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I. Introdução

4. A expressão da agressividade infantil no ambiente escolar

4.1 O sofrimento dos professores relacionado à agressividade no ambiente escolar

4.1.2 Sofrimento e violência

Sob a ótica do fenômeno da violência nas escolas, deve-se destacar inicialmente a influência do trabalho de Bourdieu e Passeron (1975), que analisa criticamente as estatísticas e a estrutura da escola francesa. Sua pesquisa revela a função ideológica da educação como mecanismo de reprodução social, articulando o sistema escolar à estrutura das relações de classe. Partindo das formas de classificação sancionadas e reproduzidas pela escola, os autores demonstram que toda ação pedagógica constitui uma violência simbólica, uma vez que impõe um arbitrário cultural. Todavia, uma ação pedagógica que reproduz a cultura dominante contribui para reproduzir a estrutura vigente das relações de força, assegurando ao sistema de ensino vigente o monopólio desta violência simbólica. Considerando que a sociedade também se organiza a partir da produção e do consumo de bens simbólicos, a escola transforma-se em um mecanismo de distribuição do capital cultural, delimitando os

modos de usufruí-lo. Dessa forma, ela não apenas reflete as desigualdades sociais, mas alimenta estas diferenças, na medida em que sua estrutura é fundamentada em uma transmissão desigual do conhecimento. Trata-se, pois, de uma violência que não é vivida enquanto tal, uma vez que se instala simbolicamente, dissimulando relações de força e impondo significações da cultura dominante como legítimas. Nesse contexto, a violência manifestada pelos adolescentes no ambiente escolar não caracteriza um movimento de ruptura social, mas uma reprodução das violências sofridas em nível simbólico. Segundo a percepção dos autores, tais gestos repetem a lógica da arbitrariedade e não combatem as estruturas de dominação, ilustrando o que os autores denominam de “lei de conservação da violência” (Bourdieu & Passeron, 1975, p. 70).

Compreendendo, porém, a agressividade no meio escolar como resistência a uma violência simbólica marcada pela cultura dominante, muitos estudos foram desenvolvidos na perspectiva de uma crítica combativa ao papel da escola na reprodução das desigualdades sociais. É o caso do estudo de Zanotto (1985), que aponta a existência de uma ação pedagógica que reproduz a divisão capitalista do trabalho, observada na separação entre os que concebem e os que executam, entre os que controlam e os que são controlados no contexto escolar. Esta separação manifesta-se em toda a hierarquia da escola, refletindo-se também na relação professor-aluno. A autora encontra, nas representações de fragmentação e imutabilidade do conhecimento, a pressuposição de que é impossível atuar e transformar essa realidade.

As pesquisas derivadas da chamada “teoria da reprodução” pouco enfatizaram o sofrimento dos professores. Ao contrário, trouxeram angústia e culpa, na medida em que apontaram os professores como os agentes desta violência simbólica, enfocando as práticas autoritárias observadas nos espaços escolares (Moura, 1988). Segundo Koyama (1995), a categoria docente foi bastante criticada – e massacrada – por esta literatura, idealizadora de

um papel democratizante e anti-autoritário a ser assumido em sala de aula, sem ponderar as condições concretas relativas ao exercício da docência, sobretudo na rede pública de ensino. O autor aponta este fato como um dos elementos que contribuíram para o enfraquecimento da autoridade do professor, gerando sofrimento e impotência.

Pereira (1997) também menciona o impasse vivido pelos professores em sua prática educativa, ao afirmar que qualquer pedagogia adotada pelos docentes, por mais libertadora que seja, inevitavelmente encontrar-se-á inserida em uma lógica própria ao modo de produção capitalista. Seu texto carrega uma certa desilusão, apontando o quão equivocada mostra-se a idéia de emancipação das classes populares através da escola, em virtude da função social que rege a mecânica escolar. Com um olhar mais realista sobre o poder docente de transformar a realidade, o autor sugere o desenvolvimento de pesquisas empíricas sobre o sistema educacional brasileiro, a fim de verificar os modos pelos quais se concretizam atualmente os processos reprodutivos.

Como visto anteriormente, os estudos sobre a agressividade no meio escolar têm se reportado cada vez mais ao conceito de incivilidade, baseado na obra de Elias (1939). Utilizada por Charlot e Émim (1997) para a compreensão da violência no meio escolar, a noção de incivilidade não diz respeito às condutas criminosas ou delinqüentes, mas às pequenas e incessantes agressões do cotidiano, as quais vão minando as relações. Trata-se de um olhar diferente daquele verificado entre os estudos sobre o burnout, ao sublinhar a agressividade presente em certos gestos que se mesclam à indisciplina. O conceito permite pensar as microviolências que se acumulam no interior da escola, em resposta a uma tensão que explode em injúrias, rixas, tumultos, brigas.

Para Debarbieux (1998), as incivilidades também podem constituir uma atitude reativa, a expressão de um “amor frustrado por uma escola que não pode manter as promessas igualitárias de inserção” (p. 79). Diferentemente, porém, dos registros de agressividade que

acontecem no pátio do recreio ou nas redondezas imediatas da escola, a “violência antiescolar”, como aponta o autor em outro trabalho (Debarbieux, 1999), é observada no espaço da sala de aula, atingindo maciçamente os professores.

Nesse sentido, o sofrimento dos professores ganha uma conotação mais concreta, resultante de enfrentamentos vividos diretamente na relação com os alunos e das tensões provocadas pelos conflitos observados entre eles. É o que revela Candau (1999) em seu estudo com professores da rede pública, que aponta as agressões físicas e verbais entre os alunos como a modalidade de violência mais freqüente na experiência de trabalho. De acordo com a pesquisa, os professores compreendem esta agressividade como reflexo da violência social.

Buscando conhecer a noção de violência na perspectiva do professor, pesquisa realizada por Lopes (2000) demonstra que a principal fonte de sofrimento mencionada pelos docentes relaciona-se às agressões verbais, incluindo as situações de afrontamento, as negativas e o próprio desrespeito com o docente ou com os colegas de classe. O depoimento de um dos professores entrevistados revela a necessidade de suporte psicoterapêutico: “emocionalmente nós não temos estrutura para agüentar isso aí. Nós não temos apoio emocional para isso...você não tem forças para lutar” (p. 103).

Sposito (2001) demonstra a mudança nos padrões de violência testemunhados pelas escolas, constatando que a partir da década de 90 as pesquisas sobre o tema passaram a enfatizar as agressões interpessoais no ambiente escolar, em detrimento dos atos de furto e depredação, embora estes permaneçam um desafio para a administração escolar. Seu artigo sugere a constituição de uma sociabilidade marcada pela agressividade, refletindo na vida escolar as práticas agressivas banalizadas no interior da família e na rotina da comunidade. A autora aborda a sensação de ameaça permanente – real ou imaginária - que atinge os professores, decorrente da percepção das tensões existentes entre os alunos e seus conflitos

com os adultos. Com medo dos alunos, os professores tendem a clamar por segurança, requisitando policiamento para as unidades escolares, o que traz novos impactos ao círculo de agressividade vivido na instituição.

Cumpre destacar que nem sempre os estudos sobre a violência nas escolas enfocam as vivências e percepções dos professores. Muitas investigações abordam a compreensão dos alunos acerca das práticas agressivas no meio escolar. Mesmo assim, fornecem pistas relevantes para a compreensão do sofrimento dos professores. É o caso do estudo de Camacho (2001) sobre a violência em duas escolas capixabas voltadas ao público de classe média – uma pertencente à rede pública e outra à iniciativa privada – onde se constata um modo de viver construído à revelia da instituição escolar. Segundo a autora, é neste território que se verificam as práticas agressivas. Na escola particular, a agressividade ocorre dentro da sala de aula, na presença dos professores. Por isso mesmo, aparece disfarçada, surgindo como ataques verbais aos alunos diferentes (cultural ou fisicamente), segregação, desmerecimento e desrespeito. Na escola pública, a agressividade é praticada pelos diferentes, que utilizam a violência como reação às vivências de discriminação, liderando intimidações, surras e extorsões nos espaços não alcançados pela vigilância e punição. De um modo ou de outro, o mascaramento da violência nem sempre passa despercebido pelos adultos. A pesquisa mostra que os docentes, em muitas ocasiões, fingem não ver o que está acontecendo entre os alunos e sua omissão contribui para a irrupção súbita de gestos violentos, engendrando situações de difícil manejo.

A pesquisa de Araújo (2001) é um outro exemplo, revelando a surpresa de uma escola de Belo Horizonte ao tomar conhecimento da rivalidade entre alunos de bairros diferentes atendidos pela instituição. A rivalidade não só invade o espaço escolar, como define comportamentos, percepções e estratégias de convivência, configurando-se um elemento de identidade entre os jovens e uma fonte de conflito. Motivos banais levam ao uso da

agressividade, quer pela necessidade de haver uma justificativa (violências sem motivos plausíveis são piores do que aquelas motivadas por alguma razão), quer pela dificuldade de expressar, ao nível da linguagem, as tensões que levaram àquela atitude. Nesse sentido, a agressividade parece constituir uma forma de se proteger dos sentimentos de impotência e fragilidade. Trata-se não de uma reação à instituição escolar, mas de uma demarcação de espaços de poder, materializada em gestos de intimidação aos colegas e professores. A confiança (ou a falta dela) constitui uma problemática fundamental, prejudicando as relações interpessoais dentro e fora da escola.

Placco et al (2002), analisando a representação social de violência para 210 jovens de 11 a 15 anos, constatam que a escola é um dos locais apontados pelos jovens como inseguro (12,4% da amostra). Ressaltam, ainda, a premência de incluir na formação dos professores ações que possam contribuir para a prevenção da violência no ambiente escolar.

Entre as pesquisas que retratam a percepção dos componentes da escola de um modo geral, destaca-se o trabalho de Laterman (2002) com alunos e professores do nível fundamental de duas escolas públicas de Florianópolis, baseada em questionários e indicadores do clima de violência. A autora constata que a incivilidade constitui a forma mais freqüente de violência nas escolas estudadas, nutrindo um sentimento de caos. Os estabelecimentos pesquisados apresentam em seu cotidiano freqüentes agressões verbais e físicas, brincadeiras agressivas, ofensas e humilhações, ameaças entre alunos e entre alunos e educadores, com ameaças de ambos os lados. Em sala de aula, a indisciplina mescla-se com o desrespeito ao professor e do professor, e também com o desrespeito entre colegas. Levantar, andar pela sala, empurrar, jogar objetos, gritar, são atitudes mencionadas nas entrevistas constantemente, descritas como fatos que agridem alunos e docentes. A sensação de desordem permanente, afirmada por professores e alunos, confunde a ação da autoridade, impedindo a

sistematização do trabalho educativo e gerando uma tensão que reforça a sensação de impotência e insegurança no ambiente escolar.

Saliente-se ainda o aumento significativo nos registros de agressividade dirigida contra os professores na escola. Debarbieux e Deuspienne (2003), analisando as estatísticas oficiais na França de 1995 a 1998, observam que apenas 5% dos professores haviam mencionado agressões verbais e físicas durante o primeiro ano do levantamento, contra 37% ao final desse período. Trata-se de um aumento significativo, que leva a refletir sobre o sofrimento decorrente da dificuldade dos professores de manejar as situações de confronto em sala de aula.

Nessa perspectiva, vários estudos revelam os sentimentos dos professores em função da convivência com a agressividade. São pesquisas que não necessariamente utilizam a categoria de incivilidade, mas que enfatizam o desgaste na relação com os alunos. Camps e Vaisberg (2003), por exemplo, detectam sentimentos de impotência e desamparo entre 29 professores de uma escola pública, bem como uma certa persecutoriedade na imagem delineada pelos docentes sobre os alunos. As autoras reconhecem as dificuldades relacionadas ao exercício da profissão na rede pública como fator de sofrimento, indicando a importância de um espaço de escuta para que os docentes possam refletir minimamente sobre sua prática.

Pesquisa desenvolvida por Royer (2003) revela que os docentes mostram-se inábeis perante a emergência de comportamentos problemáticos, recorrendo costumeiramente a uma atitude punitiva, “parecendo não saber como intervir de forma adequada” (p. 60). Demonstra, ainda, que muitos professores tendem a recorrer ao álcool ou a determinadas drogas na tentativa de minimizar o sofrimento e que há uma grande procura por serviços terapêuticos.

Anser, Joly e Vendramini (2003) também abordam a insegurança no manejo dos conflitos em sala de aula, referindo-se a sentimentos de vergonha, rancor e solidão detectados em pesquisas com professores, levando-os a assumir uma postura de rivalidade com os

alunos. Ao investigar a percepção de 127 professores sobre o conceito de violência, as autoras constatam que os docentes relacionam a agressividade no ambiente escolar à violência encontrada na sociedade, de modo mais amplo. Todavia, ao apresentarem os tipos de violência testemunhados no espaço escolar, os professores citam os alunos como agentes dessa violência, eximindo-se de uma participação no sistema de relações que propiciam a expressão da agressividade. Este resultado é interpretado como reflexo de uma indiferença ou de uma inabilidade para agir diante de situações de conflito. Ao mesmo tempo agentes e vítimas dessa violência atribuída aos alunos, os professores parecem “tornar-se reféns dessa batalha de poderes, sobrando-lhes um sentimento de menos-valia, um misto de resignação e impotência perante os efeitos da violência no cotidiano prático” (p. 78).

Os dados são corroborados por Ristum e Bastos (2004), embora as autoras não discutam o significado destes resultados para a relação professor-aluno ou seus reflexos no sofrimento docente. Investigando o conceito de violência de 47 professores das redes pública e privada de ensino fundamental, as autoras verificam que a categoria “violência entre alunos” é a mais citada pelos docentes na caracterização da violência escolar (88,2% dos entrevistados), seguida da “violência do aluno contra o professor” (35% dos entrevistados). No entanto, a categoria “violência de professor para aluno” é bem menos citada entre os docentes, tanto na rede pública (20,7%) quanto na particular (11,1%).

Nesse sentido, os resultados encontrados por Twenlow e Fonagy (2005) mostram-se bastante elucidativos. Um questionário respondido anonimamente por 214 professores de escolas americanas demonstra que a intimidação professor-aluno – expressa em atitudes punitivas, manipuladoras e/ou depreciativas - acontece com maior freqüência nas instituições com maiores índices de suspensão. Os docentes destas escolas relatam que eles mesmos já sofreram experiências de intimidação professor-aluno quando eram estudantes e que trabalharam nos últimos três anos com professores que apresentavam posturas ameaçadoras

em classe. A pesquisa sugere duas hipóteses explicativas: a) a assimilação de uma cultura de violência por parte destes professores ou b) uma predisposição que favorece a permanência destes docentes nas referidas instituições.

Para Gottfredson, Gottfredson, Payne e Gottfredson (2005), é o modelo de gestão adotado pelas instituições de ensino que influencia o clima escolar e, conseqüentemente, os níveis de comportamento delinqüente, vitimização de estudantes e de professores. Nas escolas onde os estudantes reportam que as regras são justas e a disciplina é consistentemente administrada, há menos registros de condutas anti-sociais entre os alunos. Da mesma forma, o apoio institucional, a cooperação mútua, a clareza de objetivos e o comprometimento da equipe docente constituem fatores de proteção às agressões contra professores. Os autores pontuam que embora as escolas façam uso de regulamentos para minimizar problemas de conduta, falta clareza e consistência na administração da agressividade. Além disso, os episódios de conduta anti-social são tratados individualmente, em detrimento do cuidado com a qualidade das interações que favorecem o clima escolar.

De um modo ou de outro, os professores sentem-se despreparados para o manejo da agressividade dos alunos. Conforme observam Boxer, Musher-Eizenman, Dubow, Danner e Heretick (2006), a frustração aumenta a percepção de que o trabalho docente é prejudicado pela agressividade dos estudantes. Da indisciplina à exposição aos gestos violentos e à vitimização verbal, Galand, Lecocq e Philippot (2007) sublinham que a administração dos conflitos em sala impactam os professores muito mais do que delinqüência e agressão física, ocorrências relativamente raras no cotidiano escolar. Demonstram ainda que a percepção da violência na escola está fortemente relacionada aos sintomas de ansiedade, depressão e problemas somáticos relatados pelos professores. Além disso, verificam que o apoio de colegas e da liderança institucional tem efeito direto sobre o bem estar docente, tanto quanto

sobre o nível de engajamento profissional, não tendo evidências de que o sofrimento docente esteja relacionado à idade ou ao tempo de carreira.

Nitidamente, tanto as pesquisas baseadas no estresse quanto os estudos sobre a percepção da violência no ambiente escolar denotam que a agressividade configura um ponto- chave para a compreensão do sofrimento dos professores, muitas vezes atores dos mesmos gestos agressivos dos quais são vítimas. São dados que sugerem a possibilidade de um círculo vicioso de afrontas e retaliações na relação com os alunos, tornando pertinente uma análise da experiência docente no convívio com a hostilidade, a fim de compreender a impotência, o esgotamento e a frustração registrada em tantas investigações.

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