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Resgatando a possibilidade de uma intervenção com professores

I. Introdução

6. Foco preventivo: o contexto da pesquisa

6.1 Resgatando a possibilidade de uma intervenção com professores

Em dois anos de participação no projeto de atendimento às crianças agressivas, a pesquisadora tornou-se mais do que uma observadora atenta aos movimentos de alunos e professores no ambiente escolar. Exposta continuamente ao clima da instituição - pertencendo e, ao mesmo tempo, não pertencendo àquele lugar - pôde aguçar sua sensibilidade, deixando- se afetar pelo incômodo e pela estranheza.

O que incomodava? Os gritos dos professores, ouvidos mesmo a portas fechadas. Seu tom de cólera e desalento, que denunciava o quanto não conseguiam se fazer ouvir. Os meninos correndo pelos corredores no horário das aulas, batendo com força nas portas das salas alheias, sumindo escada afora, enlouquecidos. Seus gritos, que ora transmitiam desespero, ora a satisfação da descarga. O torpor que permanecia como resíduo após testemunhar aquelas cenas.

O que gerava estranheza? Os trincos das portas, transformados em pesadas trancas de ferro. Os grupinhos que jogavam na quadra, no período de aulas, sem a presença de qualquer adulto. O clima de aparente normalidade, que a frieza do azulejo nas paredes e a sobriedade das cores ajudavam a manter.

Algo de muito estranho parecia estar acontecendo ali, com aquelas pessoas todas. Adultos e crianças perdidos entre os gritos e a apatia.

Além disso, havia a experiência de atendimento aos meninos, com todas as suas frustrações. O estabelecimento de vínculo mostrava-se um grande desafio, a falta de confiança dos garotos demandava um esforço para a manutenção do trabalho e exigia paciência e dedicação. Quando começavam a se expressar com maior espontaneidade, demonstrando sua necessidade de domínio (precisavam ganhar sempre em todos os jogos e tentavam controlar ou transgredir o enquadre psicoterapêutico), outros impactos contratransferenciais perturbavam a pesquisadora. Dois momentos clínicos vividos com uma determinada criança, porém, reeditaram as sensações até então vividas somente fora da sala de atendimento. O primeiro aconteceu após um ano de ludoterapia, aproximadamente. O segundo, alguns meses depois.

F. era um menininho de 8 anos. Como os demais participantes do projeto, também sofria os efeitos de um tecido familiar esgarçado, vivendo ora sob a guarda paterna, aos cuidados da avó, ora sob o teto do padrasto, aos cuidados da mãe. Tinha duas irmãs menores,

uma delas recém-nascida, filha do novo relacionamento materno. O garotinho já havia ameaçado ferir a irmã caçula com uma tesoura, razão pela qual sua mãe pensara em “interná- lo na Febem”.

Primeiro fragmento de sessão:

Sem motivo aparente, F. quis sair da sala de atendimento. A porta costumava ficar trancada, para evitar a intrusão de outros alunos, que volta e meia passavam pelo corredor e arriscavam mexer no trinco. Sentindo-se desafiada e perdendo a capacidade de pensar, a pesquisadora retirou a chave da porta e indagou à criança por que desejava interromper a sessão. F. não respondeu. A pesquisadora insistiu, propondo à criança entender o que estava acontecendo. Sentindo-se ameaçado, F. encostou-se na porta, pôs as mãos na cabeça, e passou a repetir: “eu quero sair...eu quero sair...”. Não gritava. Seu tom era mais de um desespero que, estranhamente, mesclava furor e amortecimento. O olhar vago de F. tornava a cena aterrorizante, deixando a pesquisadora profundamente culpada e preocupada. A porta foi aberta e a criança se foi.

Segundo fragmento de sessão:

F. estava particularmente mais dominador nesta sessão. Afrontara a pesquisadora, dizendo “vai cag*!”, fato que nunca ocorrera antes. Diante do clima de tensão, foi proposto um jogo de bola como tentativa de não alimentar o ódio que parecia emergir. A criança olhou a pesquisadora com grande desprezo e gritou: “tá com fogo no c*?! tá com fogo no c*?!” Espantada, a pesquisadora procurou ignorar as palavras do menino, renovando a proposta do jogo. “Você tá louca?! Você é louca?!”, gritava e sorria, com o mesmo desprezo, acrescido de uma pitada de sadismo no tom de voz. Perplexa, e ao mesmo tempo, aterrorizada com o desejo de revidar aquelas palavras, a pesquisadora encerrou a sessão.

Triste, ciente do ódio mobilizado na sessão, de uma intensidade até então desconhecida de si mesma, a pesquisadora saiu da escola revendo a cena em seus pensamentos, refletindo sobre o que havia acontecido, buscando o significado daquelas atitudes e ofensas. Ainda sob o efeito da perplexidade, pensou: “F. é uma criança que não se faz gostar”. Chocada com a frase, lembrou-se dos professores. Como seria conviver diariamente, quatro horas por dia, com alguém que despertava sentimentos tão ruins, tão destrutivos? Como tolerar, ou melhor, como sobreviver a isso? Como não revidar?

Winnicott (1947) já alertara sobre o ódio contratransferencial presente no tratamento de pacientes psicóticos e de crianças anti-sociais, extremamente enfermas do ponto de vista do desenvolvimento emocional. Ódio que, se ocultado, não ajuda a sustentar o processo terapêutico. Somente a plena consciência deste sentimento, afirma o autor, pode assegurar ao analista sua expressão objetiva, fornecendo parâmetros para que o paciente também encontre o amor objetivo e acredite sentir-se amado. É neste mesmo artigo que o autor relata uma breve experiência de convívio com um menino de 9 anos, que sempre fugia das instituições onde era internado. O autor o descreve como “a mais encantadora e a mais enlouquecedora das crianças” (p.284), havendo ocasiões em que instigava, nos adultos, o desejo de punição física. Diz Winnicott: “eu teria tido que bater nele se não soubesse tudo a respeito do meu ódio e se não o fizesse saber também” (p.284).

Se para a pesquisadora, com toda sua formação teórica, era difícil reconhecer e manejar o ódio na contrantrasferência, certamente um sofrimento semelhante deveria ser encontrado entre os professores. Eles também deviam precisar de ajuda para digerir os momentos de fúria e aflição, quando percebiam em si ou nas crianças o poder desagregador dos impulsos destrutivos. O projeto de cuidar dos professores precisava, então, ser retomado, ampliando-se o potencial da intervenção proposta no ambiente escolar.

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