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A expressão da agressividade como determinação histórica

I. Introdução

3. A expressão da agressividade como determinação histórica

Enquanto a Psicanálise demonstra que a agressividade encontra-se na base dos impulsos mais primitivos, a História comprova que as manifestações agressivas da humanidade transformaram-se gradativamente, sofrendo as influências do processo civilizatório tanto quanto outros comportamentos humanos. Alguns fragmentos da agressividade contemporânea evidenciam esta evolução:

1) Guerra do Golfo, 1990. Uma tecnologia de ponta revoluciona a cobertura jornalística

de guerra, transmitindo imagens de projéteis cortando a noite iraquiana. Na TV, luzes explodem em um escuro longínquo, personagens movem-se aqui e acolá, e a impressão é de que tudo não passa de um jogo de vídeo game. Uma guerra “limpa”, como afirmou o Presidente dos Estados Unidos George Bush (pai), inspirando muitos debates sobre a estranha sensação de irrealidade deste novo cenário bélico, culminando com a provocativa tese do filósofo Jean Baudrillard (1991), de que a Guerra do Golfo não existiu.

2) Setembro de 2001. O mundo assiste estarrecido à queda das torres gêmeas em Nova

York, causada pela explosão de dois aviões seqüestrados por terroristas do grupo Al Qaeda. Um novo tipo de guerra se consolida: de um lado, o terrorismo como tática bélica, com sua imprevisibilidade suicida dirigida a alvos civis; de outro, toda uma infra-estrutura de investigação e controle, somada à instalação de uma base militar no Oriente, supostamente implantada para assegurar a construção de um regime democrático.

3) Agosto de 2004. Fotos publicadas na internet mostram soldados americanos

tripudiando prisioneiros, na penitenciária iraquiana de Abu Ghraib, em clara afronta aos direitos humanos. O líder do grupo, Charles Graner, é condenado em julgamento militar a dez anos de prisão, enquanto sua namorada, Lynndie England, que aparece

nas fotos puxando um preso iraquiano por uma coleira, é sentenciada a cumprir pena de três anos.

4) Dezembro de 2006. O ex-ditador do Iraque, Saddam Hussein é enforcado,

cumprindo sentença do Tribunal Superior Penal do Iraque, que o declarou culpado pela morte de 148 xiitas no povoado de Dujail, em 1982. A cena do enforcamento, filmada em um celular e divulgada na internet, mostra os insultos a Saddam em seus últimos instantes, revelando a expressão incontida da vingança popular, sedenta de uma condenação humilhante.

O que estes fatos têm em comum? Trata-se de modos contemporâneos de expressão da agressividade, em que se observa a presença da tecnologia, a atenção à repercussão pública dos fatos, a preocupação com os direitos humanos e com as causas que motivam os gestos agressivos. Há uma tentativa máxima de contenção dos impulsos destrutivos, modulada pelo olhar crítico e acompanhamento ferrenho da imprensa, pelos princípios que norteiam as relações internacionais e pelos padrões de civilidade construídos ao longo de séculos. Nesse sentido, o prazer trazido pela liberação das emoções mais cruéis torna-se algo inadmissível e mesmo impensável, embora a história da humanidade revele que nem sempre foi assim.

A obra de Elias (1939) é bastante elucidativa nesse sentido, relatando as mudanças graduais na maneira de pensar e agir do homem medieval, que culminaram no desenvolvimento de sentimentos de vergonha e repugnância como reguladores da subjetividade na Idade Moderna. Do comer ao dormir, do sexo à manifestação das necessidades fisiológicas, os comportamentos humanos foram modulados em nome da “civilização”, entendendo-se por “civilizadas” as condutas que distinguiam a nobreza como classe superior.

No período medieval, escarrar e flatular constituíam ações expressas abertamente. As pessoas dormiam nuas e compartilhavam a mesma cama, independentemente das diferenças

de gênero e idade. Comiam com as mãos, urinavam e defecavam na frente umas das outras. O interesse de refinar essas posturas, assegurando modos diferenciados para a corte, não aconteceu impunemente. Ao contrário. Em seu estudo sobre as regras de conduta social, o autor observa um processo de contenção das emoções, com o incentivo ao autocontrole, à transferência de alguns comportamentos para a esfera privada, à sutileza dos gestos, à restrição de certos prazeres, resultantes do processo civilizatório.

Atento às transformações dos costumes, Elias (1939) sublinha o processo pelo qual a agressividade tornou-se também mais inibida enquanto fonte de prazer, domada tanto quanto a sexualidade ou a expressão das funções corporais. Utilizando a figura do guerreiro como ilustração, o autor demonstra que a pilhagem, a caça de homens e de animais faziam parte da vida medieval, sendo percebidas como naturais. Nos hinos de guerra e poemas épicos, nota a apologia ao derramamento do sangue inimigo, com referências explicitas à mutilação de prisioneiros, à devastação das terras, à opressão e à morte dos servos. Crônicas escritas por religiosos registram o prazer da rapinagem, da destruição, das execuções e da tortura aos mais fracos ou mais pobres. Episódios que não são descritos como manifestações patológicas do humano, uma vez que não havia um poder social punitivo:

“O prazer de matar e torturar era grande e socialmente permitido. Até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa maneira” (Elias, 1939, p. 192-193).

Uma outra lógica regia a sociedade medieval, exigindo que uma agressividade mais nítida se manifestasse e fosse vivenciada como um comportamento prazeroso e socialmente útil. É o caso, por exemplo, dos prisioneiros de guerra, assassinados implacavelmente nos confrontos medievais. Segundo Elias (1939), deixá-los vivos implicava o peso de alimentá- los. Devolvê-los significava aumentar o poder e a riqueza do inimigo, pois como súditos estes prisioneiros trabalhariam e lutariam por seus senhores. O mesmo raciocínio aplicava-se à

destruição das plantações e ao entupimento dos poços, justificando o massacre empreendido nas propriedades inimigas.

Saliente-se que a agressividade se manifestava mesmo quando não havia a necessidade da luta. Formados e preparados para a guerra, os cavaleiros, nos raros períodos de paz, mantinham a ilusão das batalhas participando de torneios e caçadas. Na verdade, só conseguiam enfrentar a vida insegura do período medieval porque esqueciam a morte, graças aos estados de excitação proporcionados pela agressividade, configurada como um jogo coletivo, um elemento de sustentação da cultura.

A incerteza quanto ao futuro tornava o homem medieval um entusiasta da vida. Elias (1939) demonstra que ao contrário das preocupações religiosas com a vida após a morte, consideradas típicas da Idade Média, a classe alta secular recomendava aos jovens a busca plena de prazeres, ensejando um modo de subjetivação marcado pela volatilidade. Na Idade Média, aproveitava-se ao máximo as situações de prazer, pois a alegria a qualquer momento poderia se transformar em medo, luta e morte. A beligerância e o ódio estavam por toda a parte, motivando disputas, roubos, raptos, vinganças, batalhas em locais públicos e a formação de milícias particulares nas cidades. Por outro lado, a liberalidade das emoções não era absoluta, de uma espontaneidade desregrada. A margem para expressão social da agressividade era muito maior para a classe guerreira do que para burgueses e camponeses. “É a estrutura da sociedade que exige e gera um padrão específico de controle emocional”, esclarece Elias (1939, p. 199), frisando que as modificações das formas de controle, dos tipos de proibição e a interdependência entre as classes sociais provocam mudanças nos padrões de subjetivação, definindo o nível e os modos possíveis de satisfação dos indivíduos.

De acordo com este estudo do processo civilizatório, sempre que em alguma região crescia o poder central e/ou as pessoas viam-se forçadas a viver em paz, transformavam-se os padrões emocionais, com o aumento da consideração mútua e a inibição dos impulsos de

destrutividade. Quando finalmente verificou-se a organização do Estado, sedimentou-se um controle social mais forte da crueldade e da satisfação pela destruição do outro, tornando as manifestações agressivas mais impessoais, restritas a grupos devidamente legitimados – como a policia ou o exército - limitando o que acontecia na fase medieval como descarga imediata.

Extraída da obra de Elias, a noção de “incivilidade” que vem inspirando as atuais investigações sobre a violência nas escolas (conforme item 1 desta Introdução) explicita uma nova abordagem do fenômeno, denotando a tentativa de elucidar um modo contemporâneo de expressão destrutiva: a agressividade banal, cotidiana e corrosiva que desgasta o potencial de cuidado e confiança entre professores e alunos.

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