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2. A MODERNIDADE E SUAS IDIOSSINCRASIAS

2.3. As contradições culturais da modernidade

2.3.1. A sociedade pós-industrial e a Era da informação

Conforme Daniel Bell (1977), a sociedade pós-industrial pode ser compreendida a partir da comparação com os predicados das sociedades industriais e pré-industriais. A sociedade pré- industrial possuía uma economia com base agrária, artesanal e comercial, estruturada nos

79 modelos tradicionais na qual o poder em geral está atrelado à propriedade da terra. Segundo Bell, neste tipo de sociedade

[...] a força de trabalho é absorvida, sobretudo, pelas atividades extrativas: mineração, pesca, silvicultura, agricultura. A existência representa, antes de tudo, um jogo contra a natureza. Trabalha-se com a força bruta dos músculos, à moda dos antepassados, e o sentido que cada qual tem do mundo é condicionado pela dependência dos elementos: estações do ano, natureza do solo, quantidade de água. O ritmo da existência é modelado por essas contingências. [...] Por se tratar de um jogo contra a natureza, a produtividade é baixa e a economia fica subordinada às vicissitudes da natureza tangível e das caprichosas flutuações dos preços das matérias-primas na economia mundial. A unidade da vida social é uma extensão da vida doméstica (BELL, 1977, p. 146).

Já por sua vez, na sociedade industrial, o alicerce estava no desenvolvimento científico e tecnológico, utilizado em indústrias de modo a estruturar uma produção em série, manufaturada mecanicamente, padronizada e espacialmente concentrada no mundo urbano, tendo como principal fonte de recursos a natureza. Nessa sociedade, a economia e toda a organização social se constituíam em função do desenvolvimento da indústria e do poder econômico e político, que estavam nas mãos dos capitalistas. Daí a centralidade do capital e do trabalho como estruturantes da sociedade industrial.

Sua existência é um jogo contra a natureza fabricada. O universo tornou-se técnico e racionalizado. A máquina predomina, os ritmos de vida são mecanicamente regulados: o tempo é cronológica, mecânica e uniformemente dividido. A energia substituiu o músculo puro e simples, e fornece a força que constitui a base da produtividade – a arte de produzir mais gastando menos – sendo responsável pela maciça produção de bens [...] As capacitações subdividiram-se com componentes mais simples, e o artesão do passado foi substituído por duas novas figuras: a do engenheiro, responsável pelo planejamento e pelo fluxo do trabalho, e a do operário semiespecializado, o elo humano entre as máquinas – até o momento em que a engenhosidade técnica do engenheiro crie uma nova máquina, que o substitua também (BELL, 1977, p. 147).

Finalmente, conforme o autor, na sociedade pós-industrial se encontra o resultado das diversas modificações que ocorreram após a consolidação das sociedades industriais. Ela é caracterizada pelo crescimento do setor de serviços, em detrimento da manufatura industrial; pela ascensão e multiplicação das tecnologias de informação proporcionadas pelo desenvolvimento da microeletrônica, de modo que o conhecimento e a inovação tornaram-se os alicerces basilares da economia.

80 Uma sociedade pós-industrial tem como base os serviços. Assim, sendo, trata- se de um jogo entre pessoas. O que conta não é a força muscular, ou a energia, e sim a informação. A personalidade central é a do profissional, preparado por sua educação e por seu treinamento para fornecer os tipos de habilidades que vão sendo cada vez mais exigidos numa sociedade pós-industrial (BELL, 1977, p. 148).

Trata-se de uma concepção teórica que é ampla e genérica, mas cuja identificação das dimensões transformadas permite a compreensão objetiva da sociedade.

1. Setor econômico: a mudança de uma economia de produção de bens para uma de serviços;

2.Distribuição ocupacional: a preeminência da classe profissional e técnica; 3. Princípio axial: a centralidade do conhecimento teórico como fonte de informação e de formulação política para a sociedade;

4. Orientação futura: o controle da tecnologia e a distribuição tecnológica; 5. Tomada de decisões: a criação de uma nova “tecnologia intelectual”. (BELL, 1977, p. 28).

Deste modo, tais transformações culminaram numa nova configuração societária, de modo a impactar as questões da distribuição de riqueza, do poder e do status, peças centrais em qualquer sociedade (Bell, 1977, p. 60). A conclusão de Bell é de que, a partir do surgimento dessa nova fonte de criação, de riqueza e de novos determinantes da produção, foi iniciado um novo modo de produção, em que o trabalho e o capital, variáveis basilares da sociedade industrial, foram substituídas pelas variáveis do conhecimento e da informação.

De acordo com Lyon,

[...] as “sociedades avançadas” estavam em movimento para além de uma era histórica que poderia ser descrita como “industrial”. Uma mudança fundamental estava ocorrendo, uma mudança tal que os “princípios axiais” da sociedade estavam sendo cada vez mais concentrados no “conhecimento teórico” e não no “capital e trabalho” (LYON, 2005, p. 60-61, aspas do autor).

Por isso, a noção inicial de sociedade pós-industrial fora reformulada para a de sociedade da informação, mudança realizada tanto por Bell como por outros autores (KUMAR, 2006, p.9). Trata-se de uma sociedade em que as telecomunicações e os computadores seriam decisivos na condução dos intercâmbios econômicos e sociais, principalmente no tocante à produção do conhecimento.

Conforme Kumar (2006, p. 45-74), aludindo à constatação de Bell, só o computador por si só já teria gerado muitas transformações na sociedade industrial, mas foi a união do

81 computador (informática) com o desenvolvimento das comunicações, a televisão, o telefone, a fibra óptica e os satélites, que determinou maior precisão à informação, globalizou a economia e tornou possível o aumento do conhecimento de cunho qualitativo para além do quantitativo. Ademais, destacou Bell que o conhecimento sempre foi fundamental e necessário para qualquer sociedade. Mas a diferença, no caso da sociedade pós-industrial, aconteceu na mudança da natureza do conhecimento em si mesmo.

O que tornou decisivo para a organização das decisões e para a direção das transformações foi a centralidade do conhecimento teórico: a primazia da teoria sobre o empirismo e a codificação do conhecimento em sistemas abstratos de símbolos que, a exemplo de todo sistema axiomático, podem ser utilizados para esclarecer muitas áreas de experiência diferentes e diversas (BELL, 1977, p. 34).

Assim, a sociedade pós-industrial como ambiente da “Era do conhecimento”, mais especificamente, “Era da informação”, se constituiu como uma das mais importantes bases para o início do período que seria designado de pós-modernidade. Isso justamente por causa dessa “primazia do conhecimento teórico” como elemento essencial da informação.

Descobriu-se que a fonte de todas as fontes chama-se informação e que a ciência, assim como qualquer modalidade de conhecimento - nada mais é do que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações. Longe, portanto, de continuar tratando a ciência como fundada na "vida do espírito" ou na "vida divina"; o cenário pós-moderno começa a vê-la como um conjunto de mensagens possível de ser traduzido em "quantidades (bits) de informação" (BARBOSA, 1991, p. ix, aspas do autor).

Portanto, tendo em vista essas mudanças como constituintes de um momento decisivo de evolução da modernidade, “para muitos, a pós-modernidade está para a sociedade pós-industrial como a modernidade para a sociedade industrial, ou seja, a ambiência das dimensões pós- modernas remete necessariamente ao pós-industrialismo” (SÁ, 2006, p.44). Essa associação também é defendida por Lyon (2005, p. 59-83) ao afirmar que a emergência da concepção de sociedade pós-industrial foi fundamental para o debate modernidade-pós-modernidade, mesmo sopesando-se as diferenças de enfoques, teses e aspectos analíticos entre os principais teóricos do pós-industrialismo e seus críticos.

Além do mais, de acordo com Kumar (2006, p. 141), os elementos das principais teorias relacionadas à sociedade pós-industrial, concebidas em diferentes esferas, como as da cultura e da economia, foram incorporados à teoria pós-moderna. Exemplo disso são os elementos da

82 teoria do pós-industrialismo e da sociedade da informação de Daniel Bell e os da teoria do pós- fordismo, dentre outros.

Por isso, para melhor compreender o que será definido por pós-modernidade, cabe ponderar sobre o que foi a dimensão socioeconômica estrutural da sociedade industrial e sua relação com a da sociedade pós-industrial. Nesse prisma, Sá (2006, p.42) ressalta a teoria do fordismo como a concepção estrutural e socioeconômica da modernidade, como sociedade industrial; e as teorias do pós-fordismo e da sociedade da informação, concepções estruturais e socioeconômicas da pós-modernidade, como sociedade pós-industrial.

Em relação ao fordismo, conforme o autor, aludindo a Harvey (2008), a organização produtiva se expande para a estrutura social, intensificando-se ainda mais através da massificação da produção e do consumo. Mas ele também pontua que

[...] foi somente no período após a Segunda Guerra Mundial que o progresso internacional do fordismo ocorreu de forma avassaladora. [...] esta expansão internacional trouxe à tona sinais gritantes de descontentamento, mesmo durante o ápice do sistema. As desigualdades resultantes produziram sérias tensões sociais e fortes movimentos sociais por parte dos excluídos. Estes movimentos circundavam questões de raça, gênero e etnia enquanto fatores determinantes para o acesso ou não ao emprego privilegiado. Essas desigualdades eram particularmente difíceis de se sustentar diante do crescimento das expectativas alimentadas, em parte, por todos os artifícios aplicados à criação de necessidades e à produção de um novo tipo de sociedade de consumo (SÁ, 2006, p. 44).

Já em relação à sociedade da informação, o autor realça que se trata de uma concepção em que se considera que o núcleo das forças produtivas da sociedade foi profundamente transformado pelas tecnologias da informação, tornando-se elementos cruciais para uma nova conformação social nela própria alicerçada. Assim, enquanto a teoria da sociedade da informação concebe uma mudança basilar nas forças produtivas (KUMAR, 2006, p. 45-74), a teoria pós-fordista concebe a composição de novas relações de produção devido à nova estruturação das relações de trabalho e dos sistemas produtivos em bases sociais, econômicas e geográficas completamente diferentes, sendo tal estruturação o resultado das novas tecnologias (KUMAR, 2006, p. 75-104). É o que Harvey (2008, p. 163-184) denominará de transição do capitalismo organizado para o do tipo desorganizado, e da rigidez fordista para uma nova forma de produção e acumulação flexível, conforme as noções do pós-fordismo.

Todos esses conceitos e asserções foram utilizados para analisar as transformações ocorridas após a consolidação da industrialização. Nesse sentido, cabe realçar que:

83 As diferentes teorias do pós-industrialismo – sociedade de informação, pós- fordismo, pós-modernismo – coincidem em muitos pontos. As diferenças são, certamente, mais do que de ênfase, embora reapareçam em todas elas alguns temas e números. A TI, por exemplo, que de certa forma define a ideia relativa à sociedade de informação, é também fundamental para a análise das duas outras teorias. Na globalização encontramos mais um denominador comum. A descentralização e a diversificação figuram com destaque em todas as descrições da nova era.

O que diferencia essas versões, portanto, não é tanto o tipo particular de desenvolvimento que escolhem, mas os parâmetros que usam para analisá- lo (KUMAR, 2006, p. 75-76).

Ora, essas teorias e perspectivas analíticas se concentram sob a estrutura social da contemporaneidade. Elas são importantes porque nos informam como tal estrutura foi constituída e os aspectos basilares de sua dinâmica social. Contudo, os elementos mais relevantes para o nosso enfoque estão na dimensão cultural, como as ações, valores, crenças e ideais dos indivíduos na sociedade. Em relação ao sentido subjetivo de suas ações, a relevância está principalmente no que se refere às tensões supracitadas anteriormente em Nobre (2016, p.159). Desse modo, nos deteremos mais profundamente na dimensão da cultura na medida em que ela elucida como as transformações ocorridas na estrutura social daquele contexto contribuíram para engendrar o hiperindividualismo característico da sociedade contemporânea a partir da pós-modernidade.

2.3.2 A autonomia da esfera cultural e a ascensão do individualismo de ética