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2. A MODERNIDADE E SUAS IDIOSSINCRASIAS

2.1. A modernidade

2.1.2. As diferentes fases da modernidade

Historicamente, as transformações e experiências da modernidade foram acontecendo ao longo de aproximadamente quinhentos anos, apesar de desproporcionais e espantosas em termos de velocidade e em relação ao tempo se comparadas a outros períodos históricos. Assim, para melhor compreender o seu desenvolvimento, apogeu e crise, cabe explicitar como Marshall Berman e Alain Touraine classificaram a modernidade como um todo. Ambos a qualificaram em três fases com períodos semelhantes.

Touraine (1994, 1998a, 1998b, 2007 e 2009) definiu e classificou as suas fases em alta, média e baixa modernidades. A alta modernidade foi entre os séculos XV e XVIII, em que houve a formação de Estados nacionais, conforme a ordem imposta pela razão do Iluminismo. Desenvolveu-se o princípio de racionalização das leis e da educação na sociedade, como os objetivos da ordem e da integração social. Tinham papéis relevantes as instituições mais sólidas,

57 a família, a Igreja e o Estado nacional, como os de, por exemplo, unificar as divergências da modernidade, promover a racionalização do mundo e o individualismo moral. Ramos (2013), aludindo a Touraine, afirma que:

A alta modernidade foi subordinada à política e à lei, ela foi o período em que a atividade produtiva e a identidade pessoal mantinham uma unidade, enquanto que o Estado nacional se caracterizava pelo poder centralizador, simbolizando identidade e segurança (RAMOS, 2013, p. 35).

Já em relação à média modernidade segundo Touraine, Ramos (2013) ressalta que seu início se deu em meados do século XVIII, período da Revolução Industrial, da expansão do capitalismo e do surgimento da economia internacional e das primeiras ameaças ao Estado nacional. Nesse período, o ideal da modernidade da “razão cede espaço para o ideal de desenvolvimento e progresso, sendo sua organização um reflexo dessa nova lógica levada às últimas consequências” (RAMOS, 2013, p. 35). A fé supracitada no progresso sob a condução da razão impacta as várias esferas da vida social, tanto o universo material quanto os ideais de vida, valores e pensamentos humanos. Nessa fase surge a democracia dos movimentos sociais, que se organizaram em prol dos direitos sociais no decorrer da conquista do progresso. É quando se tornam mais notórias as primeiras contradições da modernidade, de modo a acarretar demandas políticas. O ápice desses antagonismos foi na década de 1970,

...quando a população mundial pôde sentir a distância entre a ordem social e os problemas trazidos pela modernidade obcecada pelo desenvolvimento e pelo espírito do individualismo. [...], a vida produtiva caminhava ininterruptamente em direção oposta aos cuidados do homem e aos seus direitos (RAMOS, 2013, p. 36).

Por fim, a baixa modernidade em Touraine é concebida como o período do colapso da modernidade, intensificado a partir da década de 1970 até os dias atuais (RAMOS, 2013, p. 37- 41). Uma série de acontecimentos remete a isso. Dentre eles, a prevalência da economia internacional sobre os interesses locais e o consumismo como razão do descontrole da produção de bens materiais e culturais.

A separação entre as identidades (culturais, individuais e coletivas) e o universo econômico e exterior aos costumes e comportamentos de origem subjetiva foi o fenômeno-chave para o enfraquecimento das instituições sociais que, desde a alta modernidade, sempre tiveram a função de ordenar a sociedade (RAMOS, 2013, p. 37).

58 Isso significa que a decadência das instituições da modernidade possibilitou aos indivíduos, nessa última fase, mais liberdade de imaginação e inovação em relação às fases anteriores. Mas também potencializou as incertezas e o mal-estar coletivo. Assim, ocorreu o enfraquecimento da integração social como resultado do vazio formado desde o início da fé no progresso, entre as esferas objetivas e subjetivas. De acordo com Ramos,

Tal acontecimento significa, na crítica de Touraine, que as normas e os princípios universais se exauriram e favoreceram o aparecimento de problemas, como aumento da desigualdade social, insegurança econômica, impactos ambientais, tensões multiculturaise outros problemas que, no geral, pertencem ao que Alain Touraine chama de decomposição do social, mantida pelo fenômeno do individualismo e por forças que estão além da esfera social. [...] A descrição e análise da baixa modernidade conduziram Touraine a questionar as condições da vida atual em sociedade, as pressões sobre os indivíduos, o poder das mídias e da cultura do consumo, a desqualificação de propriedades humanas, como a autonomia e a consciência, a fragmentação do trabalho e a produção de bens separada da subjetividade do trabalhador (RAMOS, 2013, p. 38).

Então, diante da crise da modernidade caracterizada por essa última fase, Touraine defende que, para superá-la, sejam criadas novas categorias de análise com maior capacidade para denominar os novos atores, os conflitos, também novos; as representações do “eu” e as coletividades em um novo ponto de vista. Uma nova perspectiva que corresponda melhor às representações da vida social e que perceba uma mudança de paradigma no sentido de identificar a passagem do período industrial para o pós-industrial, o suceder da sociedade da produção para a sociedade do consumo e da comunicação (RAMOS, 2013, p. 39).

Em relação à classificação de Berman, diferente da perspectiva tourainiana, o autor a define em termos da experiência social dos indivíduos resultante da modernidade. A classificação é detalhada da seguinte forma:

Na primeira fase, do início do século XVI até o fim do século XVIII, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem ideia do que as atingiu. Elas tateiam, desesperadamente, mas em estado de semicegueira, no encalço de um vocabulário adequado, têm pouco ou nenhum senso de um público ou comunidade moderna, dentro da qual seus julgamentos e esperanças pudessem ser compartilhados. Nossa segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790. Com a Revolução Francesa e suas reverberações, ganha vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política. Ao mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro. É

59 dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a ideia de modernismo e modernização. No século XX, nossa terceira e última fase, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento. Por outro lado, à medida que se expande, o público moderno se multiplica em uma multidão de fragmentos, que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais; a ideia de modernidade, concebida em inúmeros e fragmentários caminhos, perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e perde sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas. Em consequência disso, encontramo-nos hoje em meio a uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria modernidade (BERMAN, 2007, p. 25-26).

Diante disso, é possível perceber como o avanço da modernidade, inerente ao do capitalismo, criou novas contradições e exacerbou outras. Como é possível verificar nos autores clássicos da sociologia, os antagonismos que fazem da modernidade algo paradoxal sempre existiram desde o seu aparecimento. A exploração e alienação asseveradas por Karl Marx, a ansiedade e contingência dos afetados pela divisão social do trabalho e crescente especialização pontuadas por Émile Durkheim; a sociedade de estranhos, com o aumento da fragmentação e isolamento sociais destacado por Simmel e a racionalização invadindo todas as esferas da vida social, conforme realçou Max Weber, foram apenas alguns dos aspectos perversos do capitalismo moderno após sua ascensão, juntamente com o desenvolvimento da ciência e da sociedade industrial (LYON, 2005).

Assim, a importância do contexto de crise apontado por Touraine (1994, 1998b e 2007) e Berman (2007) está não só na questão da crise da modernidade em si mesma, com a ressalva da demanda de uma nova perspectiva analítica para a compreensão adequada da vida social contemporânea, bem como a advertência da fragmentação e da perda de sentido desta, mas também na continuidade desses fenômenos, em termos de suas acentuações e transformações que sobrevieram posteriormente. Essas mudanças levaram determinados autores a defenderem algumas teses que indicaram a ascensão de uma nova sociedade. Essa seria a denominada “sociedade pós-industrial”, um novo tipo de sociedade cujo desenvolvimento é central para a pesquisa aqui realizada, na medida em que suas características, principalmente suas contradições culturais, são exatamente as condições para o surgimento do que foi denominado de pós-modernidade3.

3 Para mais detalhes cf. David Lyon, capítulo 4: “Do pós-industrialismo à pós-modernidade” (2005, p. 59-83), bem

60 Todavia, antes de nos determos na questão da sociedade pós-industrial, é necessário desenvolver uma maior compreensão acerca da fragmentação e da falta de sentido da vida na modernidade. Assim, a seguir isso será explorado através da teoria da modernidade de Max Weber. Logo após será discutida a questão da sociedade pós-industrial e suas contradições culturais, o que se relaciona com a demanda de uma nova perspectiva analítica que se pretende mais adequada sobre a contemporaneidade.