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2. A MODERNIDADE E SUAS IDIOSSINCRASIAS

2.2. A teoria weberiana da modernidade

2.2.3. A fragmentação da vida social em esferas autônomas e o politeísmo dos valores

Conforme Weber, devido aos processos de racionalização, de desencantamento do mundo e de secularização, a vida e seu sentido deixaram de ser unívocos ao se libertarem do controle da religião na modernidade. Desse modo, ocorre a diversificação da realidade em diferentes esferas sociais, racionalizando o mundo e cada uma dessas esferas autonomamente. Esse acontecimento foi originado na delimitação da religião em termos de sua relação com o mundo.

Na verdade, quanto mais avançou a racionalização e sublimação da posse exterior e interior das “coisas mundanas” — no sentido mais amplo — tanto mais forte tornou-se a tensão, por parte da religião, pois a racionalização e sublimação consciente das relações do homem com as várias esferas de valores, exteriores e interiores, bem como religiosas e seculares, pressionaram no sentido de tornar consciente a autonomia interior e lícita das esferas individuais, permitindo, com isso, que elas se inclinem para as tensões que permanecem ocultas na relação, originalmente ingênua, com o mundo exterior. Isso resulta, de modo geral, da evolução dos valores do mundo interior e do mundo exterior no sentido do esforço consciente, e da sublimação pelo conhecimento (WEBER, 1982, p. 376-377, grifos e aspas do autor).

Ou seja, se formando como esfera autônoma devidamente delimitada e regida por normas próprias, a religião, a partir de suas tensões com a realidade, determinou os valores do mundo interior e exterior, gerando como resultado a constituição das demais esferas com a mesma dinâmica de racionalização. Assim, este será o cenário descrito pela teoria weberiana da modernidade, uma fragmentação de diferentes esferas constituindo a vida social, esferas autônomas entre si, racionalizadas e dotadas de lógicas e leis de funcionamento internas e inerentes a cada esfera específica. Em Weber esse é o processo responsável pela passagem da sociedade tradicional à sociedade moderna, descrito por Pierucci da seguinte forma:

O desencantamento do mundo pelo monoteísmo ético atravessa como vetor o Ocidente no bojo da milenar dominância cultural de uma imagem de mundo metafísico-religiosa crescentemente unificada e internamente sistematizada, que terminou por se impor como fundamento legítimo da ordem social como um todo. Com o advento da modernidade e a ruptura dos laços tradicionais por uma série de fatores, inclusive no plano cultural e no da personalidade, Weber diagnostica uma importante inflexão no processo de racionalização ocidental: agora é possível conceber a esfera doméstica e a economia, a política e o direito, a vida esfera de valor, ao se racionalizar, se justifica a si mesma: encontra em si sua própria lógica interna – uma legalidade própria [Eigengesetzlich-keit] – que leva a se institucionalizar autonomamente e a se consolidar e se reproduzir socialmente pela formação de seus próprios quadros profissionais, encarregados de garantir precisamente

73 sua autonomia (PIERUCCI, 2005, p. 138).

Assim, Weber caracteriza as diferentes esferas da vida moderna a partir do contraste com a esfera da religião. Ele faz isso especificando não só as peculiaridades da última, mas também das demais, a saber: a esfera econômica, a política, a estética, a erótica e a intelectual (WEBER, 1982, p.379-408).

Desse modo, Nobre (2016) enfatiza que em Weber a imagem do politeísmo dos valores é exatamente essa caracterização da modernidade como um cenário em que a vida está fragmentada em esferas de naturezas diversas e autônomas. Mesmo isso não significando isolamento ou incomunicabilidade entre elas.

Enquanto a imagem do racionalismo de domínio do mundo, faceta clarividente do desencantamento tardio, é a chancela da compactação de um modo de vida técnico, a imagem do politeísmo de valores, ao contrário, realça a fragmentação e incompatibilidade dos fins últimos. Não mais a compreensão de um sentido racionalista hegemônico, mas exatamente a ênfase na dispersão e no desarranjo entre as metas e os sentidos humanos. O desenvolvimento histórico, tal qual processado no Ocidente, veio a revelar que o mundo não carece de sentido, mas, mais precisamente, que o cosmos cultural é caracterizado pela multiplicação de sentidos que, uma vez exacerbados em sua peculiaridade, não se confundem nem se subordinam, ainda que possam apresentar relações de apoio mútuo. (NOBRE, 2016, p. 154).

O autor pontua que Weber identificou o desenvolvimento de cursos de ações racionalizadas conforme as direções, os meios e as estratégicas próprias de cada esfera, sobretudo, no que tange às esferas tipicamente “racionais”, por apresentarem um maior grau de objetivação dos fins em relação aos meios adequados, de modo a compor o que Weber chamou de “racionalismo de domínio do mundo”. São exemplos dessas esferas as que estruturam racionalmente o cotidiano, como o capitalismo, o Estado, o direito e a ciência. Segundo Nobre, a essas Weber atribuiu mais consideração em sua obra, provavelmente, devido a maior importância e impacto delas sobre nossas vidas práticas.

Nobre também salienta que Weber identificou o mesmo em relação às esferas tipicamente “irracionais”, porém essas com racionalizações de características mais valorativas. É o caso das esferas extracotidianas, a erótica e a arte, por exemplo. De modo que há um traço substantivo dos processos racionalizantes desse conjunto, de cunho discursivo e valorativo, contrastante com o conjunto anterior de racionalização de natureza técnica, formal e instrumental.

Assim, enquanto há, por um lado, a hegemonia cotidiana de racionalizações na forma da submissão dos fins – o lucro, o poder, o conhecimento, a ordem legal –, por outro lado, temos as racionalizações do irracional, que se

74 manifestam melhor nos interstícios da cotidianidade, se baseiam mais na valoração e exaltação dos fins – a criação, o gozo. Tem-se posta uma divisão essencial na cultura moderna entre esferas mundanas cotidianas e procedimentais e esferas igualmente mundanas, porém de caráter extracotidiano e valorativo (NOBRE, 2016, p. 156).

Nesse sentido, dois são os aspectos relevantes concernentes ao politeísmo dos valores como marca da sociedade moderna em Max Weber. Primeiramente é o fato de a perda de sentido do mundo e a diversificação de esferas na vida social forçarem o indivíduo a atribuir um sentido subjetivo à realidade. Ou seja, escolher quais serão seus valores dentre os diversos relacionados às diferentes esferas, quais serão adotados e quais rejeitados. Não há outra saída para quem quiser conduzir sua vida conscientemente. Segundo Schluchter,

Antes de tudo é o caráter subjetivo, inextricavelmente ligado à experiência da modernidade desencantada, que forma a experiência especificamente moderna. Pois agora não somos mais escolhidos; nós escolhemos, e cada escolha é acompanhada pela consciência de que também teria sido possível uma outra escolha. Com isso a escolha torna-se autorreflexiva, num sentido radical. [...] a transição para a modernidade é um processo de internalização e de subjetivação, no qual o caminho para dentro tanto mais demora, quanto mais leva para nós mesmos – e não mais para cima, Deus. Só por causa disso a escolha de valores ganha uma importância existencial: meu destino (na cultura) não é objetivamente fixado com antecedência. Forma-se “uma cadeia de decisões últimas”, pela qual, conforme Weber, “como em Platão: a alma escolhe seu próprio destino – quer dizer, o sentido da sua ação e da sua existência” (SCHLUCHTER, 2000, p. 17-18, aspas do autor).

De acordo com o autor, diversamente de em Platão, o desencantamento do mundo religioso e científico destruiu a conexão entre a estrutura interna e a estrutura externa, isto é, entre a estrutura da alma e a estrutura das coisas. Assim, a crença em um universo orientado, em um sentido ético, como nas crenças platônica e cristã, não mais subsiste. Os processos de internalização e subjetivação da modernidade, nesse sentido, encerraram a possibilidade de uma estrutura racional preexistente, ou uma instância de fundamento anterior. Por isso, na modernidade desenvolveu-se uma noção de individualidade que não havia correspondência nas sociedades tradicionais, e as coisas tornaram-se centradas no indivíduo e em sua subjetividade; centradas, portando, no ser humano individual.

Dessa forma, como ser singular e único, a individualidade possibilitou o surgimento de um “eu” com força ativa na sociedade, uma vez que o indivíduo não seria mais uma entidade passiva, determinada por um conjunto de influências externas (GIDDENS, 2002, p.9). Ocorreu, então, o aparecimento da reflexividade na vida social moderna. A ação do indivíduo passou a

75 ter como autorreferência a si própria. Segundo Luhmann (1995, p. 443), esta reflexividade implicaria a autorreferência de um procedimento, distinguindo-se certa diferença no tempo, entre um antes e um depois, de modo que tal diferença seja o que constitui o próprio procedimento de autorreferência. Assim, uma vez manifesto este procedimento, simultaneamente à circulação da consciência num movimento de voltar-se a si mesma, o processo de reflexão, no seu âmbito social, diz respeito ao seu próprio ato de ação (de refletir), no sentido de dar mais conhecimento ao conteúdo elaborado por si mesmo ou de renovar o fluxo do seu próprio procedimento. É o que também pontua Giddens ao realçar a amplitude da reflexividade no mundo moderno:

A reflexividade do eu é contínua, e tudo penetra. A cada momento, ou pelo menos a intervalos regulares, o indivíduo é instado a autointerrogar-se em termos do que está acontecendo. Começando com uma série de perguntas feitas conscientemente, o indivíduo se acostuma a perguntar ‘como posso usar este momento para mudar?’ Nesse sentido a reflexividade pertence a historicidade reflexiva da modernidade, uma forma distinta do monitoramento reflexivo mais geral da ação (GIDDENS, 2002, p.75).

Isso significa que a ação individual na modernidade resultou no que Weber já havia indicado e que Giddens denominou de “referencialidade interna”, ou seja, “circunstância pela qual as relações sociais ou aspectos do mundo natural são organizados reflexivamente em termos de critérios internos” (GIDDENS, 2002, p. 223) voltados para o indivíduo como agente ativo, enquanto “eu” sujeito da ação. Neste caso, os critérios de referência externos ao indivíduo, como as regras de parentesco, os deveres sociais e políticos, a moral religiosa, enfim, as obrigações de natureza tradicional, não têm mais o poder de determinação sobre o indivíduo que outrora tiveram, na pré-modernidade, e somente podem trazer influências que passarão pelo crivo do sujeito em sua individualidade única.

O segundo aspecto importante em relação ao politeísmo dos valores é o fato de que os antagonismos ou as tensões apresentadas entre esferas tenderam potencialmente a se mostrarem e se exacerbarem na proporção em que passaram a asseverar suas finalidades últimas.

Ao ganharem consistência na cultivação histórica, os fins perseguidos nas ações humanas configuram-se como se fossem exclusivos. Ainda que existam em co-presença e possam carregar aspectos comuns alusivos a uma mesma contemporaneidade – assim como firmarem apoios mútuos –, os fins cultivados não mais se confundem ou aceitam relações de subordinação a outras finalidades. Passam, pois, a experimentar um grau notável de nomadismo. Daí a imagem weberiana do “politeísmo de fins” como marca genética da cultura, mas alusiva, de modo especial, à modernidade e seu povoamento por múltiplos cursos de racionalizações que se afiguram como

76 “individualidades históricas”. (NOBRE, 2016, p. 156, aspas do autor).

Desse modo, à medida que as “racionalizações do irracional” vão se tornando significativas, como a criação e o gozo, de modo a se imporem assumidamente e enlevadas de forma consciente, surge um distanciamento ético ou uma repulsa contundente das condutas que se posicionam antagonicamente. Como, por exemplo, é o caso da arte e do erotismo em relação ao cristianismo (NOBRE, 2016, p.157).

Entretanto, por esse ângulo, em relação ao exame dos resultados da valorização dos elementos irracionais e indomados da vida na modernidade, o interessante não são as tensões com a moral religiosa ou com as tradições. O importante são os conflitos típicos da contemporaneidade, suas disputas no interior de sua própria cultura, entre os estilos de vida que valorizam experiências, contravenções e atitudes, alternativamente aos arranjos do racionalismo de domínio do mundo.

Assim, no cômputo geral das variadas racionalizações que configuram a modernidade do ponto de vista de Weber, estabelecem-se novas tensões relativas aos fins cultivados, explicitados e valorizados, especialmente a tensão entre cotidianidade racional e extracotidianidade irracional, entre vida mental e vida instintual, entre sentido profissional e sentido vital, entre disciplina e extravagância, entre adaptação e intempestividade, entre normalidade e excepcionalidade. [...]

As perspectivas artística e erótica, como modos de vida cultivados em conversas de salões, narrativas literárias, performances existenciais, círculos eróticos, movimentos de contracultura, ideais libertinos ou transfiguradores da vida, todos eles estilos de vida que valorizam experiências, transgressões e deslocamentos são perspectivas que se apresentam, em simbologia e atitudes, como alternativas à manipulação do corpo e da alma pelas “frias mãos esqueléticas” do racionalismo de domínio do mundo (NOBRE, 2016, p. 159).

É exatamente esta a pista que deve ser perseguida, de que do conjunto das esferas tipicamente “irracionais”, ou mais precisamente, do desenvolvimento das racionalizações que possuem características mais valorativas, impulsionadas pelo contexto da “sociedade pós- industrial”, emergiu um hedonismo cultural que fortaleceu e reorientou a arte e o erotismo, transformando os estilos de vida, as experiências individuais e os ideais da modernidade, intensificando as tensões enumeradas acima por Nobre (2016). Esses são fenômenos afins com os processos de internalização e subjetivação identificados por Weber, bem como com a ascensão da individualidade moderna dotada de reflexividade e pautada na autorreferencialidade do indivíduo. Assim, para além da hegemonia da racionalidade, esses elementos culturais passariam a influenciar de forma contundente as demais esferas da vida social.

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