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I. Introdução

2. O conceito de agressividade na Psicanálise

2.3 A agressividade em Winnicott

Se o texto kleiniano inspira imagens de um mundo interno vivo, cenário fantástico de lutas, confrontos e alianças que só o tempo poderá estabilizar, a leitura de Winnicott faz pensar o psiquismo como uma realidade em crescimento, um mar de correntes frias e quentes que poderá tornar-se mais ou menos sereno dependendo do clima que o acolhe. Winnicott aprofunda as observações kleinianas ressaltando, como já se antecipou, o aspecto mais primitivo do amor, fonte da agressividade. Salienta ainda – e este deve constituir a marca de seu trabalho clínico e teórico - a importância do ambiente para permitir a expressão dos impulsos agressivos e o desenvolvimento da capacidade de responsabilizar-se pela própria destrutividade. O autor enfatiza o papel da maternagem neste processo (Winnicott, 1939), esclarecendo que na ausência de condições para a formação de um vínculo seguro e estável com a figura materna, a criança não consegue alcançar uma organização interna madura e sofisticada o suficiente para promover a integração das pulsões, tornando-se incapaz de tolerar a angústia e a culpa provocada por sentimentos destrutivos. Passa, então, a necessitar cada vez mais da continência ambiental a fim de controlar seus impulsos.

Uma leitura menos atenta da obra winnicottiana levaria a pensar que esta contenção ambiental baseia-se em um tipo de amor que tudo suporta. Ledo engano. Ao tratar do ódio na contratransferência, Winnicott (1947) reflete sobre a importância de reconhecer e admitir – objetivamente – o ódio despertado por indivíduos bastante enfermos do ponto de vista emocional, incluindo crianças que expressam condutas anti-sociais. Neste trabalho, assinala que geralmente os sentimentos de raiva são ocultados na clínica pelo fato de o analista: 1) ter escolhido esta profissão; 2) ser pago; 3) estar fazendo descobertas no exercício da clínica; 4) ter gratificações imediatas e 5) possuir meios de expressar seu ódio, com o encerramento da sessão. Todavia, somente estando plenamente consciente de seu ódio será possível ao analista expressá-lo objetivamente, mantendo latente seus efeitos destrutivos. Constitui tarefa primordial na análise, portanto, a expressão objetiva do ódio, pois muitas vezes os pacientes estão em busca disso. “Ao que parece, a criança poderá acreditar que é amada somente depois que conseguir sentir-se odiada”, afirma o autor (Winnicott, 1947, p. 283).

Poucos anos depois, Winnicott (1950) desenvolve a idéia de uma agressividade primária, relacionando-a a um estágio do desenvolvimento em que a criança tem propósitos, mas não apresenta preocupação com as conseqüências de seus propósitos. Trata-se de uma etapa de pré-preocupação. No estágio de preocupação (equivalente à descrição kleiniana de posição depressiva, segundo o próprio autor) a integração do ego já permite reconhecer a figura materna como única, presente tanto nos momentos excitados quanto nos intervalos tranqüilos. Há um avanço significativo no desenvolvimento emocional, pois surge a capacidade de sentir culpa. Na saúde, a criança pode suportar esta culpa ao tornar-se capaz de descobrir o anseio por reparar e construir, o que exige um ambiente estável e acolhedor para com suas ofertas, além de atento à satisfação de seus impulsos, favorecendo e sustentando a construção de uma confiança interior. O mundo interno se amplia e se complexifica, de tal

forma que a criança começa a ter de administrá-lo. É neste ponto intermediário do desenvolvimento emocional que o autor localiza quatro fontes explicativas do comportamento agressivo, a saber:

1) a introversão patológica: quando a criança concentra em seu mundo interno os

objetos bons e projeta os maus; cada vez que restabelece o contato com o mundo externo, a criança se vê rodeada de perseguidores, tornando-se agressiva.

2) a identificação com uma experiência que está acima da capacidade de assimilação da

criança: o autor cita como exemplo uma eventual briga entre os pais testemunhada pela criança. Ela fixa em seu mundo interno esta cena, visando ao controle do relacionamento ruim internalizado. Quando este elemento mau assume poder no mundo interno, a criança age irracionalmente.

3) o uso dos elementos maus do meio externo: a criança que internalizou um casal em

briga pode provocar conflitos em sua volta, usando o que há de mau no meio externo como projeção do que estava no seu interior.

4) a preservação do que é sentido como bom: a criança sente necessidade de eliminar

alguma coisa de ruim de seu mundo interior, dramatizando essa expulsão com manifestações agressivas, exposição a acidentes ou mesmo tentativas de suicídio. Se a tarefa de administrar o mundo interno torna-se difícil demais, a tentativa de controle pode ser total, gerando um estado sentido como morte interna. Um quadro maníaco complementar pode vir à tona, impulsionando a criança a manifestar-se violentamente sem qualquer razão aparente.

A dificuldade de administrar o mundo interno configura-se, na teoria winnicottiana, como conseqüência de um ambiente que falhou em algum ponto do desenvolvimento infantil. A partir do conceito de tendência anti-social, Winnicott (1956) postula que a agressividade da criança constitui um pedido, uma reivindicação ao ambiente para que se retorne ao ponto em

que houve privação, a fim de dar curso ao desenvolvimento interrompido. Seja na mentira, no furto ou nos atos destrutivos, a manifestação da tendência anti-social tem início na família, podendo estender-se à escola, à comunidade e ao “país com suas leis” (Winnicott, 1956, p. 132), numa busca incessante de um ambiente capaz de reconhecer aquilo que faltou e de suprir essa lacuna. A manifestação de comportamentos anti-sociais, porém, não ocorre o tempo inteiro, mas nos períodos de esperança, quando o meio transmite à criança elementos de confiabilidade.

A experiência da culpa mostra-se fundamental na perspectiva winnicottiana para a compreensão dos gestos agressivos. Mas não no sentido kleiniano, onde o superego assume características tirânicas, martirizando o ego ainda frágil e imaturo em seu desenvolvimento. O autor (1958) fará referência ao superego como uma importante conquista do amadurecimento psíquico, representando a aquisição infantil de forças de controle, o início de uma conciliação com o ego. Antes disso, os impulsos amorosos carregados de idéias destrutivas promoviam ataques impiedosos, desprovidos de preocupação. A culpa evidenciará um tipo específico de ansiedade, relacionado ao amar e odiar coincidentes, que aparece e pode estabelecer-se como preocupação quando há uma habilidade materna para sustentar a situação de cuidado no tempo, até que a criança possa conciliar o fato de que o objeto de seus ataques é o mesmo que a provê de carinho e conforto, bem como solucionar experiências instintivas, através do impulso de dar ou de reparar. Só assim poderá minimizar a culpa, aproximando-se da ambivalência própria do complexo edípico, aceitando e responsabilizando-se pelo ódio implicado nessa vivência. A culpa intolerável e inexplicável indica “anormalidades do superego” (Winnicott, 1958, p. 23), resultante justamente de falhas nas oportunidades de reparação, devido à ausência de um ambiente capaz de receber tais impulsos. As conseqüências podem aparecer em comportamentos como o roubo, a mentira, a destrutividade ou mesmo a enurese noturna, que correspondem a tentativas inconscientes de gerar mais

culpa, quando não se consegue chegar à origem deste sentimento. Segundo o autor, os atos anti-sociais geram alívio mental por construírem uma situação que explica o sentimento de culpa, aproximando a criança ou o adulto da ambivalência insuportável correspondente à vivência edípica. Os casos mais sérios de atos anti-sociais, por sua vez, evidenciam a perda do sentimento de culpa, que o criminoso tenta desesperada e inutilmente recuperar. Aqui, nota-se uma das características do pensamento winnicottiano, refletindo a busca quase natural do indivíduo de retomar seu desenvolvimento emocional, partindo do ponto onde houve falhas.

Todas essas idéias serão retomadas em artigos posteriores, aprofundando e sedimentando a visão do autor sobre o crescimento emocional relacionado à responsabilidade sobre os impulsos destrutivos, a exemplo do artigo “Agressão, culpa e reparação” (Winnicott, 1960). Neste trabalho, aborda as raízes da atividade construtiva, referindo-se ao processo de integração, isto é, a aceitação e aproveitamento de todos os sentimentos que fazem parte do humano, o que inclui a agressividade. O autor também ressalta que a integração dos impulsos destrutivos e amorosos não termina com a infância. Na realidade, constitui tarefa de toda uma vida.

Ao publicar “Enfoque pessoal da contribuição kleiniana”, o próprio Winnicott (1962) aponta algumas das influências e divergências entre sua concepção de agressividade e àquela apresentada pela autora. Nesse artigo, sublinha a relevância da descoberta da posição depressiva, embora discorde da nomenclatura dada por Klein a essa conquista do desenvolvimento psíquico, por não destacar o salto qualitativo representado em termos de amadurecimento humano: a “aceitação da responsabilidade por toda a destrutividade ligada a viver, à vida instintiva e à raiva à frustração” (Winnicott, 1962, p. 160). Mas aceitar a destrutividade pessoal exige que o indivíduo viva experiências de reparação, não podendo prescindir da presença continuada do objeto de amor. Trata-se da principal contribuição da teoria kleiniana, segundo o autor: a constatação do crescimento vivenciado a partir de um

relacionamento entre duas pessoas – o lactente e a mãe. Todavia, mesmo valorizando o fato de Klein enfocar os elementos destrutivos nas relações objetais, Winnicott considera que a autora não atentou para os aspectos ambientais, negligenciando a perspectiva de que, nos estágios iniciais da vida, não é possível descrever o lactente sem referência à maternagem. Posiciona-se contrariamente ao uso da formulação sobre a pulsão de morte e à associação entre destrutividade e hereditariedade.

A preocupação com o outro, esclarece Winnicott (1963a), depende do quanto os cuidados maternos propiciaram uma experiência de fusão ótima para o bebê, permitindo-lhe a vivência dos impulsos eróticos e agressivos em relação ao mesmo objeto, ao mesmo tempo. O autor postula a existência de duas mães que são sentidas pelo bebê, no dia-a-dia de cuidados para com ele: a mãe-objeto e mãe-ambiente. A mãe-objeto é aquela que detém o objeto parcial que satisfaz as necessidades urgentes, enquanto a mãe-ambiente refere-se àquela que afasta o imprevisível e cuida ativamente da criança, dando-lhe conforto em um sentido mais abrangente. Por isso, é a mãe-ambiente quem recebe a afeição da criança, enquanto a mãe- objeto torna-se alvo da experiência de excitação, onde o objeto é usado implacavelmente, sem levar em conta as conseqüências. A capacidade de envolvimento depende sumamente da integração dessas duas figuras na mente da criança, numa nova experiência de fusão. Para que isso aconteça, a mãe deve permanecer acessível física e psiquicamente, ou seja, sem estar preocupada com outra coisa ao mesmo tempo em que cuida do bebê. A mãe-objeto deve sobreviver ao que Winnicott denomina de “episódios guiados pelo instinto” (1963a, p. 108), que adquiriram a força das fantasias de sadismo oral. A mãe-ambiente, por seu turno, deve continuar empática às necessidades do bebê e, principalmente, aberta e presente para ser agradada, oferecendo o que o autor chama de “oportunidade de dar e de fazer reparação” (1963a, p.109). Para ele, a criança sente angústia pelo temor de consumir a mãe por inteiro, e assim, perdê-la completamente. Entretanto, à medida que sente poder contribuir com algo à

mãe-ambiente, reduz-se sua ansiedade. Confiando cada vez mais na sua capacidade de dar à mãe-ambiente, a criança consegue dominar sua ansiedade, emergindo daí o sentimento de culpa reparatório. Por isso, quanto mais confiável for a mãe-ambiente em termos de disponibilidade, mais audaciosa pode ser a vivência das pulsões do id, libertando a vida pulsional do bebê, dadas as oportunidades que ele vivencia para a reparação. Todo esse processo demanda uma quebra saudável dos cuidados à criança, uma separação progressiva entre mãe e bebê. Com o estabelecimento crescente da confiança no ciclo benigno de ansiedade-capacidade de dar-oportunidade de reparação, o senso de culpa se firma como capacidade de envolvimento. A criança torna-se capaz, então, de assumir a responsabilidade por seus próprios impulsos instintuais.

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