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O campo teórico que tenta dar conta do debate sobre a presença da música em estruturas narrativas (e no próprio cinema) é vasto, tal como a tradição das artes narrativas, e as funções desempenhadas pela música nas diversas estruturas são muitas vezes compartilhadas e semelhantes. Aqui, não pretendemos entrar com fôlego no campo do debate teórico e em análises musicais. O que buscaremos, sobretudo, é identificar formas que acreditamos ser relevantes para pensar a tradição documentária de forma diacrônica, tentando aproximar os estudos do som fílmico da teoria documentária.

Em linhas gerais, podemos afirmar que no documentário clássico existe uma predominância da música que tem sua tomada fundada numa heterogeneidade espacial e/ou temporal com a tomada visual e com a circunstância de mundo, tal como nas sinfonias metropolitanas. Embora as tomadas homogêneas entre música e imagens e a homogeneidade entre a tomada da música e sua circunstância de mundo em heterogeneidade com a tomada visual também apareçam com recorrência notável. No documentário moderno, a tomada da música aparecerá recorrentemente em homogeneidade com a circunstância de mundo, seja em heterogeneidade ou homogeneidade com a tomada visual. Embora seja notável a presença da tomada heterogênea da música tanto em relação à imagem quanto em relação ao mundo fílmico.

Esse apontamento gira em tormo de três tipos gerais de tomada da música, que, mais que classificatórios, servem de baliza para pensar a presença da música no documentário.

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O primeiro tipo de tomada da música (mais predominante no documentário clássico) é aquele que tem a fundação numa espacialidade e/ou temporalidade heterogênea em relação à fundação da imagem (cujo espectador frui no mesmo presente da música) e à circunstância do mundo fílmico. Em outras palavras, o lugar e/ou o momento no qual a materialidade sonora que chega ao espectador foi captada difere do lugar e/ou do momento no qual a imagem (que chega ao espectador ao mesmo momento) foi captada, tal como difere do lugar e/ou do momento ao qual o mundo fílmico se insere.

A música compilada (ou música de arquivo, numa analogia à imagem de arquivo) é uma daquelas que pode se estabelecer a partir de uma heterogeneidade drástica em relação à tomada visual e à circunstância de mundo fílmico. Industrial Britain e Terra sem pão são dois exemplos emblemáticos. O primeiro faz uso extensivo de música compilada composta no período romântico, como Coriolan Overture de Beethoven; o segundo faz uso extensivo da também romântica Quarta sinfonia de Brahms.

Hanns Eisler, em outro tipo de exemplo, reutiliza em New Earth composições de própria autoria feitas anteriormente para os filmes Song of heroes e Kuhle Wampe (Suite para orquestra nº 3 e 4, Die Ballade von den Säckeschmeißern).

Contudo, apresentar esse tipo de heterogeneidade não significa necessariamente que a música compilada não estabeleça relações com as imagens, com o mundo fílmico e com os outros sons, seja no âmbito dramático, épico ou no âmbito do objeto/temática/espaço/tempo fílmico – mesmo porque a marca da música compilada é sua heterogeneidade temporal (já que sua tomada se localiza num passado em relação à realização do filme como um todo) e não necessariamente a heterogeneidade espacial com o mundo fílmico.

Em relação às funções épicas e dramáticas, Hanns Eisler, com sua música compilada em New Earth, por exemplo, une e particiona planos, sequências, temáticas e cadencia paralelismos sensoriais e ritmos intraplano. Em The forgotten village, por exemplo, é usada a canção tradicional mexicana El muchacho alegre, compilada. O filme trata de uma vila mexicana e a música, que é cantada em espanhol, relaciona-se diretamente e minimamente, ao menos para o público norte- americano, ao povo ou ao território mexicano.

No período do documentário clássico, Spanish Earth talvez seja um dos filmes que mais emprega música compilada. Numa contagem despreocupada é possível anotar mais de dez

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músicas, que são, sobretudo, sardanas, tipicamente catalãs, coletadas, em sua maioria, em Barcelona, como especula Jordi Olivar (2014, p. 69) em sua análise do filme65. Nos filmes da época da Segunda Guerra, a música compilada também foi extensivamente utilizada, sobretudo os hinos e as marchas militares, que, embora muitas das vezes com tomadas espacialmente heterogêneas ao mundo fílmico e à tomada visual, relacionavam-se diretamente com a temática fílmica. A série Why we fight, Tunisian victory e The Battle of midway são exemplos emblemáticos.

A música compilada, nesse sentido, traz ao ferramental narrativo um potencial de associação – seja arbitrário, vago, inventado, volúvel, irônico, de má-fé, de boa-fé, absurdo, ético, não ético etc. – entre a música utilizada (e seu entorno sociocultural) e os elementos do mundo fílmico. Ela também, como no caso citado de New Earth, e mesmo nos casos de Industrial Britain e Terra sem pão, intencionalmente ou não, é capaz de cumprir os papéis clássicos da música fílmica orginal66.

Embora o uso da música compilada tenha sido comum no documentário clássico, a música de tomada heterogênea em relação à tomada visual e à circunstância do mundo fílmico mais recorrente foi aquela originalmente composta para o filme. E os papéis desempenhados por ela na narrativa são variados.

Um caso interessante é o do “repórter musical”, como o próprio Hanns Eisler (apud BRUNEL, 1999, p. 200) nomeou seu trabalho para Song of heroes, cujo assunto introduzimos no item 4.1:

Logo notei que eu não poderia escrever a música atrás de uma mesa, então eu comecei a trabalhar como “repórter musical”. Eu primeiro precisava de informação detalhada sobre a realização, depois eu gravei a música nativa das minorias nacionais e os sons nas fábricas. O trabalho não foi fácil para mim [...], então eu fiquei muito orgulhoso de ter gravado mais que setecentos e cinquenta metros de ruídos e música das minorias nacionais numa atmosfera incomum para mim. O segundo passo do meu trabalho foi feito em Moscou, onde eu compus a música fílmica, a qual gravei nos estúdios Mezjrabom. Primeiro, com o camarada Tretjakov, eu gravei a “Ballad of Magnitogorsk” do Komsomol [juventude do

65 Interessante notar que embora a música utilizada seja espanhola (instrumental e cantada em catalão), ela é muito

específica da Catalunha. Os conflitos de se trabalhar com música catalã e se falar da Espanha como um todo e de regiões que não são parte da Catalunha são debatidos de forma interessante por Jordi Olivar (2014) no artigo “This is their fight: Joris Ivens’s The Spanish Earth and the romantic gaze”.

66 Vale aqui lembrar, em referência à intencionalidade ou não dos realizadores, aquilo que Michel Chion (1994, p. 189-

190) menciona no item “Forced marriage” (casamento forçado) do Audio-vision. Ele propõe que se tire a música original do filme e coloque outras no lugar, aleatoriamente. Ele afirma que o “sucesso é garantindo”, em dez ou mais versões sempre existirão alguns incríveis pontos de sincronização e justaposição.

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Partido Comunista da União Soviética]. O texto era bem simples: Ural, Ural/ Cidade da montanha magnética/ Tem muito aço lá [...].

Apesar da tomada heterogênea da música, a ligação entre a visualidade e o próprio mundo fílmico foi buscada pelo compositor, que foi a campo, para estudar e colher materiais que o ajudassem na composição da música do filme. E, de fato, é notável traços melódicos e rítmicos que distoam do resto da obra de Eisler e que se aproximam das composições do período do “realismo socialista”, incluindo a canção composta com o intelectual, escritor e correspondente do jornal Pravda, Sergei Tretyakov.

O “repórter musical” apareceu em diversos outros documentários clássicos, em menor ou maior grau de proximidade com a circunstância de mundo fílmico. Alguns exemplos variados são Os pescadores de Aran, com música de John Greenwood, Triunfo da vontade, com música de Herbert Windt, The plow that broke the plains, The river e Louisiana story, com música de Virgil Thomson.

Em Os pescadores de Aran, como é apontado nos créditos iniciais, a música foi baseada em canções populares irlandesas, das Ilhas de Aran, região tematizada no filme. Mesmo em meio a uma orquestração tradicional, padrões melódicos e rítmicos da música celta da região são notáveis67.

Para compor a música de Louisiana Story, Virgil Thomson foi também um “repórter musical”. Ele foi buscar fontes materiais que o ajudassem a compor a música do filme no Archive of American Folk Song. Nele, Thomson debruçou-se sobre as gravações feitas pelos etnomusicólogos Alan e John Lomax nos anos 1930 (BRASSEAUX, 2009, p. 111). As gravações eram de canções populares dos Cajuns, descendentes de povoado francófono (Acadiano) do nordeste da América do Norte que se fixou no sul de Luisiana. O filme gira em torno de um jovem cajun, personagem principal do filme, e da invasão da indústria de petróleo em seu povoado em Luisiana. As canções populares formaram a base melódica do material musical do filme, e em 1949 Virgil Thomson ganhou o Pulitzer Prize na categoria de música pela sua composição para o filme, o primeiro e único compositor a ganhar o prêmio com música fílmica68.

67 Vale conferir a série de programas televisivos “Ceol na nOileán” da TG4, emissora irlandesa – que explora a tradição

musical de diversas ilhas irlandesas – em especial o capítulo “The stunning beauty and music of Aran island”, produzido em 2009. Disponível em: <http://youtu.be/0CMtBIMIS0Q>. Acesso em: jun. 2014.

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Virgil Thomson, em outros dois marcos do cinema documentário, The plow that broke the plains e The river, parte de uma abordagem semelhante à de Louisiana story para compor a música. Em The plow that broke the plains, Thomson incorporou a melodia de canções de trabalho (“I ride a old paint”, por exemplo) e de cowboy (“Get along, little dogies”, por exemplo), assim como hinos religiosos (“Old hundred”), difundidas nas Grandes Planícies (região a oeste do Rio Mississipi, nos Estados Unidos, que se estende do norte ao sul do país), região tematizada no filme.

Em The river, como aponta Neil Lerner (1999, p. 106), Thomson usou melodias presentes em The Southern harmony and musical companion, um livro de hinos e temas populares compilados por William Walker, lançado em 1835, e em The sacred harp, um livro também com hinos e temas populares, lançado em 1844 por Benjamin Franklin White and Elisha King. Ambos figuram entre os mais importantes e influentes livros de hinos e temas do sul norte-americano (LERNER, 1999, p. 106). Segundo Lerner (1999, p. 107), as melodias escolhidas por Thomson ligam-se geograficamente e historicamente à região cujo filme se dedica. Lerner pontua também que as fontes das músicas religiosas utilizadas são identificáveis “em termos de raça (branca), classe (geralmente mais baixa) e religião (protestante)” e que são potencialmente familiares na região do Rio Mississippi, que é tematizado no filme.

Ainda na perspectiva do “repórter musical”, temos o emblemático exemplo de Herbert Windt, que, em sua composição para Triunfo da vontade, combina melodias folclóricas germânicas, música marcial, temas do partido nazista e temas wagnerianos e “neo-wagnerianos”. Como nota Richard Barsam (1975, p. 26-28) em seu estudo esmiuçado do filme, Windt não usa, tirando pequenas exceções, os temas de Richard Wagner diretamente, “ele conta com a familiaridade do espectador com a obra de Wagner e cria uma nova música heroica que evoca o mundo wagneriano sem imitá-lo”. Com a combinação dos elementos wagnerianos com outros elementos musicais presentes e/ou exaltados no contexto nazista, Windt, como aponta Barsam, sugere a continuação da antiga tradição musical, numa perspectiva germânica, ao mesmo tempo em que cria uma música fílmica de contínua variedade e interesse.

A música que é fruto do “repórter musical” pode exercer papéis semelhantes ao da música compilada, sobretudo daquela que se aproxima mais da homogeneidade espacial com o mundo fílmico. A diferença principal estaria no potencial que a primeira ganha em relação às possibilidades narrativas. Ela, como fruto do compositor do filme, pode ser moldada, construída e

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arranjada para servir à narrativa em toda potencialidade e variedade funcional pertencente à música originalmente composta para o filme ao mesmo tempo em que pode manter/forjar o elo musical com o mundo fílmico, numa virtual homogeneidade.

Ainda em relação a esse primeiro tipo de tomada da música (heterogênea espacial e/ou temporalmente em relação à tomada visual e à circunstância de mundo fílmico), há outra situação interessante. É o caso em que a música é especialmente gravada para o filme, mas não necessariamente composta para ele, e quem a executa é um personagem ou uma figura que se liga diretamente ao mundo fílmico. Tomemos dois exemplos: Song of Ceylon e Target for tonight.

Para a realização de Song of Ceylon, foram levadas para a Inglaterra duas pessoas do Sri Lanka (Ceylon), Ukkuwa and Suramba (dançarino e percussionista do filme), para gravar voz, canto e percussão69. A tomada sonora em locação não foi possível e a solução encontrada pelos realizadores para incorporar elementos musicais do mundo fílmico autênticos foi levá-los ao estúdio em Londres. Situação semelhante já havia ocorrido em Os pescadores de Aran, quando nativos das Ilhas de Aran foram levados para os estúdios para gravarem suas vozes. Situação que, por sua vez, assemelha-se, mesmo que tangencialmente, à do já citado caso de Eu, um negro.

Em Target for tonight, a situação é um pouco distinta. O filme tematiza, no contexto da Segunda Guerra, uma missão britânica contra a Alemanha, atuada por membros da Royal Air Force. A música do filme foi executada pela Royal Air Force Central Band. Por mais que não sejam os mesmos membros da Royal Air Force que atuam nas imagens e que tocam, a instituição revela- se, para além das imagens, na materialidade musical – na instrumentação e na orquestração que nos remetem às bandas marciais, típicas de organizações militares, por exemplo.

Nos parágrafos anteriores, apresentamos diversos exemplos nos quais a música, mesmo tendo uma tomada espacial e/ou temporal heterogênea com a tomada da imagem e com a circunstância do mundo fílmico, pode estabelecer diversos tipos de relação com a narrativa, com o tema, com o espaço e o tempo fílmico. Podemos notar, em alguns casos mais e em outros menos, que o interesse em dar à música um lugar no mesmo mundo que o das imagens ou de trazer elementos musicais do mundo e dos elementos tematizados – ou que se relacionam de alguma

69 Informação obtida no site do arquivo e catálogo da “Colonial film: moving images of the British Empire”,

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forma ou que se relacionam forjadamente com esse mundo e seus elementos – para a dimensão fílmica já é notável no documentário dos anos 1930 e 1940.

Para além dessas situações (música compilada, “repórter musical”, música executada por pessoas relacionadas ao mundo fílmico), temos aquela situação em que a música é composta originalmente para o filme, executada e tomada numa material e virtual heterogeneidade (ao menos em grande medida) com o mundo fílmico. Músicos emblemáticos que trabalharam (também) nessa linha no documentário são, por exemplo, Aaron Copland, Benjamin Britten, Douglas Moore, Hanns Eisler, Marc Blitzstein e Walter Leigh. Apesar de lidarem com as especificidades éticas do documentário, a presença e o papel desse tipo de música são próximos daquilo que se observa no cinema ficcional e nas sinfonias metropolitanas, em todas suas funções épicas, dramáticas e líricas. O segundo tipo de tomada da música que gostaria de discutir, ocupa, por assim dizer, o meio do caminho entre o tipo de tomada debatido nos parágrafos anteriores e o tipo de tomada que se estabeleceria de forma definitiva no documentário moderno (a tomada da música em homogeneidade com a tomada visual e com a circunstância de mundo fílmico). Ela se funda em homogeneidade com o mundo fílmico, mas se estabelece em heterogeneidade com a imagem da tomada visual que chega ao espectador concomitantemente.

A diferença desse tipo de tomada para a música compilada que estabelece relações com o mundo fílmico reside no fato de ela ser feita para o filme ou, se não, ao menos, captada por seus realizadores ou captada num espaço e tempo homogêneo ao mundo fílmico e a seus elementos. Em alguns casos, como veremos adiante, ela pode até se fundar em homogeneidade com a tomada visual, mas o aspecto a se ressaltar é que ela rompe sua relação genealógica e se firma com imagens de outras tomadas visuais. Apesar de ser um tipo de tomada mais comum no documentário moderno, são diversos os casos em que aparece no documentário clássico.

Em Song of heroes, temos um exemplo bem claro. Hanns Eisler, enquanto fazia seu trabalho de “repórter musical”, captou sons e músicas em locação, em homogeneidade com a circunstância espacial e temporal do mundo fílmico. Contudo, esses elementos sonoros são levados ao espectador junto com imagens que não foram tomadas no mesmo espaço e/ou tempo das imagens. As melodias tocadas na flauta são um exemplo. O foco principal não está em buscar uma sincronia da música com a imagem. Ela atua como um elemento bastante funcional, unindo planos

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(música contínua junto a diversos planos visuais) e se associando a um lugar (estepes), ao mesmo tempo em que nos joga sonoramente ao mundo fílmico.

Em The voice of Britain, um filme que contou em boa parte com sons e imagens captadas simultaneamente, situação semelhante acontece. É comum ao longo do filme trechos em que a tomada da música é heterogênea, ao menos temporalmente, à tomada da imagem; embora a música e a imagem nasçam algumas vezes num mesmo presente, na edição e na montagem fílmica, elas são levadas ao espectador isoladamente, na companhia de música/imagem de outra circunstância de tomada, heterogênea. Notaremos casos semelhantes no documentário clássico, como em Children at school, Native Land e Listen to Britain.

O que está em jogo em primeiro lugar nessas situações não é a performance musical e nem a busca de levar ao espectador imagens e sons sincronizados. Antes disso, parece-me que existe a preocupação de dar um endereço, um lugar, um contexto à música que escutamos. De certa forma, é apresentar a música como materialidade viva do mundo fílmico, deixando as imagens livres no exercício de suas potencialidades narrativas que estão circunscritas para além da sincronia da tomada sonoro-visual.

Em Listen to Britain, em um caso extremo, isso fica bastante claro. Nele, a música (tal como os outros elementos sonoros) parece determinar o espaço e tempo do mundo fílmico de forma mais deliberada que as imagens. Ken Cameron (1947, p. 42), engenheiro de som do filme, ao falar de quatro exemplos de documentários de guerra que fazem interessante uso do som – Listen to Britain, Burma victory (1945) de Roy Boulting, Journey Together (1945) de John Boulting e A diary for Timothy –, infere que Listen to Britain é um filme ilustrado pelo uso dos efeitos-sonoros, segundo ele, “as imagens da tela podem ser consideradas como suplementares ao som”.

Embora seja comum no documentário clássico, esse tipo de tomada (heterogênea à tomada visual, mas homogênea à circunstância de mundo fílmico) encontra um espaço importante no documentário moderno. É por meio da música que é fruto desse tipo de tomada que a sincronia entre música e imagem pode se quebrar sem perder seu lastro de “realidade”, “factualidade”, “existência” e de “vocação” mundana presentes no estilo e ética do documentário moderno. É por esse caminho que podemos entender grande parte da articulação da música não sincrônica no documentário moderno, que é mais recorrente do que costumamos inferir.

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Um caso interessante é o de Primárias. Nele, é usada em diversos trechos a música de campanha de John Kennedy (uma versão da famosa canção de sucesso High hopes de Frank Sinatra) e em alguns outros trechos é usada a música de campanha de Hubert Humphrey – ambas em mais de uma versão e às vezes sincrônicas com as imagens. No filme, elas cumprem papéis clássicos da trilha musical – como leitmotiv e como ferramenta de união espacial/temporal/temática entre planos visuais – sem necessariamente serem “acusadas” de “manipuladoras”, como as músicas originalmente compostas para filmes. Nos créditos finais do filme ainda se informa: “Music/ by courtesy of the Candidates”.

Em Titicut folies também há uma situação interessante. Ela gira em torno da melodia de “My blue heaven”, tocada por um interno no trombone. Enquanto escutamos a música, é notável que a sincronia entre som e imagem não é o foco e tampouco é apenas a performance do interno que está em jogo. Há uma delicada construção e edição dos cortes entre os planos. Uma continuidade espacial e temporal narrativa é articulada a partir da música. Começamos a escutar a música quando temos no plano visual um interno de frente para uma janela, dentro do prédio. A