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Ao falar de música no documentário é difícil escapar de debates que trazem à tona a temática da validade ética da presença da música – sobretudo da música cujos corpos ou objetos que a fazem soar não são vistos na tela, que podemos chamar de música invisível. E os pontos mais tocados nesses debates giram em torno de ideias como “essa música manipula a realidade”, “a música tira a objetividade”, “a música manipula as emoções”, “a música estetitiza a realidade”, “a música adiciona percepções que não se aferem pelas imagens” etc.

As ideias dessa linha de debate não são falsas em si. O problema delas está na falsa ideia de que existe um problema ontológico na relação da música com uma (suposta) essência documentária – uma essência que, em verdade, é, mais do que tudo, se existente, transitória.

A música, acredito, é capaz de manipular uma suposta realidade, de gerar emoções, de tirar a objetividade etc., mas essas questões não são óbvias quando o assunto é documentário.

Russel Lack (1997, p. 257), no seu livro sobre música no cinema Twenty four frames under: a buried history of film music, busca nos conceitos de “percepção” e “estética” de Platão e Aristóteles a ideia de que a “música tem a capacidade de mudar nossos sentimentos em relação ao objeto ao qual acompanha”, afirmando que a presença da música no documentário é extremamente ambígua e que a “música em si parece ameaçar a autenticidade dos documentários”. E, de fato, como nota Donnelly (2015, p. 140),

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prejudicar, nem desafiar, a primazia das representações na tela. Assim, muitos realizadores evitaram a música dramática incidental como acompanhamento das imagens e dos sons diegéticos. Esses elementos [imagens e sons diegéticos] sozinhos parecem transmitir a realidade diretamente enquanto a música não diegética, particularmente no seu estilo hollywoodiano, parece ser a personificação da manipulação emocional e a “adição” estetizante da realização documentária.

Contudo, esse contorno, no sentido pejorativo, de “não realidade”, “não autenticidade”, “manipuladora” etc. adquirido pela música no domínio documental, podemos dizer, é relativamente jovem ou, como coloca Donnely (2015, p. 140), “é uma conceitualização relativamente moderna”. Para julgar a validade, prejuízo, autenticidade etc. da presença da música no documentário, é preciso pensar sob os preceitos da realização, da postura ética (ou não ética) – que sabemos que em muito já mudou. Do contrário, restam-nos considerações descompassadas a respeito de um grupo ou de uma maneira específica de se fazer documentário, creditando a alguns o porte da essência documentária e desconsiderando as transformações epistemológicas do fazer fílmico, que são caras para o entendimento da tradição documentária, ou, ainda pior, apagando as fronteiras entre o ficcional e o não ficcional, acreditando que a música, ao manipular e emocionar, ficcionaliza tudo aquilo que toca.

É importante ressaltar que a ideia de acesso direto, desimpedido e objetivo à realidade ou à verdade não foi e nem é usualmente colocada em debate de forma ingênua pelos realizadores da tradição documentária e nem sequer foi busca constante dos realizadores e personagens e, mesmo quando almejada, variou significativamente segundo parâmetros éticos e estilísticos. Tampouco esses termos (objetividade, realidade, verdade) são inequívocos e consensuais entre realizadores, espectadores e personagens; não é em torno dessas expressões que se define o campo documentário49.

Se nos atermos às sinfonias metropolitanas, que são marcos inaugurais da prática musical autoral no domínio documental, como em Berlim: sinfonia de uma metrópole, notaremos, com o apoio da partitura escrita para o filme, que a cidade de Berlim é pensada, articulada e levada ao espectador de forma poética, por concatenações rítmicas e contrastes de cortes entre planos, distantes de uma tentativa de observação direta do mundo. No caso de O homem com a câmera e Entusiasmo, tendo no horizonte as indicações sonoras escritas para os filmes (e o próprio material sonoro, no caso de Entusiasmo), podemos dizer que a realidade vista e ouvida de forma direta e

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objetiva é uma forma alienada de se perceber o mundo. Assim, a realidade, que está oculta, deve ser revelada pelas ferramentas narrativas dos filmes, das quais a música faz parte.

Se falarmos de documentários dos anos 1930 e 1940, sobretudo aqueles financiados por instituições estatais, seja na Europa, América ou Ásia, notaremos que boa parte deles tinham como pressuposto ético a missão educativa ou propagandística; e, para atingir seus objetivos, o uso da música como ferramenta narrativa desempenhou função estratégica, fosse numa dimensão lírica ou assertiva.

Se o questionamento da música invisível pode ser notado de forma mais contundente no documentário, é a partir dos anos 1960, sobretudo no cinema direto norte-americano, que, de forma geral, se apegava aos fenômenos advindos da circunstância de tomada homogênea à circunstância de mundo e que prezava pela pouca influência do grupo realizador naquilo que era filmado, vendo com maus olhos o trabalho de pós-produção naquilo que concerne à geração de imagens e sons50. Vale ressaltar que esse questionamento não foi feito apenas para a música, mas

para todos os elementos sonoros que não eram captados em locação. E mesmo sob essa maneira de pensar, a música não se ausentou completamente da filmografia do direto.

No que diz respeito a esse tipo de presença heterogênea da música em relação à tomada visual – alvo central nos debates que lidam com a questão da presença potencialmente polêmica da música invisível no documentário –, não podemos deixar de lado uma dimensão semelhante àquela que ocorre com a voz invisível51 (que será parâmetro para pensarmos a música visível).

A música invisível, por mais que presa na teoria da música fílmica a conceitos que tendem a impeli-la a um não lugar, a um não tempo ou a uma dimensão distante daquela das imagens – tal como “não diegético”, “música incidental” e “música de fosso” –, não perde sua dimensão espaço-temporal mundana, como materialidade em si, como elemento físico-auditivo do mundo, com um lugar de partida e de chegada.

Uma maneira interessante de pautar essa perspectiva é a partir da discussão de Claudiney Carrasco (1993) sobre a teoria dos gêneros literários aplicada ao entendimento da música fílmica. O épico seria um gênero no qual o poeta conta os fatos, conservando um distanciamento espaço-temporal com seu objeto. No gênero dramático, a relação poeta-objeto

50 E não necessariamente dos processos de edição e montagem.

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tende a se enfraquecer em favor da valorização do espaço-tempo da ação, aquele que parece ocorrer sem intermediação direta do poeta52.

Esse poeta, ao pensarmos em termos de cinema, deve ser entendido como narrador (no caso mais específico do cinema documentário, podemos entender esse narrador a partir daquilo que Bill Nichols chama de “voz do documentário” ou daquilo que Fernão Ramos tem chamado de “mega-enunciador”). Para Carrasco, levando em conta que o cinema se constitui como forma narrativa, o caráter épico torna-se marca determinante. Mesmo os aspectos dramáticos sendo possivelmente o foco de atenção, a (encen)ação dos corpos “já chega para nós filtrada pelo ponto de vista do narrador. É por isso que o dado dramático no cinema é adjetivo, posto que ele jamais pode ser isolado do dado substantivo épico” (CARRASCO, 1993, p. 73). A articulação da trilha musical estabelece-se, assim, com recursos que tendem a cumprir papéis ligados à dimensão espaço-temporal da (encen)ação (funções dramáticas) e com recursos que tendem a estabelecer e organizar a unidade narrativa fílmica (funções épicas). Assim, em relação ao cinema ficcional industrial, Carrasco (1993, p. 74) afirma que

A música, enquanto fator da articulação fílmica, faz parte do conjunto de recursos épicos. Na composição da narrativa ela é um instrumento do qual o narrador pode dispor para montar o seu discurso. Mas, assim como os outros fatores do aparato articulatório, ela tem que ser posta a serviço da progressão dramática do filme. Assim, a música pode ser entendida como uma das vozes do narrador, que pode manifestar-se como intervenção épica ou como parte da ação dramática.

E aí chegamos num ponto interessante para pensar o documentário: a música, que inevitavelmente passa pelo narrador, pode estar desprendida do espaço-tempo de tomada visual e funcionar tanto como elemento épico quanto dramático, ou pode estar ligada ao espaço-tempo de tomada visual e funcionar, também, tanto como elemento dramático quanto épico. Num extremo, poderíamos citar a trilha musical de Industrial Britain, que é composta por músicas compiladas, notadamente de repertório romântico, distante do espaço-tempo de tomada visual; e, no outro extremo, poderíamos citar a trilha musical de Lonely boy, em que certos trechos aquilo que escutamos ocorre no mesmo presente da tomada visual, quando, por exemplo, escutamos e vemos Paul Anka executando suas canções. Em ambos os casos, a música, independente da sua presença

52 Carrasco também discorre sobre o gênero lírico. Nele, o encontro do eu-poeta com o mundo (objeto) é o foco, esse

“eu subjetivo do poeta confunde-se com o próprio objeto da mensagem poética” (CARRASCO, 1993, p. 68). Contudo, mais adiante o abordaremos.

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homogênea ou heterogênea em relação à tomada visual, pode desempenhar papéis épicos e dramáticos.

Essa perspectiva torna-se interessante quando a música invisível, por exemplo, não parece se encaixar nesses extremos. Citemos dois exemplos distintos. Os pescadores de Aran, que contou com uma trilha musical original baseada em canções irlandesas tradicionais (especificamente das Ilhas de Aran); e Song of heroes, em que, no processo de realização, Joris Ivens (realizador do filme) disse à Hanns Eisler (compositor da trilha musical): “Você não pode escrever essa música se você não ver e escutar todo o ambiente sonoro e de trabalho e o espírito revolucionário” (DÜMLING apud COOKE, 2008, p. 269). Algumas músicas do filme também foram gravadas em locação, mas apresentadas em completa heterogeneidade espacial e/ou temporal com as tomadas visuais. E apenas sabemos que foi gravada em locação, mais ou menos nos mesmo lugares das tomadas visuais, devido a relatos de Hanns Eisler e de especialistas em sua obra53.

Por um lado, cabe perguntar se seria proveitoso do ponto de vista analítico, nesses casos, dizer que a música é não diegética ou que não pertence ao mundo das imagens filmadas; e, por outro lado, se seria proveitoso dizer que a música é diegética ou que pertence ao mundo das imagens filmadas. Parece difícil encarar essas perguntas sem responder com contradições. Contudo, talvez fosse mais interessante pensar que o mundo, seus elementos e a (encen)ação em si, ou o aspecto dramático, são sempre filtrados/fabricados/compostos pelo narrador (ou “voz” ou “mega-enunciador”, seja na produção ou pós-produção), ao mesmo tempo em que o aspecto épico, definidor do narrador, existe em função de levar algo ao espectador – o mundo, seus elementos e a (encen)ação. Assim, nesses casos, poderíamos dizer que a dimensão mundana (dramática) da música se faz presente, tal como a dimensão instrumental e ferramental (épica) da música se faz presente na edição e na montagem fílmica. O mundo se faz presente, em alguma instância, de forma viva pela música, que habita ou já habitou o próprio objeto fílmico ou seu espaço-tempo, por mais que pelo filtro da composição (do narrador). Ela pode estar a serviço de características do espaço acústico e da cultura sonora do objeto fílmico, a serviço do indizível e do invisível, a serviço da (encen)ação dos corpos, pode revelar a maneira de entender o mundo ou o objeto fílmico por parte dos realizadores e a maneira que querem levá-lo ao espectador, pode ser as cicatrizes sonoras

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grifadas e carregadas na pele do sujeito-da-câmera para e pelo espectador, pode ser fragmento do mundo (se não de forma física, em forma de estrutura).

O que dizer também das músicas visíveis de Happy mother’s day, Crisis, Primárias e Titicut folies etc. que navegam pelos ares da música invisível, transitando por diferentes esferas de composição narrativa, cumprindo, por vezes, papéis épicos e, por vezes, papéis dramáticos?

Enfim, o que estaria em jogo, sobretudo, seria reconhecer os aspectos que se aproximam do épico e os aspectos que se aproximam do dramático, assim, evitando o labirinto sem saída que nos impele a julgar a validade, a veracidade, a autenticidade etc. da música no filme a partir da ligação embrionária da música à diegese ou à não diegese, dando corpo à existência da música no espaço-tempo mundano, tal como às imagens. Isso não quer dizer que as expressões música diegética e música não diegética (e semelhantes) não sejam interessantes. Elas desempenham, desde a virada da década de 1970 para a de 1980, por meio de escritos seminais de David Bordwell e Kristin Thompson (2009 [1979]) e Claudia Gorbman (1980), papel fundamental no desenvolvimento dos estudos do som fílmico. O problema reside no limite conceitual que está circunscrito na noção da relatividade do tipo de presença do som ante um mundo determinado pela espacialidade visual ou no pensar do som a partir daquilo que é visto no campo ou a partir do que se imagina existir no extracampo. No domínio documental, essa maneira de pensar a música nos impulsiona para um debate infrutífero e indesejado, que nos faz entrar numa falsa polêmica, na qual a música, ou faz parte do mundo das imagens e é autêntica, ou não faz e é falsificada em sua maneira de se fazer presente, deturpando o real, desfigurando o campo e a tradição documentária. Com essas afirmações não estou deixando de dizer que a música surge, como os outros elementos fílmicos, na circunstância de tomada para e pelo sujeito-da-câmera em função do espectador, seja no estúdio ou em locação, em sua homogeneidade ou heterogeneidade com o mundo e com o campo visual. O que quero dizer, sobretudo, é que a presença heterogênea da música, tanto em relação ao mundo que a circunda no momento de sua tomada quanto ao campo visual fílmico, se questionada e invalidada em nome de uma essência documentária, leva consigo para o limbo boa parte das imagens da produção documental que lidam com estúdio e encenação construída, e, em medidas menos drásticas, as imagens tomadas em locações mais ou menos controladas, as imagens que contam com trabalho vigoroso de pré-produção, produção e pós- produção etc. E, além disso, existe uma fluidez significativa no transitar da música entre os aspectos

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épicos e dramáticos, seja a tomada da música homogênea ou heterogênea em relação ao espaço- tempo mundano que a circunda e ao espaço-tempo da tomada visual, partilhada em fruição na espectatorialidade.

Holly Rogers, na virada de 2014 para 2015, editou e lançou o livro mais completo, a meu ver, sobre música e som no documentário (Music and sound in documentary film) – leitura “obrigatória” para quem se dedica ao assunto. Acredito ser o primeiro livro inteiro escrito por acadêmicos dedicado exclusivamente à essa temática. Trata-se de uma coletânea de artigos inéditos escritos pelos principais pesquisadores internacionais que têm se dedicado ao tema. Rogers, na introdução do livro, faz uma longa discussão em torno da polêmica aqui levantada, talvez a mais completa discussão feita até agora. A autora, ao final, defende que a música pode potencialmente apagar as fronteiras entre ficção e documentário, embora também reconheça que o documentário, em sua tradição histórica, foi e ainda pode ser – para além de carregar um veio de “estética realista” e “intenção de autenticidade” – persuasivo, subjetivo, emotivo, narrativo. Contudo, nas escolhas desses trilhos, afirma a autora, a presença da “música não diegética” pode fazer a linha entre o não ficcional e o ficcional se flexionar. Bill Nichols, que escreve o prefácio do livro, pensa numa direção semelhante. Perspectiva que não compartilho, como explicitei anteriormente.

Carrasco (1993, p. 77-78), embora tratando de cinema ficcional, faz uma consideração que é valiosa para essa discussão.

Uma das piadas clássicas da história da trilha musical de cinema originou-se durante a produção do filme Um Barco e Nove Destinos [1943], dirigido por Alfred Hitchcock. Conta-se que durante as filmagens, Hitchcock teria feito o seguinte comentário: “Mas de onde supostamente vem a música no meio do oceano?”. Ao qual o compositor David Raksin respondeu da seguinte maneira: “Perguntem ao Sr. Hitchcock de onde vêm as câmeras”. [... David Raksin] já havia percebido que a trilha musical obedece a leis similares àquelas que regem todos os outros fatores responsáveis pela articulação fílmica. Poucas vezes alguém se preocupa em saber onde a câmera foi colocada para a obtenção de um determinado efeito. A pressuposição de que sem a câmera não existiria o filme é tão banal que ninguém se preocupa em questioná-la. O mesmo se dá no que diz respeito à montagem. [...] A pressuposição de que para se articular a narrativa fílmica é preciso que haja cortes e junções de planos é tão clara para o profissional, e tão sedimentada no referencial do público, que há muito já deixou de ser uma questão relevante para a discussão teórica. A troca de “farpas” entre Hitchcock e Raksin ilustra bem o fato de que o cinema demorou mais tempo para compreender que a trilha musical faz parte do grupo de fatores articulatórios acima citados. Em grande parte isso advém de um certo preconceito que data dos primeiros anos do cinema sonoro, quando acreditava-se que a música interferia na ilusão de

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realidade do filme, por isso ela deveria sempre ser justificada de alguma maneira

na ação filmada.

O que aí está em jogo é a ideia de que a música é um dos elementos articulatórios da narrativa. E se a compreensão disso no cinema ficcional demorou para se firmar entre profissionais e público, como afirma Carrasco, no domínio documental, parece ainda que as coisas não se assentaram. De qualquer forma, parece-me contraditório, senão ingênuo, acreditar que o documentário, sendo uma narrativa de características próprias identificáveis na história, possa carregar uma pureza objetiva inequívoca sobre a realidade e a verdade a ponto de se dizer que a música possa tirar a pureza supostamente presente de antemão nas imagens. De manipular uma suposta realidade, verdade e de tirar a objetividade, a música é capaz, mas o é tal como todos os outros elementos articulatórios da narrativa documentária. E não é por esse caminho que fundamentaremos debates frutíferos sobre a música no documentário.

A introdução de Rogers, apesar de diferir em parte da minha opinião, fez uma primeira base sólida para futuros desenvolvimentos dessa discussão, que, apesar de recorrente, foi ainda pouco aprofundada.