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Direito público

No documento Justiça em Kant (páginas 155-158)

2 JUSTIÇA E LEGALIDADE

2.6 DIREITO NATURAL E POSITIVO

2.6.1 Direito público

Na Metafísica dos costumes, Kant estabelece que a divisão suprema do direito natural não pode ser, como sói ocorrer, entre o direito natural no estado de natureza e o direito social, mas tem de ser aquela entre entre o direito no estado de natureza e o direito civil, dos quais o primeiro é chamado direito privado, o segundo, direito público. Pois ao estado de natureza se contrapõe, não o estado social, mas o estado civil, porque naquele bem pode existir sociedade, mas apenas uma sociedade civil (assegurando o meu e teu através de leis públicas) chamando-se o direito, por isso, no primeiro, o direito privado (MC, 2008, B, p.83).

O direito público, para Kant, consiste em um conjunto de leis que necessitam de uma promulgação universal para produzir um estado jurídico. Trata-se de um sistema de leis para um povo ou povos, os quais, encontrando-se sob influência recíproca entre si, necessitam de um estado jurídico sob uma vontade que os una, mediante uma constituição, a fim de chegarem ao que é de direito. Ao tratarmos do direito público em Kant, segundo afirma Terra, a fim de obtermos uma melhor compreensão acerca do referido tema, é importante recorrer ao texto À pazperpétua, no qual Kant apresenta uma síntese de sua concepção mais pormenorizada do que contida na doutrina do direito da Metafísica dos costumes (TERRA, 2004, p.40). A partir da segunda seção, no texto acima mencionado, com seus três artigos definitivos, Kant resume o direito

público em: 1) O direito político, caracterizado essencialmente na fórmula: a constituição civil em cada Estado deve ser republicana (APP, 1988, p.127). Em linhas gerais, na forma republicana, o poder executivo é separado do poder legislativo, e o governo obedece às leis promulgadas pelo soberano, que devem estar de acordo com a vontade geral. Na base da ação, tanto do governante quanto dos deputados, deve estar a vontade geral, que se expressa de maneira diferente nos dois casos; as leis devem ser promulgadas como se o tivessem sido pela vontade unida de todos, e o governo deve agir em concordância com essa vontade. Importante é salientar que, para Kant, uma constituição tem caráter duradouro, não se baseando, portanto, apenas em eventos históricos contingentes e costumes mais ou menos arraigados, como as formas de soberania, nem depende fundamentalmente do esclarecimento do chefe do Estado, como nas formas de governo. A constituição republicana está de acordo com a razão, tem caráter essencial, e deve contar com instituições que garantam continuamente a realização do direito. Ela insiste no sistema representativo, que é apresentado como governo republicano, e aprofunda o sentido dessa exigência com uma ampla visão de um estado de direito. Vejamos a seguinte afirmação de Kant:

Se funda primeiramente no princípio da liberdade dos membros de uma sociedade (como homens) em segundo lugar, no princípio da dependência de todos em relação uma legislação única e comum (como súditos); e em terceiro lugar, na lei da igualdade de todos (como cidadãos) é a única que provém da ideia do contrato originário, sobre o qual deve ser fundada a legislação jurídica de um povo (APP, 1988, p. 127-128).

2) O direito das gentes deve ser fundado sobre um federalismo de Estados livres (APP, 1988, p.133); Outro conceito importante é o do direito das gentes consubstanciado no segundo artigo definitivo de À paz perpétua e que reza que o direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres. A fim de evitar uma maior incidência de guerras, Kant propõe uma solução que podemos considerar análoga à constituição do estado jurídico pelo contrato social, a qual consiste no estabelecimento de uma federação das nações. A possibilidade de realização dessa ideia de federalismo, que deve se estender gradualmente a todos os Estados e conduzir à paz perpétua, pode ser representada (APP, 1988, p. 134)

3) - O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal (APP, 1988, p.137). Kant, nesse contexto, alargaria o âmbito do direito quando ao lado do direito político e do da gentes, acrescenta o cosmopolita. Vejamos:

“A violação do direito num lugar da Terra se sente todos os outros” (APP, 1988, p. 140). Tal afirmação kantiana teria, inclusive, inspirado e tornado lema fundamental na defesa dos direitos humanos como superiores ao direito positivo de cada país. No que concerne ao direito cosmopolita, considera-se os homens e os estados, na sua relação externa de influência recíproca, como a cidade de um estado universal da humanidade (iuscosmopoliticum). Os cidadãos do mundo têm o direito de habitar qualquer região do globo e estabelecer relações com os habitantes de todo o mundo; esse direito seria proveniente da propriedade originária do solo. Nesse horizonte, vejamos as considerações de Kant:

Se pois, se comparar a conduta inospitaleira dos Estados civilizados da nossa região do mundo, sobretudo dos comerciantes, causa assombro a injustiça que eles revelam na visita a países e povos estrangeiros (o que para eles se identifica com a conquista dos mesmos). A América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo etc., eram para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles. Nas Indias Orientais (Indostão) introduziram tropas estrangeiras sob o pretexto de visarem apenas estabelecimentos comerciais, mas com as tropas introduziram a opressão dos nativos, a instigação dos seus diversos Estados a guerras muito amplas, a fome, a rebelião, a perfídia e a ladainha de todos os males que aflingem o gênero humano (APP, 1988, p.138).

Destarte, retomando a análise dos elementos que caracterizam a composição do direito público em Kant, como explica Beckenkamp, esse estado dos indivíduos no povo em relação uns com os outros chama-se estado civil (status civilis), e o todo deles em relação a seus próprios membros chama-se Estado (civitas), o qual é denominado de republica (respublica latius sic dicta) devido à sua forma, como constituído pelo interesse comum de todos em se encontrar no estado jurídico, mas em relação a outros povos se chama potência (potentia) pura e simples ( daí a palavra potentados), chamando-se também um povo ( gens), devido à união (supostamente) herdada, dando ocasião assim a que se pense, sob o conceito universal do direito público, não só o direito do Estado, mas ainda o direito das gentes (jusgentium): o que em conjunto leva então, por ser a terra uma superfície que se fecha sobre si mesma e não ilimitada, inevitavelmente à ideia de um direito político das gentes (jusgentium) ou ao direito cosmopolita (jus cosmopoliticum), de tal maneira que, se faltar a apenas uma dessas três formas possíveis do estado jurídico o princípio restritivo da liberdade externa por meio de leis, o edifício das demais tem de ficar inevitavelmente minado e por fim ruir (BECKENKAMP, 2014, p.126)

O fato é que antes do estabelecimento de um estado legal publico, os homens não podem estar seguros da violência de uns contra os outros, e com base no direito próprio de cada um fazer o que lhe parece justo e bom, não dependendo nisso da opinião do outro, que a primeira coisa, portanto, que ele deve admitir, caso queira renunciar a todos os conceitos jurídicos, é o princípio de que se deve sair do estado de natureza, no qual cada um segue sua própria cabeça, e unir-se com todos os outros com o intuito de se submeter a uma coação externa legal e publica, ou seja, entrar em um estado no qual é determinado legalmente o que deve ser reconhecido como o seu de cada um, cabendo-lhe por um poder suficiente, que não é o seu, mas um poder externo, isto é, deve-se antes de tudo entrar em um estado civil.

No documento Justiça em Kant (páginas 155-158)