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A fórmula da lei universal

No documento Justiça em Kant (páginas 50-53)

1.3.3 As formulações do imperativo categórico

1.3.3.1 A fórmula da lei universal

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que

ela se torne lei universal” (FMC, AK421, 215). Fato é que deste único imperativo as

outras formulações do imperativo categórico podem ser derivadas. No que tange à fórmula da lei universal, afirma Sullivan:

Estabelecida como imperativo, a lei da autonomia nos obriga a "agir apenas sob a máxima através da qual você pode, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal" (Gr.52 / 424). Esta é a primeira fórmula do Imperativo Categórico, a Fórmula da Autonomia ou do Direito Universal, que exibe sua origem no princípio lógico da não-contradição, obrigando-nos a adotar e a atuar somente sob máximas que sejam coerentes consigo mesmas quando consideradas também como leis para todos. Apenas essas máximas são formalmente adequadas para servir como máximas de agentes autônomos. Kant chama essa fórmula de “o princípio supremo do direito” porque nos obriga a reconhecer e respeitar o direito e a obrigação de cada pessoa de escolher e agir autonomamente (MM231), já que as regras morais têm a característica de universalidade, o que é moralmente proibido para um é proibido para todos, o que é moralmente permissível para um é igualmente permissível para todos, e o que é moralmente obrigatório para um é igualmente obrigatório para todos. Não podemos nos eximir de obrigações que impomos as outras pessoas, nem podemos reivindicar permissões as quais não estamos dispostos a estender aos demais (SULLIVAN, 1989, p. 165, tradução nossa).12

A fórmula da universalidade ou igualdade expressa a exigência da universalidade da máxima, da lei moral como critério da sua própria validade. Retomando o conceito de máxima nesta oportunidade, importante salientar que Kant considera como máxima o preceito ou princípio que propicia a razão para a ação de uma pessoa. Somente a máxima que pode ser elevada à categoria de lei, ou seja, universalizada, sem entrar em contradição, é considerada válida moralmente, não é válida apenas para a pessoa que a formulou, mas para todos seres racionais. A racionalidade, notadamente, exerce um padrão de igualdade. O universal é a expressão

12 “Stated as an imperative, the law os Autonomy commands us to “act only on that maxim through which

you can, at the same time will that it should become a universal law” (Gr.52/424). This is also the first formula of the Categorical Imperative, the Formula of Autonomy or of Universal Law, which exhibits its origin in the logical principle of noncontradiction by obligating us to adopt and act only on maxims that are consistent with themselves when considered also as laws for everyone. Only such maxims are formally fit to serve as maxims for autonomous agents. Kant calls this formula “the supreme principle of right” because it obligates us to recognize and respect the right and obligation of every other person to choose and act autonomously (M.M.231), since moral rules have the characteristic of universality, what is morally forbidden to one is forbidden to all, what is morally permissible for one is equally permissible for all, and what is morally obligatory for one is equaly obligatory for all. We may not claim to be exempt from obligations to which we hold others, nor may we claim permissions we are unwilling to extend to everyone else”.

de igualdade, haja vista ser impossível formular um conceito universal sem que haja igualdade entre as coisas. Se supõe a igualdade daqueles a que o imperativo categórico se destina. O critério de igualdade é o mesmo da universalidade, ou seja, a razão.

A igualdade é uma ideia, um pressuposto da razão, sob pena de não ser possível a lei moral. Para Kant, o universal é, portanto, o objetivo, que tem validade, o impessoal. A universalidade também é critério de validade para as máximas com deveres para consigo mesmo. Já na dimensão do outro, significa mais do que o tratamento igual para todos. Vejamos o que diz Weber:

O imperativo categórico indica esse procedimento de universalização. Querer que a própria vontade, através da máxima, possa converter-se em lei universal é colocar-se na condição de legislador universal. Aliás, como desdobramento dessa primeira formulação temos o acréscimo da lei universal da natureza: “Age como se a máxima de tua vontade se devesse tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza” [...] Trata-se de um projeto ético pois lê-se no princípio “age como se...” o qual indica um dever-ser. Devemos agir de tal forma que a nossa máxima possa transformar-se em lei da natureza, isto é, um mundo social do qual fazemos parte. Portanto, devemos agir como se nossa máxima pudesse transformar-se em lei universal da natureza (WEBER, 2013, p. 18).

Salientamos, no entanto, que o estudo e o debate a respeito do número e do por que das três formulações do imperativo categórico não é um assunto fácil e tampouco encontra leitura unânime entre os intérpretes de Kant. Podemos dizer que da primeira formulação, há um acréscimo significativo, a saber: “age como se a máxima da tua ação

se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (FMC, AK421,

p.215).

Ocorre que alguns entendem que a lei universal da natureza é uma explicação da lei universal enquanto que outros, alegam ser uma outra formulação da lei prática. Nesse aspecto, o ponto central se faz em apresentar uma argumentação plausível do por que é possível conservar a tese de que a transladação da lei universal à lei universal da natureza não se constitui uma formulação à parte, mas sim de uma explicitação e esclarecimento da fórmula da lei universal. O filósofo de Königsberg afirma que tudo na natureza age segundo leis, apenas um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, o seja, segundo princípios (FMC, AK412, p.183). O conceito natureza não deve aqui ser entendido meramente como natureza fenomenal, antes, no sentido como presença obrigatória sob leis, ou seja, como realidade das coisas, enquanto é determinada por leis universais (FMC, AK421, p.215). A natureza é a totalidade dos fenômenos governados pela lei e, por sua vez, os fenômenos são a matéria da natureza.

A forma em virtude da qual eles constituem um caos, pois seguem e agem de acordo com a lei da causalidade natural.

Esta não é a única lei existente, negligenciando ou negando a lei da causalidade livre. Afirma Kant: “A causalidade segundo leis na natureza não é única a partir da

qual os fenômenos do mundo possam ser derivados em conjunto. Para explica-los é necessário admitir ainda uma causalidade mediante a liberdade” (CRP, A444/B472,

2001, p. 406)

A distinção entre lei causal da natureza e a lei moral da liberdade é muito importante. A lei da natureza e a lei da liberdade diferem, ou seja, não são uma e a mesma coisa, como a liberdade, em sentido negativo é independente de causas estranhas e como a universalidade da lei constitui a forma da natureza, por analogia à lei da causalidade da natureza, Kant diz ser possível afirmar a transição à lei universal imposta pelo imperativo categórico em termos de uma lei universal da natureza. Na tese subjacente à transição à lei universal da natureza, Kant pensa o contraste entre o mundo sensível e mundo inteligível, mundo fenomênico e numênico, mundo das aparências e mundo das coisas em si, embora não haja um outro mundo senão o mundo da experiência, mas mesmo assim, segundo Kant, podemos dar-lhe um tipo de objeto e agir de acordo com ele.

Segundo Kant, querer que uma máxima da ação se transforme em lei universal da ação e, por conseguinte, se transforme em lei universal é o cânone pelo qual se julga, em geral, moralmente. Em sua argumentação acerca deste tópico, Kant analisa os quatro famosos exemplos, do suicídio, do empréstimo de dinheiro, do talento natural, do auxílio na necessidade, concluindo que nenhum desses exemplos se lhe pode outorgar o direito de transformar-se numa lei universal que é a priori e, nesse sentido, Kant afirma:

Tudo, pois, que o é empírico é, enquanto aditamento ao princípio da moralidade, não só totalmente imprestável para isso, mas até mesmo altamente prejudicial à limpidez dos costumes; nos quais o valor propriamente dito de uma vontade absolutamente boa, e que se eleva sublime acima de todo o preço, consiste justamente no fato de que o princípio da ação seja livre da influência de todas as razões contingentes para agir que só a experiência pode fornecer (FMC, AK426, p233.).

Destarte, os princípios do que deve acontecer só podem ser determinados pelo procedimento da razão por si e tal procedimento deverá ser necessariamente a priori, em última análise, a vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis (FMC, AK427, p.237) e esta

faculdade só pode ser encontrada em seres racionais no sentido de serem capazes de determinar sua conduta a partir de um princípio objetivo e formal que seja válido para todos os seres racionais e isso só é possível com a determinação da forma da universalidade da máxima, ocupando-se, exclusivamente, com a determinação da forma e ainda não com a matéria da máxima e também não com uma determinação completa de todas as máximas. Vejamos a afirmação de Kant:

Uma forma, que consiste na universalidade, e então, a fórmula do imperativo moral está expressa de tal maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza; uma matéria, a saber, um fim, e então a fórmula diz: o ser racional, enquanto fim, segundo a sua natureza, por conseguinte enquanto fim em si mesmo, tem de servir para toda máxima de condição restritiva de todos os fins meramente relativos e arbitrários; uma determinação completa de todas as máximas mediante aquela fórmula, a saber: que todas as máximas por legislação própria devem concordar umas com as outras para um possível reino dos fins como um reino da natureza. (FMC, AK436, p.271).

No documento Justiça em Kant (páginas 50-53)