Psicologia da época a ―traduzir‖ categorias como pensamento, sentimento, sensação e

percepção em ações a partir do contexto onde seriam observadas como sentir frio, perceber a luz forte, suar diante da exposição solar, sorrir ao chegar a pessoa

amada, etc.

A operacionalização foi, essencialmente, transformar substantivo em verbo: sentimento em sentir, pensamento em pensar, ideia em idealizar. Isso significou abrir espaço para compreender o contexto e o momento em que um comportamento é emitido uma vez que a ação do organismo não pode ser observada isolada da situação que a precedeu. Em síntese, esse novo olhar filosófico formatou um caminho base para o desenvolvimento de estudos experimentais com foco na relação organismo-ambiente, como os desenvolvidos por Edward Lee Thorndike (1874 - 1949), na escola de Columbia (Estados Unidos da América).

Ao passo em que a psicologia norte-americana delineava seus moldes científicos e adentrava, no início do século XX, ao movimento funcionalista, a Europa presenciava o surgimento de uma prática médica que englobaria técnicas muito específicas de tratamento: a Psicanálise.

Pouco antes, na Paris do século XIX, os trabalhos de Jean-Martin Charcot com a Hipnose viriam a influenciar Sigmund Freud a desenvolver uma teoria sobre os sintomas histéricos, a saber,

Charcot sugeria a existência de ―ideias fixas‖ no núcleo destas neuroses e afirmava que os fenômenos somáticos relativos à indução hipnótica se organizavam em fases sucessivas, com a regularidade de um mecanismo de relógio, independentemente de fatores externos, ou seja, o desenrolar das fases histéricas era universal. (MONTEIRO; JACÓ-VILELA, 2006, p. 146).

Freud frequentou os cursos de Charcot entre 1885 e 1886. A partir disso, desconfiou que muitos dos sintomas que surgiam na clínica médica, de etiologia neurológica desconhecida, tinham origens mais psicológicas e sociais que orgânicas. Após cerca de 40 anos de desenvolvimento de seu modelo explicativo a partir da observação clínica (método tradicional na medicina alemã da época), Freud institucionalizou a Psicanálise como intervenção clínica e a teoria psicanalítica sobre o aparelho psíquico (Id, Ego e Superego) até hoje fundamenta muitas abordagens na clínica psicológica.

A abordagem desse trabalho segue uma compreensão de ciência derivada do funcionalismo e pragmatismo norte-americano. No entanto, é importante

destacar que, diferente da tradição funcionalista, muitas abordagens terapêuticas emergiram e ainda é forte a presença da psicanálise, principalmente no Brasil.

Desconfiamos que ainda há disciplinas de graduação em Psicologia no Brasil que apresentam a Psicanálise não a partir de sua relevância histórica nos estudos da personalidade e da psicoterapia, mas como um modelo possível e útil de abordar a psicopatologia na clínica. Surpreende-nos esse fato, uma vez que a construção teórica da Psicanálise, embora se fundamente em aspectos empíricos observáveis do método clínico, não permite sua verificação ou falseabilidade, como afirma Hyman (1977) ao tratar das vantagens e limitações do método clínico de Freud e Jean Piaget:

Em virtude dos métodos naturalistas e clínicos evitarem impor limitações ao que observam, resulta apresentarem dados que são difíceis de reproduzir […]. Justamente porque não há duas crianças que sejam tratadas de maneira

idêntica por Piaget ou seus colegas, torna-se impossível separar as diferenças produzidas pelo método de inquérito das diferenças reais no ponto de vista psicológico da criança. […] Alguns observadores terão muito maior êxito que outros, mas é impossível especificar o porquê. (HYMAN, 1977, p. 67-68).

Isso significa que as propostas de interpretação não podem ser colocadas à prova e partem de categorias metafísicas, inobserváveis ou de difícil mensuração. O próximo tópico abordará, com maior ênfase, algumas notas e limitações da análise psicanalítica sobre a melancolia.

4.2 O Olhar Freudiano da Melancolia: predição ou prescrição?

A partir de leituras prévias, percebemos que o ensaio ―Luto e Melancolia‖ de S. Freud (1917) é o único texto que trata especificamente do funcionamento da melancolia bem como as condições psicológicas necessárias para seu aparecimento. Nossa reflexão se fundamentará em critérios metodológicos sobre a validade preditiva da explicação.

Um dos primeiros elementos que merecem destaque nesse texto é a correlação entre a melancolia e o luto justificada, pelo autor, como correspondentes do quadro geral topográfico dos dois estados. Segundo o autor

―as causas excitantes devido a influências ambientais são, na medida em que podemos discerni-las, as mesmas para ambas as condições‖ (p. 4). A analogia descrita pelo autor, embora apresente alguma corroboração empírica, sua explicação ainda se mantém obscura. Vejamos:

O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele. (FREUD, 1917, p. 2).

A perda de um ente querido pode ser um fator determinante para a apresentação do comportamento melancólico. No entanto, é considerada pelo autor apenas um elemento que interfere na suposta ordem anterior da Psiquê. A perda desse objeto seria apenas uma espécie de ruído que atrapalharia a

homeostase do organismo (sua tendência natural), mas o processo melancólico

não seria explicado por ela, a perda não seria condição sine qua non.

O autor não atribui diretamente a um fenômeno externo ao sujeito a função do sentir melancólico. Ao contrário, insiste em recorrer a um agente interno e a categorias metafísicas para explicá-lo:

É fácil constatar que essa inibição e circunscrisão do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica. […] Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda. No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido. (FREUD, 1917, p. 1).

Freud recorre, em seu texto, a uma análise especulativa e baseada totalmente em preceitos metafísicos, sem qualquer possibilidade de verificação empírica:

Tudo isso só é possível porque as reações expressas em seu comportamento ainda procedem de uma constelação mental de revolta, que, por um certo processo, passou então para o estado esmagado de melancolia. (FREUD, 1917, p. 3).

Sua explicação adquire, do ponto de vista pragmático, uma conotação meramente especulativa sobre a descrição de condições que modificam o fenômeno. Isso simplesmente porque a explicação não é passível de ser colocada a prova, ou seja, essas condições não são manipuláveis, como podemos observar:

O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível — é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido. (FREUD, 1917, p. 1).

De fato: o que se opõe à realidade: o sujeito ou seu ego? O que evoca as lembranças e as expectativas? Quem ou o quê desliga a libido? O que sinaliza um ego livre e desinibido? Claramente, a explicação é também de caráter tautológico, afinal, não fica claro quem ou o que modifica a estrutura psíquica do sujeito. Como podemos verificar isso? As especulações continuam e facilmente somos levados a acreditar que existe um processamento mental independente de nossa vontade ou, essencialmente, de nosso controle.

Observa-se o esforço de Freud em apreender a correspondência entre o que o paciente diz e o que realmente sente, o que nos sinaliza a influência de uma tradição realista11 na interpretação do caso. Recorre a uma explicação que aponta as condições necessárias encontradas supostamente no interior do sujeito:

Existem num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal — uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo —, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pode, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação. (FREUD, 1917, p. 3).

No entanto ainda é difícil conceber válida sua explicação se não é possível mensurar as condições tampouco inferir se é cabível a todas as pessoas que apresentam o comportamento melancólico.

O autor parece ―acertar‖ quanto a descrição topográfica dos comportamentos mas não deixa claro quais são seus determinantes. Ainda que reconheça um evento externo como fator de interferência da frequência comportamental, recorre ao processamento interno o interesse explicativo sobre o que o paciente sente – e não por que o faz a partir do que é possível de mensurar/observar. Nota-se que tais explicações freudianas são apenas hipóteses especulativas e, ainda assim, são sustentadas como ferramentas úteis de interpretação clínica e formulação de protocolo por ele e seguidores até hoje.

Não negamos, obviamente, o valor histórico da Psicanálise Freudiana, inclusive para o campo de estudo da Psicoterapia. Ressaltamos apenas que, devido as limitações preditivas e aplicáveis de sua proposta teórica, o valor da obra freudiana parece manter-se, de fato, limitado ao contexto histórico, filosófico e político da época. Para fins de localização da Psicologia brasileira como Ciência e Profissão, devemos destacar que a investigação e a descrição teórica psicanalítica freudiana baseiam-se em premissas que não nos ajuda a explicar, prever e modificar o comportamento humano, tampouco elaborar protocolos confiáveis para isso.

No próximo capítulo abordaremos como a Análise do Comportamento, uma abordagem científica, funcional e contextual do fenômeno psicológico, tem contribuído na descrição de contingências e comportamentos de pessoas

5 ANÁLISE DO COMPORTAMENTO E PSICOPATOLOGIA: FUNDAMENTOS

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