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2. A MODERNIDADE E SUAS IDIOSSINCRASIAS

2.1. A modernidade

2.1.1. A fé na ciência, na razão e no progresso

De acordo com Kumar (2006, p. 107), a concepção naturalista do mundo antigo percebia o tempo como movimentos cíclicos intermináveis com alternância das estações, entre dia e noite, entre nascimento, morte e novo nascimento. Assim, a noção de tempo humana era de um tempo repetitivo e regular.

Posteriormente, segundo o autor, com a ascensão da hegemonia do cristianismo na Idade Média, a concepção cíclica foi derrubada com a atribuição de uma finalidade e significado à história. A fé na providência divina passou a nortear o tempo humano de modo a emergir uma concepção de processo histórico linear para atingir uma finalidade específica sob o comando de Deus, inspirando, desse modo, uma esperança quanto ao futuro.

Já em relação à modernidade, acrescenta Lyon, o afastamento da razão em relação ao mundo medieval e à tradição determinou uma outra crença, a da fé na razão humana, sob o impacto do pensamento iluminista emergente. Todavia, tal fé seria do mesmo tipo da fé da cosmovisão da religião cristã até então em voga. Segundo Goudzwaard1,

A fé no progresso não pode ser fundada apenas no certo conhecimento de que o progresso na civilização ocorreu no passado. Essa fé também exige a convicção de que um progresso semelhante será realizado definitivamente no futuro. “Agora fé”, lemos no Novo Testamento, “é a garantia das coisas que se esperam, a convicção de coisas que não se veem”. Isso também é verdade para a fé no progresso. Neste contexto, J. B Bury observa corretamente que “o progresso da humanidade pertence à mesma ordem de ideias que a providência ou à imortalidade pessoal. É verdade ou é falso e, como essas ideias não podem ser provadas, nem se verdadeiro e nem se falso. São crenças de um ato de fé”. Quando nos perguntamos como essa fé no progresso futuro pode se apresentar em nossa cultura, notamos que fora porque o homem ocidental da época adquiriu uma profunda confiança nas possibilidades de sua própria visão racional e inovação crítica. Presenciamos aqui a procissão triunfal do racionalismo (GOUDZWAARD, 1997, p. 37, aspas do autor)2.

1 O autor usa como referência a passagem da bíblia do livro Hebreus no capítulo 11, verso 1. E se refere também

a BURY, John Bagnell. The idea of progress: an inquiry into its origin and growth. London: Macmillan, 1920.

2 Faith in progress cannot be founded only on the certain knowledge that progress in civilization has occurred in

the past. Such faith also requires the conviction that similar progress will definitily be made in the future. "Now faith", we read in the New Testament, "is the assurance of things hoped for, the conviction of things not seen". That also is true for faith in progress. In this context J. B Bury correctly observes that "Progress of humanity belongs to same order of ideas as Providence or personal immortality. It is true or it is false, and like them it cannot be proved either true or false. Belief in it is an act of faith". When we ask ourselves how this faith in future progress could lodge itself in our culture, we notice first of all that western man at the time acquired a profound confidence

54 Então, referindo-se ao estudo de Goudzwaard, dentre outros autores, Lyon conclui sobre a modernidade que

...com o destaque ao papel da razão e com a depreciação da intervenção divina, foram lançadas as sementes para a variante secular da Providência, a ideia de Progresso. A certeza dos nossos sentidos suplantou a certeza das leis de Deus e preparou o caminho para o surgimento de uma cosmovisão científica moderna. (LYON, 2005, p. 14).

É o que também ressalta Harvey sobre a concepção fundamental da modernidade, um projeto que tem como alvo o progresso, o domínio da natureza e a emancipação humana, planejamento que se desenvolve sob as rédeas da razão.

O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio na própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda humanidade ser reveladas (HARVEY, 2008, p. 23).

Assim, segundo Touraine, a modernidade é uma noção complexa de se definir, mas que possui como característica contundente uma forma de sociedade não mais organizada sob os antigos pressupostos religiosos, de modo a ser livre para buscar o saber científico e delinear seu destino independente de referenciais absolutos, que controlam o agir e subjugam a autonomia humana. Isso é o que estaria levando à expectativa de uma sociedade mais justa, estruturada e com um Estado mais eficiente.

A ideia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada. Não basta que estejam presentes as aplicações tecnológicas da ciência para que se fale de sociedade moderna. É preciso, além disso, que a atividade intelectual seja protegida das propagandas políticas ou das crenças religiosas, que a impersonalidade das leis proteja contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, que as administrações públicas e privadas não sejam os instrumentos de um poder pessoal, que a vida pública e vida privada sejam separadas, assim como devem ser as fortunas privadas do orçamento do Estado ou das empresas.

A ideia de modernidade está, portanto, estreitamente associada à da racionalização. Renunciar a uma é rejeitar a outra (TOURAINE, 1994, p. 18).

in the possiblities of his own rational insight and critical ingenuity. We witness here the triumphal procession of racionalism.

55 Portanto, é possível evidenciar que, a partir dos pilares da razão e do progresso, a modernidade possuiu parâmetros claros em sua concepção, bem como foram transparentes as suas pretensões.

A ideia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões (TOURAINE, 1994, p. 9).

Isso posto, ou seja, feito nítido o ideal de modernidade, devido a sua importância em termos de impacto social e histórico, vale pontuar suas realizações, fenômenos e respectivas consequências, como também destacar os elementos constitutivos da experiência de vida social que dela resultou. De acordo com Lyon,

As realizações da modernidade são extraordinárias. Num período de poucas décadas, começou na Europa uma transformação que alteraria o mundo de forma inédita e irreversível.

[...] rotinas da vida diária alteram-se, por exemplo, quando não precisamos mais de relacionamentos face a face para nos comunicar. Nossas relações sociais se estendem no tempo e no espaço, ligadas por redes de sinais de TV e cabos de fibra óptica. Cada vez mais, fazemos coisas a distância. [...] as atividades podem continuar sem interrupção mesmo com a perda da luz natural. A luz elétrica artificial simplesmente assume o comando.

Mas não são somente as consequências desses desenvolvimentos técnicos que são profundamente sociais; as causas também são. O motor mais evidente que as move é o capitalismo [...] (LYON, 2005, p. 38).

As transformações foram tão intensas que impactavam de modo significativo a vida cotidiana, modificando-a em apenas um relativo período de três gerações, realça o autor. Por exemplo, uma geração se comunica por cartas e utiliza como transporte cavalos e carroças; a seguinte se comunica por telégrafos e utiliza trens a vapor; e a posterior se comunica com telefones e utiliza os automóveis. Conforme Berman,

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham

56 e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização” (BERMAN, 2007, p. 25).

Foram tantas as mudanças na vida social, tão profundas e velozes que Berman detalha a experiência da modernidade como algo paradoxal.

Existe um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 2007, p. 24).