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Direito privado

No documento Justiça em Kant (páginas 158-163)

2 JUSTIÇA E LEGALIDADE

2.6 DIREITO NATURAL E POSITIVO

2.6.2 Direito privado

Importante é lembrarmos que o estado de natureza, para Kant, trata-se de uma ideia, e não um fato do passado. Ele se caracteriza como uma situação não de injustiça (injustus), mas de ausência de justiça (status justitia vacuus), na medida em que não há um juiz competente para decidir os casos controversos (jus controversum), o que não significa dizer, entretanto, ausência de direito no estado de natureza. Nesse sentido, vejamos a afirmação de Kant:

Embora cada um, segundo seus conceitos de direito, possa adquirir alguma coisa exterior por ocupação ou contrato, esta aquisição é apenas provisória enquanto não contiver a sanção de uma lei pública, porque não é determinada por nenhuma justiça (distributiva) pública e garantida por nenhum poder que exerça este direito (MC, 2008, p. 101).

A diferença entre o estado de natureza e o civil consiste no fato de que, no último, há uma legislação pública, justiça distributiva e um poder coercitivo, de modo que as leis sejam obedecidas. Mas nos dois estados há o direito de aquisição das coisas exteriores e, mais ainda, “segundo a forma, as leis sobre o meu e o teu no estado de natureza contêm o mesmo que elas prescrevem no estado civil, na medida em que este é pensado somente segundo conceitos da razão pura” (MC, 2008, p102). No estado civil, entretanto, há a possibilidade de realização do direito natural, e o que era provisório pode tornar-se peremptório. Importante é registrar que o estado de natureza não é uma realidade histórica, mas uma ideia. O homem isolado é portador tanto da lei ética quanto

da lei jurídica natural que valem no estado de natureza assim como no civil. Assim, porque no estado de natureza é possível a posse, mesmo que provisória, é que será um mandamento sair desse estado.

Kant também distingue o direito inato do direito adquirido. No direito adquirido, pressupõe-se um ato jurídico, ao contrário do primeiro, que cabe a todos os homens imediata e naturalmente. O direito inato é um único, um direito originário que cabe a todo homem em virtude de sua humanidade, isto é, a liberdade, contanto que possa subsistir junto à liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal (MC, 2008, p.83). Segundo nos explica Terra, vinculada e mesmo compreendida na liberdade está a igualdade, ou seja, a independência, não ser obrigado por outros senão àquilo que se possa também obriga-los reciprocamente, ou seja, na qualidade do homem de ser o seu próprio senhor (TERRA, 2004, p.34). Nessa perspectiva, correspondendo à distinção de direito inato e adquirido, o meu e o teu são pensados como interiores ou exteriores. O interior (a liberdade) é inato e, como tal, não apresenta dificuldades para sua fundamentação; já o exterior é adquirido e deverá ser tratado de maneira detalhada (MC, 2008, p. 83).

Destarte, objetos externos de minha escolha são de três tipos: 1) uma coisa (corporal) fora de mim; 2) o arbítrio de um outro para uma ação determinada (paraestaio); 3) o estado de um outro em relação a mim, segundo as categorias da substância, causalidade e comunidade entre mim e os objetos exteriores de acordo com as leis da liberdade (MC, 2008, p.94), sendo que a esses tipos de objetos correspondem as três partes do direito privado. O direito real (Sachenrecht), que trata da possibilidade de adquirir uma coisa corporal; o direito pessoal, que trata da chance de se ter a prestação de alguma coisa por outra pessoa, a transferência de alguma coisa de uma pessoa para a outra, através de um contrato; e o direito pessoal, segundo uma modalidade real (auf dingliche Art persölichen Recht), que comporta aspectos dos dois anteriores uma vez que se trata da posse de algo como sendo uma coisa, mas cujo uso não pode ser feito como tal, pois trata-se de uma pessoa.

Kant afirma que a definição nominal do que é externamente meu seria a de que “fora de mim é externamente meu o que constituísse uma lesão (uma violação à minha liberdade que pode coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal) para impedir-se um uso arbitrário” (MC, 2008, p.95), de modo que alguma coisa externa é minha se eu fosse lesado ao ser perturbado no meu uso dela, ainda que eu não esteja de posse dela, ou seja, sem me apoderar do objeto. Destarte, tenho que estar de alguma

forma de posse de um objeto externo, se for para qualifica-lo como meu, pois de outra maneira alguém que afetasse esse objeto contra minha vontade não me afetaria também e, assim, não me lesaria.

Nessa perspectiva, podemos pensar a possibilidade da posse inteligível (possessionoumenon), se é para alguma coisa externa ser minha ou tua. A posse empírica (ocupação), consoante afirma Kant, seria, então, apenas a posse aparente (possessio phaenomenon), não obstante, o objeto ele mesmo que possuo não seja tratado como uma aparência, mas como uma coisa em si, porquanto a razão, como determinação prática da escolha de acordo com leis da liberdade, quer o objeto possa ser conhecido através dos sentidos ou através do puro entendimento somente, e o direito é um conceito racional puro, prático da escolha sob as leis da liberdade (MC, 2008, p.95). Ainda sobre o direito de posse, Kant explicita que não é apropriado falarmos na posse de um direito a este ou aquele objeto, mas de possúí-lo apenas juridicamente, pois um direito já é uma posse intelectual de um objeto, carecendo de sentido, portanto, falarmos em possuirmos uma posse. Kant nos diz que todas as proposições sobre o direito são proposições a priori, uma vez que se tratam de leis da razão (dictamina rationis), nesse sentido:

Uma proposição a priori sobre o direito relativa à posse empírica é analítica, porque nada mais expressa do que o resultante da posse empírica de acordo com o princípio de contradição, qual seja, que se estou em poder de uma coisa (e assim fisicamente ligado a ela), alguém que a afete sem meu consentimento (por exemplo, arrebata uma maçã de minha mão) afeta e diminui o que é externamente meu (minha liberdade), de sorte que sua máxima está em contradição com o axioma do direito. Assim, a proposição sobre posse empírica em conformidade com direitos não ultrapassa o direito de uma pessoa com respeito a si mesma. Por outro lado, uma proposição sobre a possibilidade de possuir uma coisa externa a mim mesmo, que põe de lado quaisquer condições de posse empírica no espaço e no tempo, vai além dessas condições limitadoras, e visto que afirma a posse de alguma coisa sem sua ocupação, como necessário ao conceito de alguma coisa externa que é minha ou tua, é sintética (MC, 2008, p.96).

Por fim, importante é lembramos que a posse meramente física já é um direito a uma coisa, embora certamente não por si suficiente para considerá-la como minha. Nesse contexto, afirma Kant, que:

Relativa a outros, visto que (na medida do que se sabe) é primeira posse, é coerente com o princípio da liberdade externa e também está envolvida na posse original em comum, que proporciona a priori a base sobre a qual qualquer posse privada é possível. Realizar a primeira tomada de posse tem, portanto, uma base jurídica (titulus possessionis), que é posse original em

comum; e o brocardo “Felizes são aqueles que têm a posse (beati possidentes), porque ninguém ser obrigado a certificar sua posse é um princípio do ditreito natural, o qual estabelece o tomar a primeira posse como uma base jurídica de aquisição com a qual pode contar todo primeiro possuidor (MC,2008, p.98)

Tanto o direito real quanto o pessoal, ou o pessoal segundo uma modalidade real, estão condicionados à resolução da questão da expectativa da posse de um objeto exterior, o que é desenvolvido em duas etapas: na primeira analisa-se a possibilidade de ter algo de exterior como seu e, na segunda, a maneira de adquirir algo. Assim, pode-se afirmar que o direito privado kantiano está essencialmente baseado na questão da propriedade.

A exigência de um estado jurídico e a consequente passagem do estado de natureza para o estado civil são recorrentemente tratatados na Rechtslehre, inclusive por ocasião da análise do ter e do adquirir o meu e o teu exteriores, como também na oportunidade do exame da relação do direito publico com o privado. Para se ter algo de exterior como seu, é necessário estar em um estado jurídico, em um estado civil onde haja um poder público, porquanto “uma posse na espera e preparação de um tal estado, que só pode ser fundado numa lei da vontade comum, que assim está de acordo com a possibilidade da ultima, é uma posse provisória e jurídica, em compensação aquela que se encontra num tal estado seria uma posse peremptória” (MC,2008, p.102), de modo que, como afirma Terra, a aquisição no estado de natureza é também provisória e sua racionalidade reside na ideia de uma vontade unida de todos (TERRA, 2004, p.36). Em outras palavras:

Assim, é somente uma vontade submetendo todos à obrigação, consequentemente somente uma vontade coletiva e geral (comum) e poderosoa é capaz de suprir a todos tal garantia. Contudo, a condição de estar submetido a uma legislação externa geral (isto é, pública) acompanhada de poder é a condição civil. Conclui-se que apenas numa condição civil pode alguma coisa externa ser minha ou tua (MC, 2008, p.101).

A possibilidade de se ter ou de se adquirir originariamente algo de exterior está vinculada à ideia da vontade geral. Dessa forma, no estado de natureza pode-se ter ou adquirir algo legitimamente, desde que se esteja de acordo com aquela ideia, mas tal aquisição é provisória, porque a vontade geral não é ainda efetiva. Assim, para garantir

a cada um sua propriedade, é necessário que haja uma legislação proveniente da vontade geral e um poder coercitivo que a execute;

De modo que, podemos inferir que a necessidade de sairmos do estado de natureza não está fundamentado unicamente na busca da autoconservação proveniente da existência dos conflitos entre os homens, e sim, em uma exigência racional a priori, vinculada ao postulado jurídico prático que afirma a possibilidade de ter algo como seu é juridicamente possível, sendo, inclusive, permitido ao sujeito constranger todos os outros, com os quais ele pode entrar em conflito em relação ao meu e ao teu sobre determinado objeto, a entrar com ele numa constituição civil (MC, 2008, p.103).

Prosseguindo, o uso de algo exterior ao arbítrio jáz no conceito de posse. Esta é a condição de possibilidade do uso em geral de objetos do arbítrio segundo a liberdade. Esse uso deve estar submetido à lei universal do Direito, isto é, à utilização de um objeto do arbítrio deve conciliar-se ao arbítrio de todos segundo uma lei universal. Kant distingue as seguintes aspectos de aquisição original: 1) Apreensão de um objeto que não pertence a ninguém, já que de outra maneira a apreensão entraria em conflito com a liberdade alheia de acordo com as leis universais. A apreensão é tomar posse de um objeto de escolha no espaço e no tempo, de modo que a posse na qual me instauro é

possessio phaenomenon (MC,2008, p.104). 2) Indicação (declaratio) de minha posse

desse objeto e de meu ato de escolha no sentido de excluir qualquer outra pessoa dele (MC, 2008, p.104). 3) Apropriação (appropriatio) como o ato de uma vontade geral (em ideia) produzindo uma lei externa peal qual todos ficam obrigados a assentir com minha escolha. A validade deste ùltimo aspecto de aquisição, sobre o qual repousa a conclusão “este objeto externo é meu”, ou seja, a conclusão de que minha posse é váilida como posse meramente por direito (possessionoumenon), é baseada no seguinte: uma vez que todos esses atos têm a ver com um direito e, assim, procedem da razão prática na questão do que é formulado como direito, pode-se fazer abstração das condições empíricas de posse, de sorte que a conclusão “o objeto externo é meu” é corretamente tirada da posse sensível para a inteligível (MC, 2008, p.104).

Nesse sentido, tal como a aquisição, mesmo que provisória, funda-se no postulado prático-jurídico, um princípio do direito privado autoriza o exercício da coerção para fazer com que os outros homens entrem juntos num estado civil que garanta a aquisição, tornando-a peremptória, de modo que do direito privado no estado de natureza provém o postulado do direito público de modo que se deve, a fim de uma coexistência inevitável com todos os outros, sair deste estado para entrar no estado

jurídico, ou seja, num estado de justiça distributiva. A exigência de garantir a cada um o seu, nos explica Terra, vem da preexistência da posse em relação ao estado civil, daí neste estado (no plano racional) não haver em relação ao estado de natureza diferença quanto à forma das leis do meu e do teu, e sim, no fato de que no estado civil há um poder que garante a execução dessas leis racionais, ou seja:

Assim, se no estado de natureza não houvesse nem provisoriamente um meu e teu, não haveria também nenhum dever de direito no tocante aos mesmos, por conseguinte, também não seria dado o mandamento de sair desse estado. A instituição do estado jurídico, do estado civil, está intimamente vinculada com a necessidade de garantir a propriedade. Na medida em que é demonstrada a sua possibilidade já se abre caminho para e exigência de sair do estado de natureza e entrar no estado civil [...] no estado civil há a garantia que já se tinha de maneira provisória no estado de natureza; a única determinação do Estado em relação à propriedade está em torná-la peremptória.Além de não cosntituir e determinar o que é de cada um, mas apenas sancionar o que já existia, o Estado também não deve impedir a atividade econômica dos cidadãos- ao contrário, deve deixar os vários setores da sociedade desenvolverem-se de maneira autônoma (TERRA, 2004, p.39).

O Estado, portanto, deve ser o garantidor de liberdades, como a de pensamento e de religião, bem como da atividade econômica na busca de atingir certo desenvolvimento e, para tanto, mantém relações comerciais e culturais com outros Estados. Após essa análise panorâmica acerca do direito público e direito privado em Kant, trataremos agora da pesquissa conceitual do imperativo categórico do direito.

No documento Justiça em Kant (páginas 158-163)