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O som no documentário : a trilha sonora e suas transformações nos principais movimentos e momentos da tradição documentária, dos anos 1920 aos 1960

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Renan Paiva Chaves

O som no documentário: a trilha sonora e suas transformações nos principais movimentos e momentos da tradição documentária, dos anos 1920 aos 1960

Campinas 2015

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes

Renan Paiva Chaves

O som no documentário: a trilha sonora e suas transformações nos principais movimentos e momentos da tradição documentária, dos anos 1920 aos 1960

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do Título de Mestre em Multimeios. Orientador: Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defedida pelo aluno Renan Paiva Chaves e orientada pelo Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco

Campinas 2015

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vii Resumo

Nossa pesquisa dedica-se à trilha sonora do cinema documentário. Nossa abordagem privilegiou uma perspectiva panorâmica que percorre a produção documentária em momentos-chave de sua tradição desde os anos 1920 até os anos 1960. Perpassamos pelas produções dos anos 1920 e 1930 que começaram a solidificar o campo do cinema documental, pelas escolas britânica, norte-americana e canadense de documentário entre os anos 1930 e 1950 e pelo free cinema, cinema direto, cinema verdade e cinema do vivido nas décadas de 1950 e 1960. Nesse trilho, e na visita aos seus arredores, empreendemos nossos esforços em entender as principais configurações sob as quais a trilha sonora do cinema documentário se estabeleceu e se transformou.

Abstract

Our research focuses on the soundtrack of the documentary film. Our approach privileged a panoramic perspective that runs through the documentary production at key moments of its tradition from the 1920s to 1960s. We spanned the productions of the 1920s and 1930s that began to solidify the documentary film field, the British, American and Canadian documentary schools between the 1930s and 1950s, and the free cinema, direct cinema, cinema vèritè and living cinema in the 1950s and 1960s. In this track, and in its surroundings, we undertook our efforts on understanding the main settings under which the documentary film soundtrack is established and how it transforms itself.

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ix Sumário

Introdução ... 13

1 O nascimento do documentário sonoro: a dimensão autoral e o suporte uno ... 19

2 A presença e a tomada do som: sons-gravador e sons animados ... 27

3 As vozes no documentário ... 31

3.1 As vozes no documentário clássico: para além da “voz de Deus”... 31

3.1.1 Por que “voz invisível”? Por uma fenomenologia da voz que não vemos ... 31

3.1.2 A voz visível ... 50

3.2 As vozes no documentário moderno: para além do sincronismo portátil ... 56

3.2.1 A voz fabuladora ... 58

3.2.2 A voz do mundo ... 77

4 A música no documentário ... 91

4.1 A (falsa) polêmica da presença da música no documentário ... 91

4.2 As sinfonias metropolitanas, sua música e a metáfora sinfônico-musical... 98

4.3 Breve consideração sobre a textura homofônica da música no documentário ... 113

4.4 A tomada da música: sua relação com a tomada visual e com a circunstância de mundo ... 114

5 Os outros elementos sonoros do documentário ... 129

5.1 A indiscernibilidade entre as pistas de música, voz e ruídos no documentário do período clássico ... 129

5.2 Os ruídos no documentário ... 154

Considerações finais ... 167

Referências ... 171

Filmes citados ... 181

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Agradecimentos

Pensar nos meus agradecimentos foi um exercício de memória. Uma memória que me lançou para o refletir da minha trajetória até o presente. Foi prazeroso lembrar de momentos da infância e da adolescência com a perspectiva de que o passado e suas nuances, seja por obra do acaso ou do destino, foram fundamentais no rumo que minha vida seguiu e se encontra hoje. E o mais interessante foi lembrar desse passado com o sentimento de gratidão, independente dos maus ou bons acontecimentos. Agradeço aqui aos amigos de Santa Isabel-SP e do CEFET-SP por estarem vivos e atuantes nesse exercício da memória.

Agradeço ao meu orientador Ney Carrasco que me acolheu já nos primeiros anos da graduação na Unicamp, sendo figura central na minha trajetória acadêmica. Nossos encontros, o fácil trato e a disposição em ajudar foram, ao longo do mestrado, fundamentais para dois anos e meio agradáveis, determinantes de um primeiro amadurecimento intelectual.

Agradeço aos professores membros da banca de qualificação e defesa, Fernão Ramos e Eduardo Mendes, pelas críticas e conselhos.

Agradeço aos professores da pós-graduação com os quais tive aula, Francisco Elinaldo Teixeira, Gilberto Sobrinho e Marcius Freire (e, também, Fernão Ramos e Ney Carrasco), decisivos no meu desenvolvimento teórico no âmbito do cinema documentário.

Agradeço aos amigos e talentosos pesquisadores cujos laços se fortaleceram ao longo dos anos do mestrado e que colaboraram diretamente com meu trabalho, especialmente Andre Checchia, Felipe Bomfim, Gabriel Tonelo, Lucas Bonetti e Nelson Pinton. Agradeço também aos demais amigos da pós-graduação pelas conversas, viagens e convivência.

Agradeço aos queridos amigos do dia a dia de Campinas-SP que me ajudaram, me formaram e me divertiram nesses últimos anos.

Agradeço aos meus pais, Angélica e Benedito, e meus irmãos, William e Thiago, por tudo que fizeram e fazem por mim. O mestrado sem o suporte deles seria inviável.

Agradeço à minha companheira Maíra Guimarães Paschoal por tudo aquilo que é fruto de um relacionamento de cumplicidade e pelas revisões e discussões que contribuíram diretamente com a dissertação.

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Agradeço à Fundação de amparo à pesquisa do estado de São Paulo (FAPESP) que, por meio do processo 2013/09996-1, deu o auxílio financeiro necessário ao desenvolvimento do meu projeto de mestrado.

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13 Introdução

O campo de debate sobre o cinema documentário encontrou um novo fôlego a partir dos anos 1970, seja na perspectiva mais historiográfica de Erik Barnouw, na perspectiva mais crítico-analítica de Richard Barsam ou na perspectiva mais teórica de Bill Nichols. No caminhar dos anos 1970 para os anos 1980, os estudos do som fílmico também começaram a surgir de forma mais consistente, nas perspectivas teóricas de, por exemplo, Claudia Gorbman, Michel Chion e Rick Altman, que, embora tenham deixado importante lastro conceitual para o campo, não se dedicaram ao cinema documentário. A aproximação ou união dessas duas temáticas – cinema documentário e som fílmico –, com a qual lidamos em nossa dissertação, apenas começaria a ocorrer na produção acadêmica, de forma mais consistente, a partir dos anos 1990.

Entre os trabalhos mais relevantes, temos: a dissertação de mestrado The classical documentary score in American films of persuasion: contexts and case studies, 1936-1945 de Neil Lerner (1997), que se debruça em filmes norte-americanos realizados entre 1936 e 1945 e que se enquadram na categoria “persuasivo”; a dissertação Polifonias do documentário: linguagens sonoras e plasticidades documentais (1930-1940) de José Alberto Pinto (2007), que esboça uma perspectiva sobre o documentário britânico e norte-americano dos anos 1930 e 1940 e também do cinema português; a dissertação Música, futurismo e a trilha sonora de Dziga Vertov de Michelle Magalhães (2005), na qual um estudo minucioso da trilha sonora de Entusiasmo (1930), de Dziga Vertov, é realizado; a tese de doutorado The kinetic and temporal interaction of music and film: three documentaries of 1930’s America de Claudia Widgery (1990), que se detém à análise dos filmes The river (1937), de Pare Lorentz, The City (1939), de Ralph Steiner e Willard Van Dyke, e Valley Town (1940), de Willard Van Dyke; a tese The incidental music of Benjamin Britten de Philip Reed, defendida ainda em 1987, cuja ênfase é dada aos filmes em que Benjamin Britten compôs a trilha musical; a tese Música em cena: à escuta do documentário brasileiro de Cristiane Lima (2015), que se dedica ao dito documentário musical; o artigo “Conventions of sound in documentary” de Jeffrey Ruoff (1992), que, apesar de citar documentários de diferentes épocas, foca naquilo que chama de observational films dos anos 1960 e 1970 e, em especial, na série An American Family, de 1973; o artigo “Historicising the ‘voice of God’: the place of vocal narration in classical documentary” de Charles Wolfe (1997), que se dedica ao tema da voz no documentário

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clássico, em especial ao filme Spanish Earth (1937) de Joris Ivens; o artigo “The audio-visual rhythms of modernity: Song of Ceylon, sound and documentary filmmaking” de Jamie Sexton (2004), que, apesar de esboçar uma perspectiva sobre as primeiras décadas do som no documentário, foca a análise em documentários britânicos, em especial em Song of Ceylon (1934) de Basil Wright; o artigo “Damming Virgil Thomson’s music for The River” de Neil Lerner (1999), fruto de sua dissertação; o artigo “Sounds real: music and documentary” de John Corner (2002), que dá ênfase aos documentários da televisão britânica; o artigo “Britten in the cinema: Coal face” de Philip Reed (1999), fruto de sua tese de doutorado; o artigo “Music and soundtrack in Joris Iven’s films” de Claude Brunel (1999), que se dedica à análise do som nos filmes de Joris Ivens, em especial Song of heroes (1932), La seine a rencontré Paris (1957) e Valparaíso (1962); o artigo “Musical texture as cinematic signifier: the politics of polyphony in selected documentary film scores by Virgil Thomson and Aaron Copland” de Neil Lerner (2004), que analisa trechos de fuga nos filmes The plow that broke the plains (1936) e The River (1937) de Pare Lorentz e The cummington story (1945) de Helen Grayson e Larry Madison; o artigo “The sounds of music and war: Humphrey Jennings’s and Stewart McAllister’s Listen to Britain (1942)” de David Rosen (2009), que faz uma análise esmiuçada da música de Listen to Britain (1942) de Humphrey Jennings e Stewart McAllister; o artigo “Aspectos da música no documentário brasileiro contemporâneo: algumas reflexões sobre o fazer e o pensar” de Guilherme Maia (2012), que apresenta uma discussão teórica sobre as questões que envolvem a presença da música no documentário e discorre sobre algumas práticas de uso da música no documentário brasileiro contemporâneo; o artigo “O som no documentário clássico: as tecnologias da intimidade na escola britânica” de Fernando Weller (2013), que articula a ideia de intimidade nos filmes Night mail (1936) de Harry Watt e Basil Wright e Housing problems (1935) de Arthur Elton e Edgar Anstey a partir da discussão dedicada ao som e a seu modo de ser captado e sincronizado; os subcapítulos “Music in documentaries” e “Music and non-performance-based documentaries” do livro Twenty four frames under: a buried history of film music de Russell Lack (1997); o subcapítulo “The documentary film” do livro A history of film music de Mervyn Cooke (2008); o livro Playing to the camera de Thomas Cohen (2012), que se dedica àquilo que tem se convencionado chamar de documentário musical; o livro Music and sound in documentary film, editado por Holy Rogers (2015), a mais completa obra sobre a temática, abarcando textos sobre as mais diferentes épocas e

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perspectivas teóricas, escritos por Carolyn Birdsall, James Deaville, Julie Hubbert, Thomas Cohen, Orlene McMahon, Mervyn Cooke, John Corner, Kevin Donnelly, Jamie Sexton, Marion Leonard e Robert Strachan e Selmin Kara e Alanna Thain.

Antes dos anos 1990, embora escassos, existem alguns relevantes textos, artigos e livros. Entre os trabalhos mais antigos, o livro Sound and the documentary film, inteiramente dedicado ao som no documentário, de Ken Cameron (1947), em termos teóricos, historiográficos e técnicos, figura como um dos mais relevantes. Há também o capítulo “O som” do livro Filme e realidade de Alberto Cavalcanti (1957 [1953]), assim como seu também relevante artigo “Sound on films” de 1939, nos quais são discutidos tanto o cinema ficcional como o documental. Nos anos 1930, encontram-se nos periódicos Sight and Sound, Cinema Quarterly e World Film News and Television Progress alguns artigos que se dedicam ao som no documentário, diretamente ou tangencialmente. O subcapítulo “Sound” do livro Documentary film de Paul Rotha (1939) também é bastante relevante, sendo, talvez, a primeira abordagem mais detalhada sobre a trilha sonora no documentário. Em 1953, Karel Reisz, que ficaria conhecido pela sua produção no free cinema, lançou o livro The technique of film editing, no qual dedica o capítulo “The documentary and the use of sound” ao tema do som no documentário. W. Hugh Baddeley, em seu livro The technique of documentary film production de 1963, dedica dois capítulos à temática, um sobre gravação de som em locação e em estúdio, métodos de gravação e sincronização (“Sound recording”), e outro sobre os aspectos ligados mais diretamente à produção e à pós-produção da trilha sonora (“The sound track”). Ainda nos anos 1960, Edgar Anstey, uma das principais figuras do documentário britânico, escreve a pedido da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (Unesco), para o congresso “The sound-track in the cinema and television” de 1966, o artigo “Some origins of Cinéma vérité and The sound-track in British documentary”, detalhando aspectos conceituais da tradição documentária entre os anos 1920 e 1960 e fazendo uma abordagem sobre as diferentes construções de trilha sonora no documentário, sobretudo, no britânico. Nos anos 1970, temos o texto “Documentary music” de Louis Applebaum (1974), dedicado ao debate da música no documentário norte-americano, britânico e canadense do período clássico.

De forma geral, os estudos do som no cinema documentário sofrem de mal semelhante ao dos estudos do som no cinema ficcional. Entre os (não abundantes) trabalhos, existe uma predominância daqueles dedicados apenas a um dos elementos da trilha sonora, a música – embora

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se note, em alguns dos trabalhos citados, discussões sobre os outros elementos da trilha sonora (sendo a voz o segundo elemento mais privilegiado). De qualquer forma, mesmo o debate sobre a música no cinema documentário sendo o mais numeroso, ainda é notável seu estado incipiente, assim como o é a discussão sobre a voz e os outros elementos sonoros.

Em nossa dissertação, tentamos contribuir com o debate do som no documentário buscando nos dedicar a todos os elementos sonoros da trilha sonora.

Nossa abordagem privilegiou uma perspectiva panorâmica que percorre a produção documentária de porte autoral em momentos-chave de sua tradição, desde os anos 1920 até os anos 1960. Assumimos que o documentário começa a se formar nos anos 1920 e a se estabelecer no princípio dos anos 1930 sob o nome de importantes realizadores, como Alberto Cavalcanti, Dziga Vertov, John Grierson, Joris Ivens, Robert Flaherty e Walther Ruttmann; entre os anos 1930 e 1950 vemos surgir as relevantes escolas documentárias britânica, norte-americana e canadense (que conformam, genericamente, aquilo que convencionamos chamar de documentário clássico); e no decorrer do pós-guerra, em especial a partir de meados dos anos 1950, um novo momento do documentário começa a emergir: o free cinema (Inglaterra), o cinema do vivido (Canadá), o cinema direto (Estados Unidos) e o cinema verdade (França) (que conformam, genericamente, aquilo que convencionamos chamar de documentário moderno).

Perpassando por esse trilho, e visitando seus arredores, empreendemos nossos esforços em entender as principais configurações sob as quais a trilha sonora do cinema documentário se estabeleceu e se transformou.

No capítulo 1, “O nascimento do documentário sonoro: a dimensão autoral e o suporte uno”, fazemos uma incursão no domínio não ficcional dos anos 1910 e 1920, traçando uma perspectiva sobre o nascimento do documentário sonoro.

No capítulo 2, “A presença e a tomada do som: sons-gravador e sons animados”, apresentamos as bases ferramentais que guiaram a abordagem dos filmes analisados, que, de forma geral, privilegiam e dão destaque para as configurações sob as quais a tomada do som ocorre.

No capítulo 3, “As vozes no documentário”, dedicamo-nos às diversas características com as quais a voz se apresenta no documentário clássico e no documentário moderno. Sob quatro grandes tipos gerais de voz – invisível, visível, fabuladora, do mundo – buscamos especificar

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variadas formas da voz se fazer presente no filme, observando as preponderâncias e as transformações operadas ao longo das décadas.

No capítulo 4, “A música no documentário”, abordamos, inicialmente, um tema que recorrentemente aparece e que envolve julgamento e noções de validade ética em relação à presença da música na narrativa documental. Em seguida, dedicamos um item às sinfonias metropolitanas e outro à característica homofônica da música que se faz presente no documentário. Por último, tal como fizemos com a voz, buscamos verificar as principais configurações sob as quais a música se fará presente ao longo das décadas analisadas.

No capítulo 5, “Os outros elementos sonoros do documentário”, dedicamo-nos a uma discussão que, cada vez mais, tem aparecido nos estudos do som fílmico e que tem relação com as indiscernibilidades – tanto do ponto de vista teórico, como de organização produtiva, como de perspectiva espectatorial – operadas pela diluição de uma inequívoca divisão entre voz, música e ruído como distintos elementos da trilha sonora. Em seguida, tal como fizemos com a voz e com a música, abordamos aquilo que se convenciona chamar de ruído.

Após as “Considerações finais” e as “Referências”, elencamos todos os filmes citados na dissertação e reproduzimos, como anexo, o script musical de Dziga Vertov para o filme O homem com a câmera (1929).

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1 O nascimento do documentário sonoro: a dimensão autoral e o suporte uno

Os indícios do processo de consolidação do formato sonoro no cinema não ficcional sugerem que houve, tal como no domínio ficcional, uma diversidade e irregularidade nas práticas de sonorização fílmica, que implicam uma complexidade em torno da temática do som no domínio documental nas primeiras décadas do século XX, ainda a ser investigada1.

Independente da diversidade e irregularidade das práticas, preocupações específicas com o som no domínio não ficcional já podem ser notadas nas décadas de 1910 e 1920.

A famosa antologia de acompanhamento musical Sam Fox moving picture music de John Stepan Zamecnik (1913), por exemplo, dedica toda uma seção de partituras, “Weekly (Pathé, Gaumont etc.)”, aos cinejornais (Figura 1). Samuel “Roxy” Rothapel, importante empresário e produtor do setor de teatros de exibição norte-americano, no artigo “Dramatizing music for the pictures” de 1914, também revela a especial atenção dada às músicas que acompanham os cinejornais:

Para o “Topical Special”, ou como é melhor conhecido, o “Weekly”, nós tocamos absolutamente de acordo com as cenas utilizadas, árias nacionais de diferentes países e pequenos trechos de marchas e valsas que se encaixam à cena [...]. Nós damos bastante atenção a essa porção do nosso programa e eu atribuo o maravilhoso sucesso de nosso “Topical Review” ao acompanhamento musical (ROTAPHEL, 1914, p. 23 apud DEAVILLE, 2015, p. 43)2.

Na década seguinte, preocupação e atenção semelhantes parecem se manter. Escritos aferem, inclusive, as especificidades do acompanhamento musical para o filme não ficcional. No capítulo “The editing of the newsreel” da Encyclopedia of music for pictures de 1925, outra importante antologia do começo do século, o autor, Ernö Rapée, escreve sobre as especificidades dos cinejornais, do intricado processo de acompanhá-los, de acompanhamentos musicais apropriados, dos melhores caminhos a se tomar quando há uma sequência, por exemplo, de batalha, de caráter diplomático e político ou ainda quando se mostra um presidente. No manual de acompanhamento Musical presentation of motion pictures (1921), o autor, George Beynon, também não deixa o assunto passar em branco e critica algumas maneiras que julga como

1 Sobre a diversidade e irregularidade das práticas de sonorização fílmica nas primeiras décadas do século XX, conferir

The silence of the silents (1996) e Silent film sound (2004) de Rick Altman; para o caso mais específico do cinema brasileiro, conferir O som no cinema brasileiro (2008) de Fernando Costa; para o caso mais específico dos cinejornais norte-americanos conferir The American newsreel: a complete history, 1911-1967 (2006) de Raymond Fielding.

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equivocadas de se acompanhar um cinejornal, apontando as melhores soluções a se tomar. Figura 1 – Sumário do volume 2 da antologia Sam Fox moving picture music

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Se podemos dizer que o cinema ficcional nunca foi mudo, podemos dizer algo semelhante sobre o cinema não ficcional: as práticas de sonorização o acompanharam ao longo do período silencioso. Quando o cinema não ficcional se torna sonoro no final da década de 1920, já existe um respaldo prático e, por mais que limitado, teórico, de forma semelhante ao que ocorreu no domínio ficcional.

Como marco simbólico da era sonora do cinema não ficcional, podemos citar a entrevista com Charles Lindebergh de 20 de maio de 1927 gravada pela Fox Movietone News, que, como The jazz singer (16 de outubro de 1927) no domínio ficcional, fez enorme sucesso com o público. Podemos citar também a curta sequência dos cadetes de West Point exibida em 30 de abril de 1927 no Roxy Theater em Nova York; a sessão de cinejornais, que incluía sequências sobre a cataratas de Niagara e um rodeio em Nova York, exibida em 28 de outubro de 1927 no Roxy Theater também; e a produção da Fox Movietone News que tratava do coral do Vaticano, da explosão de uma ponte e de um jogo da marinha, exibido em 3 de dezembro de 1927 (DEAVILLE, 2015, p. 44-45).

A edição sonora era rara e as produções tinham como centralidade o exibicionismo sonoro (ou, em outros termos, fetiche sonoro) que atraía grande quantidade de público. Segundo James Deaville (2015, p. 46-52), o fim da década de 1920 e os primeiros anos da década de 1930 se viram tomados por três principais tipos de produção (que privilegiavam o exibicionismo sonoro): talking celebrities (entrevistas e discurso de famosos); soundscapes (demolições, aglomerações, esportes, eventos) e musical performance (apresentações musicais)3.

Contudo, apesar de existir um certo consenso acadêmico sobre a existência de um cinema não ficcional silencioso e outro sonoro, sinto necessidade de aclarar aquilo que considero o nascimento do documentário sonoro, que se consolidará como um nicho específico do domínio não ficcional, diferenciável, por exemplo, dos cinejornais. E nesse sentido, prezo principalmente pela confluência de duas concepções.

A primeira (e mais mencionada) é a que se liga ao formato de distribuição das obras: tanto a parte sonora quanto a visual serem distribuídas como um único produto é um dado relevante a se considerar quando pensamos o filme como unidade sonoro-visual, fechada e una.

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Práticas deste tipo de distribuição dão seus primeiros passos num momento anterior àquele atribuído como o começo do período sonoro: nas décadas de 1900 e 1910 já se registram casos de cilindros sonoros, discos, partituras e indicações sonoras distribuídas com as imagens fílmicas. Assim como já se registram as tentativas de sincronização mecânica entre projetor fílmico e fonógrafos, gramofones e variantes e, também, as sincronizações artesanais (acompanhadores musicais, sonoplastas, comentadores, dubladores) desde o começo do século XX4. Podemos citar, por exemplo, no campo do não ficcional, as produções da Pathé Gazette, Hearst, Universal e Fox na década de 1910, que eram usualmente acompanhadas por músicos residentes dos teatros de exibição, com tratamento equiparável ao das produções ficcionais (ALTMAN, 2004, p. 382).

Contudo, a consolidação dos formatos comercialmente estáveis do filme sonoro-visual tomaria corpo a partir dos anos 1920, junto com a solidificação do domínio documental no cinema, num complexo de aperfeiçoamento da sincronização sonoro-visual em seu suporte fílmico e da amplificação sonora, que confluem com um momento relevante de uma segunda concepção.

Esta segunda se liga àquilo que podemos entender, avant la lettre, como desenvolvimento da dimensão autoral da composição, captação e edição do som fílmico, que começaria a se estabelecer no domínio documental no final dos anos 1920.

Filmes representativos da história do documentário, como Nanook of the North (1922) e Moana (1925) de Robert Flaherty, por exemplo, ainda não eram concebidos nem montados como obra sonoro-visual.

Nanook teve uma partitura composta ainda em 1922 por William Axt (COOKE, 2008, p. 267), que era músico contratado da Capitol Theatre, teatro no qual ocorreu o lançamento norte-americano do filme. William Axt foi responsável por muitos acompanhamentos musicais nesse teatro. Acompanhamentos estes que eram geralmente compostos sob um padrão, por compilação e/ou por trechos originais de música, não contemplando a ideia da dimensão autoral do som fílmico. Tanto é que o filme recebeu diversas sonorizações ao longo da história, não sendo uma obra fechada em aspectos sonoros, com um projeto sonoro específico.

Algo semelhante ocorreu com Moana, que recebeu em seu lançamento música de James C. Bradford (COOKE, 2008, p. 267), músico que compôs centenas de cue sheets ao longo

4 O Museu da Capitol Theatre ainda mantém muitas das partituras, indicações e orquestrações desses primeiros anos

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da década de 1920 pela Cameo Service Music Corporation, que as distribuía pelos teatros de exibição. Há também os casos semelhantes dos documentários Grass: a nation’s battle of life (1925) e Chang: a drama of the wilderness (1927) produzidos por Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper5, que receberam em seus lançamentos música de Hugo Riesenfeld (COOKE, 2008, p. 267), outro músico que trabalhou para teatros de exibição, mais especificamente os da Broadway. Ou seja, em linhas gerais, essas composições não advinham de um projeto fílmico sonoro, mas de uma sonorização estipulada e executada por músicos contratados pelos teatros de exibição ou por empresas distribuidoras de partituras, de forma desprendida dos processos de criação e produção das imagens fílmicas, geradas por seus realizadores.

Enfim, o que aqui considero como dimensão autoral dos aspectos sonoros do filme no domínio documental começa a se figurar, de forma representativa, em obras como Berlim: sinfonia de uma metrópole (1927) de Walther Ruttmann e O homem com a câmera (1929) de Dziga Vertov. Apesar de que as exibições desses filmes estiveram condicionadas a diferentes sonorizações (ou à não sonorização) de cada sala de exibição, ambos os filmes contaram com preocupação e planejamento efetivo de suas respectivas partes sonoras.

Berlim contou com a partitura minuciosa de Edmund Meisel, que trabalhou em proximidade com Walther Ruttmann em seu processo de produção6. Já Vertov escreveu instruções detalhadas para os sons (com divisões de planos, sequências e partes) de O homem com a câmera7. Para além disso, a preocupação, tanto de Ruttmann quanto de Vertov, com os aspectos sonoros do filme pode ser notada em seus artigos publicados ao longo das décadas de 1910 e 1920, evidenciando-se a efetiva importância que o som alcançaria em suas obras8.

5 Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper foram os realizadores do King Kong (1933), um dos marcos da

consolidação do formato da trilha sonora no cinema ficcional.

6 A partitura original sobrevivente de Edmund Meisel para Berlim, que é uma redução para piano, encontra-se no

Deutsche kinemathek – Museum für Film und Fernsehen. Orquestrações dela foram lançadas pela editora Ries & Erler, de Berlim. Existe uma cópia no setor de partituras da biblioteca do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas da versão orquestrada de Mark-Andreas Schlingensiepen (1987).

7 O script pode ser encontrado no artigo “Dziga Vertov’s Frozen Music: Cue Sheets and a Music Scenario for The

Man with the Movie Camera” de Yuri Tsivian (Griffithiana, n. 54, outubro de 1995, p. 92-121). Reproduzo no “Anexo I” versão traduzida para o inglês.

8 A respeito de Walther Ruttmann, verificar os seguintes textos Malerei mit Zeit (1919), “Wie ich meinen Berlin-Film

drehte?” (1927), “Die absolute Mode” (1928), “Sound films? - !” (1929), “Die Symphonie der Welt” (1930). A dedicação de Vertov sobre a temática do som no cinema pode ser verificada em seus textos presentes na coletânea Artículos, proyectos y diarios de trabajo (1974).

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Há que se mencionar também o filme Rien que les heures (1926) de Alberto Cavalcanti com música composta por Yves de la Casinière, da qual não encontramos a partitura. Contudo, conforme relata a historiadora de arte Marian Winter (1941, p. 150-151), ela está entre as composições originais notáveis do período silencioso, a qual a historiadora ainda se refere como “encantadora”. Em 1926, também temos o caso do documentário francês Un tour au large de Jean Grémillon, que, além de dirigir, compôs uma música original para pianola, que foi sincronizada com o projetor de imagens, sendo um dos diversos experimentos de sincronização entre imagem e som da década de 1920. Segundo o crítico André Cœuroy (1927 apud WINTER, 1941, p. 150), a música e as imagens não combinaram, e a experiência acabou por não ser bem-sucedida.

Esses exemplos contradizem, de certa forma, a afirmação de Bill Nichols em seu artigo “Documentary and the coming of sound” (1995, p. 273) de que nenhum dos documentários importantes dos anos 1920 citados por Jack C. Ellis e Lewis Jacobs9 fazem uso do som10.

De qualquer forma, esta dimensão autoral, na qual os sons estão inseridos em conjunto com as imagens no processo criativo e de produção do filme, fortaleceria-se no domínio documental a partir dos últimos anos da década de 1920 com os representativos filmes Melodia do mundo (1929) de Ruttmann, Entusiamo (1930) de Vertov e Philips radio (Industrial Symphony) (1931) de Joris Ivens, numa conjuntura em que o som óptico começava a se estabilizar nos esquemas de distribuição fílmica, figurando agora o som no mesmo suporte físico que a imagem. Isso, de certa forma, possibilitou um processo de uniformização dos formatos sonoro-visuais e o nascimento de uma concepção, finalmente, de documentário sonoro, que abarcaria a noção do filme sonoro-visual como objeto uno (tanto conceitualmente quanto materialmente) e a noção de uma dimensão autoral da parte sonora, que partilha com as imagens o estatuto da arte fílmica desde seu processo criativo e de produção, passando então, tal qual as imagens, pelos processos de captação e edição por parte do grupo realizador, figurando, também, como uma constante nos créditos originais dos filmes.

9 Nos livros de Lewis Jacobs (The documentary tradition, de 1979) e de Jack. C. Ellis (The documentary idea: a critical

history of English-language documentary film and video, de 1989), citados por Nichols, são elencados, por exemplo, os seguintes filmes: Berlim: sinfonia de uma metrópole, The Bridge (1927) de Joris Ivens, Chang, Melodia do mundo, Moana, O homem com a câmera, Grass, Rien que les heures e A sexta parte do mundo (1926) de Dziga Vertov.

10 “It is also noteworthy that not a single one of these films from the 1920s makes use of sound” (NICHOLS, (1995,

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As sinfonias metropolitanas, entendidas no entrecruzamento de um cinema não ficcional e de vanguarda, configuram-se como as primeiras obras de grande expressão da tradição documentária a dedicarem esforço, por parte do grupo realizador, na concepção e execução da trilha sonora. Esforço este que já podemos identificar nos ainda silenciosos Berlim: sinfonia de uma metrópole e O homem com a câmera.

Nos primeiros anos do formato sonoro, as sinfonias Melodia do mundo, Entusiasmo e Philips radio configuram-se como marcos representativos da efetiva prática sonora no domínio documental.

Melodia do mundo, que teve a trilha musical composta por Wolfgang Zeller, lida com uma confluência rítmica entre o visual e o musical (próxima à ideia de mickeymousing), além de construir ambientes sonoros e sons referenciais a corpos específicos (como navio a vapor e ondas do mar) a partir de instrumentos musicais, de usar a música como inflexão emotiva e de trabalhar os ruídos criativamente, fazendo uso ainda, por mais que pouco, do diálogo sincronizado, colocando em jogo as funções da trilha sonora que iriam permear a produção hollywoodiana clássica dos anos 1930 – fazendo-se notar que o som não era mais mero acompanhamento, mas sim um dos componentes fundamentais da construção fílmica. Com uma estrutura musical próxima à de Melodia do mundo, podemos mencionar o filme The oil symphony (1933) de Boris Pumpiansky, com trilha musical composta por Sergei Paniev, que é uma sinfonia metropolitana raramente citada na literatura da área do cinema, mas que se coaduna às outras sinfonias em seu formalismo estético. Num veio sonoro experimental, temos Entusiasmo, que contou com o trabalho sonoro de Pjotr Shtro, com uma música composta por Nikolai Timofeev para o filme e com um suposto trecho musical compilado da 3ª sinfonia (“O primeiro de maio”) de Dmitri Shostakovich11, e que coloca em questão, precocemente, noções de montagem sonora, de menor unidade sonora, de uso criativo dos ruídos e de coleta de sons em locação. O filme ainda despolariza o debate, então em voga, sobre o futuro do som no cinema, que variava entre a defesa do som sincronizado e não sincronizado: em Entusiasmo existe o uso equilibrado do som nos dois casos. Caso semelhante a Entusiasmo é Philips radio, que contou com música de Lou Lichtveld e edição sonora (e visual) de Helen van Dongen.

11 Em verdade, tal trecho gravado da sinfonia parece nunca ter sido escutado por ninguém após a primeira restauração

do filme. Existem trechos da gravação sonora que foram perdidos e supõe-se que tal trecho possa estar entre os perdidos. Verificar “The ear against the eye: Vertov’s symphony” de Oksana Bulgakowa (2006, p. 234 e 239).

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2 A presença e a tomada do som: sons-gravador e sons animados

Tomando por base as definições de imagem-câmera, imagem animada e circunstância de tomada de Fernão Ramos (2008, p. 71-90; 2012), podemos, de forma didática, definir três tipos gerais sob os quais o som se faz presente no cinema documentário – os quais iremos detalhar ao longo do texto.

Dois deles, a tomada de locação e a tomada de estúdio, ocorrem somente com a mediação do gravador, que registra o som de uma circunstância de mundo para que o espectador, em outra circunstância de mundo, frua-o. A situação na qual a imagem e/ou o som de uma circunstância de mundo deixa seu traço num suporte maquínico configura o que se pode chamar de tomada; e as configurações, sejam éticas ou estilísticas (ou de outra categoria), nas quais esta situação ocorre, determinam aspectos da circunstância de tomada na qual a imagem e o som ocorrem para e pelo espectador. A este tipo de imagem e som, Ramos atribui a expressão imagem-câmera, já que sua existência depende da mediação do suporte maquínico (a câmera). Dessa expressão podemos extrair, por analogia, a expressão som-gravador12.

A diferença entre os sons-gravador da tomada de locação e da tomada de estúdio é determinada, sobretudo, pelo local e circunstância na qual a tomada do som é realizada.

Ao som coletado em locação, podemos atribuir, tomando por base o conceito de encenação13 trabalhado por Fernão Ramos (2008, p. 39-48), a ideia de homogeneidade entre a

12 Entendemos aqui o “gravador” como um objeto maquínico genérico pelo qual a materialidade sonora do mundo é

captada e registrada.

13 “A encenação é um procedimento antigo e corriqueiro em tomadas de filmes documentários” (RAMOS, 2008, p.

40). Ramos (2008, p. 40-48), para efeito de exposição, distingue três principais tipos de encenação: a) encenação-construída: “é inteiramente construída, com utilização de estúdios e, geralmente, atores não-profissonais. A circunstância da tomada está completamente separada (espacial e temporalmente) da circunstância do mundo cotidiano que circunda a tomada. A relação entre espaço-dentro-de-campo e espaço-fora-de-campo é de heterogeneidade radical”; b) encenação-locação: “feita em locação, no local onde o sujeito-da-câmera sustenta a tomada. O diretor, ou o sujeito-da-câmera, pede explicitamente ao sujeito filmado que encene. Em outras palavras, que desenvolva ações com a finalidade prática de figurar para a câmera um ato previamente explicitado. A encenação-locação distingue-se da encenação-construída pelo fato de a tomada ser realizada na circunstância de mundo onde o sujeito que é filmado vive a vida. A decalagem espacial entre espaço in/off é mais situada em sua homogeneidade [...]”; c) encenação-atitude (encen-ação): “a encenação-atitude não existe, por isso podemos chamá-la de encen-ação: trata-se de um comportamento cotidiano, flexionado em expressões e atitudes pela presença da câmera. Diferentemente, as encenações construídas e locação envolvem procedimentos que isolam por completo a ação do sujeito na tomada de seu transcorrer cotidiano. Tais encenações são modos de agir que afunilam a alteridade que se oferece ao sujeito-da-câmera, retorcendo-o para o leque do outrem espectatorial: jogam assim à circunstância da tomada no funil da circunstância da fruição”.

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circunstância de tomada (ou espaço fílmico, no qual o som é captado) e a circunstância do mundo cotidiano que a circunda (ou espaço fora-de-campo, que está no entorno do lugar no qual o som foi captado).

Em relação ao som coletado em estúdio, podemos atribuir a ideia de heterogeneidade entre estes dois campos, já que “a circunstância de tomada está completamente separada (espacial e temporalmente) da circunstância do mundo cotidiano que circunda a tomada” (RAMOS, 2008, p. 40).

Contudo, a tomada sonora em locação não ocorre sempre na mesma circunstância temporal e espacial da tomada visual, que se unem em imagem e som para o espectador. Ou seja, a tomada sonora em locação não se restringe a uma homogeneidade com a tomada visual – cabe ressaltar que “som direto” não significa “som direto sincronizado (com a imagem)”: existem sons coletados sem captação de imagem (sendo o som e a imagem ancorados um ao outro apenas na pós-produção) e sons e imagens que são captados na mesma circunstância, nascendo ambos num mesmo presente. Da mesma forma, não podemos afirmar que a tomada sonora de estúdio se firme sempre numa heterogeneidade com sua respectiva imagem. Ou seja, existe tanto o som de estúdio que se ancora numa imagem de locação – numa diferente temporalidade e espacialidade – quanto o que se ancora numa imagem de estúdio, sejam eles (os sons e as imagens) feitas ou não numa mesma circunstância temporal e/ou espacial de tomada.

A outra forma do som se fazer presente no documentário se aproxima daquilo que Ramos (2008, p. 72) entende como imagem animada:

No caso da imagem animada, a relação com a circunstância da tomada muitas vezes está ausente. A imagem de animação pode ser inteiramente construída em computador, ou ser conformada através de procedimentos diversos de animação do movimento, ou ainda distorcendo, com recursos digitais ou não, a forma reflexo-perspectiva original da imagem-câmera obtida da circunstância da tomada.

Da mesma forma que a imagem animada, existem sons que podemos chamar, por analogia, de som animado. O artigo “Sinthetic sound”, publicado em 1933 no periódico Sight and Sound por Paul Popper, ilustra bem essa ideia. Nele é discutido um método de produção sonora que não depende da existência material do som: os sons são desenhados e pintados diretamente na película e reproduzidos pelos leitores de sound-on-film, como usualmente se fazia com os sons gravados. Há o interessante relato neste artigo de que em 1931 um inglês chamado E. A. Humphries conseguiu, por esse método, fazer soar a frase “all of a tremble”, criando, precocemente, o que poderíamos

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chamar de voz animada. No artigo é citado o desenho animado Pitch und Patch, que possui diálogo e música, mas que não contou com a voz de atores nem com instrumentos musicais. É ainda discutido no artigo a possibilidade de se criar uma sound-wave typewriter (máquina de escrever ondas sonoras), que seria capaz, além de reproduzir timbres conhecidos, de criar novos e inesperados sons, o que poderia ser associado aos princípios de um sintetizador sonoro, que começaria a tomar forma comercial apenas três décadas mais tarde (Figura 2).

Figura 2 – Representação gráfica de sons

Fonte: Popper (1933, p. 84).

Podemos citar também o caso do músico Arseny Avraamov, responsável pela parte sonora do documentário The plan of the great Works (1930) de Abram Room (dado como perdido), que também se aventurou pelo som animado, sendo um de seus percursores (Figura 3).

Cabe, contudo, pontuar que, se entendermos toda e qualquer mixagem e edição como distorção do som original obtido da circunstância de tomada, entramos num labirinto teórico no qual temos que encarar grande parte dos sons cinematográficos como som animado ou como sons flexionados pelo som animado, já que grande parte dos sons cinematográficos, desde os primeiros anos do cinema sonoro, são remodelados na pós-produção. Desta forma, prefiro chamar de som animado apenas aqueles sons que tiveram sua origem na ausência do gravador de som, não levando

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em conta as distorções; sem negar, contudo, a possibilidade de coexistência de sons-gravador e sons animados, que podem acabar gerando uma distorção perceptiva do som-gravador.

Figura 3 – Representação gráfica de sons de Arseny Avraamov

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31 3 As vozes no documentário

Não nos dedicaremos às vozes que se caracterizam como sons animados, já que nos filmes que nos serviram de fonte esse tipo de voz se ausenta. Dentro de cada uma das rotulações anteriormente feitas, existem variedades da voz que podem ser entendidas sob dois âmbitos gerais e que serão de grande valia para a discussão do documentário clássico: a voz invisível e a voz visível. Sem deixar para trás a voz invisível e visível, mais adiante, utilizaremos as ideias de voz fabuladora e voz do mundo para discutir o documentário moderno.

3.1 As vozes no documentário clássico: para além da “voz de Deus”

3.1.1 Por que “voz invisível”? Por uma fenomenologia da voz que não vemos

A presença do som nos primeiros anos do cinema sonoro – em seu formato sonoro-visual comercialmente estável, a partir do final dos anos 1920 – foi alvo de debate numa vasta quantidade de escritos. Neles, um dos temas centrais foi a voz e os limites que sua presença impôs à articulação das imagens nas etapas de pré-produção, tomada e montagem fílmica. No horizonte destas discussões estavam sobretudo os talking films e a presença da voz em formato de diálogo. Desde textos clássicos da literatura cinematográfica até textos mais recentes – como “The art of sound” de René Clair (1985 [1929]), “Manifesto: dialogue on sound” de Basil Wright e Vivian Braun (1985 [1934]), “A new Laocoön: artistic composites and the talking films” de Rudolf Arnheim (1985 [1938]), “Sound in films” de Alberto Cavalcanti (1985 [1939]), “Dialogue and sound” de Siegfried Kracauer (1985 [1960]), “Technology and aesthetics of film sound” de John Belton (1985), “The evolution of sound technology” de Rick Altman (1985) e “The voice in the Cinema: the articulation of body and space” de Mary Ann Doane (1985) –, é notável como essa temática assume um lugar especial na construção da teoria fílmica e no debate sobre a essência cinematográfica.

Contudo, num outro horizonte de referência fílmica – nas produções do domínio documental –, podemos notar que a voz desempenha, nesses primeiros anos de cinema sonoro, um

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papel mais libertador que limitante da articulação das imagens, ou, ao menos, as imposições e os limites impostos impulsionaram o desenvolvimento de diferentes estratégias do uso da voz.

Ao falarmos de documentário clássico, numa tentativa de pensá-los em termos estilísticos e éticos, dificilmente conseguimos fugir das expressões “voz over” e “voz de Deus”. Isso porque elas estão na base de valiosas ideias seminais da teoria do cinema documentário que caracterizam o documentário clássico dos anos 1930 e 1940 como educativo, propagandístico, persuasivo ou expositivo.

Pela força que essas expressões ganharam na teoria do cinema documentário, sobretudo em sua menção ao período clássico, somos impelidos a acreditar que as vozes do documentário clássico, em sua perspectiva semântica e expressiva, lidam com uma rigidez que se preocupa apenas com o ensinamento e a transmissão de conhecimento a partir de uma pretensão – com respaldo ético em sua contemporaneidade – de irrefutabilidade e de convencimento.

Essa perspectiva não está equivocada: em muitos dos cânones que fizeram parte de análises fundadoras das teorias do cinema documentário – como alguns dos documentários britânicos e norte-americanos –, tais características são perceptíveis e dominantes. O problema ocorre quando essa perspectiva se torna um estigma que nos impede de ver as nuances, inovações e usos criativos das vozes no documentarismo clássico, inibindo-nos, muitas vezes, de voltarmos nossa atenção a ele, considerando-o teoricamente e historiograficamente superado.

Enfim, existem alguns estigmas decorrentes do uso quase exclusivo dessas expressões-chave – “voz over” e “voz de Deus” – nas considerações teóricas e históricas a respeito das características da voz no documentário clássico que se reproduzem um tanto quanto inconscientemente.

A expressão “voz over” designa usualmente à voz um lugar que é ao mesmo tempo espacial e hierárquico. No que concerne ao espaço, está implícita a ideia de que a “voz over” se localiza num espaço desconhecido, que não é o das imagens, ou melhor, num não lugar, livre de uma materialidade espacial, que a exime de uma possível circunstância de tomada sonora. No tocante ao hierárquico, fica implícita a ideia de superioridade coerciva em relação aos outros elementos da articulação fílmica, sejam eles sonoros ou visuais, estando metaforicamente acima14. E essa é uma das maneiras recorrentes de pensar a voz do documentário clássico.

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Quanto mais “acima” está – ou seja, quanto mais próxima de uma ideia de inexistência de circunstância de tomada e quanto mais elevada for sua capacidade coerciva ante os outros elementos fílmicos –, mais a voz se aproxima da “voz de Deus”.

No tocante à voz do documentário clássico, “voz over” e “voz de Deus” são comumente tomadas como sinônimos, embora a expressão “voz de Deus”, que, em verdade, é um caso específico de “voz over”, ligue-se mais diretamente à ideia de onipresença, onipotência e onisciência da voz em sua assertividade, que se encaixa na ideia de documentário educativo, propagandístico, persuasivo e expositivo, sendo esse o prisma dominante sob o qual entendemos a voz do documentário clássico.

Mas se essas características são verificadas vastamente na fortuna crítica, qual seria o problema?

Fazendo coro ao pesquisador Charles Wolfe (1997, p. 149), se a noção de “voz de Deus” – aceita, rejeitada, defletida ou dispersada – desempenhou papel fundamental na construção e na escrita da teoria e história do documentário, ela também pode mascarar outros elementos sonoros que são intrigantes e instrutivos. Intrigantes e instrutivos porque nos contam algo sobre diferenças conceituais da estilística e ética documental e nos ajudam a desvendar um campo de referências históricas cruzadas no qual o espectador moderno pode se perder.

Quando comecei a me dedicar ao estudo do som no documentário clássico notei que a quantidade de filmes canônicos que fogem desses estigmas é surpreendentemente grande. E tornou-se nítido que as referidas expressões superestimam tanto o poder quanto a uniformidade do uso da voz no documentário clássico. Como uma primeira solução para a incursão nessa temática decidi evitar, quase como um exercício, o uso das expressões “voz over” e “voz de Deus” para os casos em que há a presença de uma voz cujo corpo não se vê (e que, tampouco, se caracteriza como “voz off[screen]”)15.

E, com o decorrer das análises, pareceu-me mais conveniente chamá-la de “voz invisível” por dois principais motivos.

‘Voice of God’: the place of vocal narration in classical documentary” (1997).

15 Não se caracteriza como voz off porque essa categoria pressupõe uma presença homogênea com o campo do filmado

(mesmo que construída numa pós-produção). No documentário clássico e na tradição documentária como um todo, a voz que não vemos ao longo do filme se funda, usualmente, numa heteregoneidade espacial e temporal em relação à tomada visual (ou ao menos numa construção que não deixa traços de homogeneidade).

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O primeiro deles foi a possibilidade de tirar da expressão que a determina a conotação de não lugar: não se vê o corpo que a emite, mas seu espaço de emissão, por mais que invisível, existe e pode ser analisado segundo sua materialidade e sob a ideia de uma circunstância de tomada sonora, ou, ao menos, como um som que advém de um presente diferente daquele da tomada visual, cujo ambiente proporciona, por exemplo, outro tipo de intensidade à imagem e ao som16.

O segundo motivo foi tirar a conotação de superioridade e de capacidade coerciva em relação aos outros elementos fílmicos e de articulação fílmica, em especial os visuais, carregada pelas expressões “over” e “Deus”, evitando, de certa forma, a caracterização geral que Bill Nichols (1983, p. 17), e um certo consenso acadêmico, coloca em jogo quando o assunto é o documentário clássico, de tradição griersoniana:

O estilo de discurso direto da tradição griersoniana (ou, na sua mais excessiva forma, a voz de Deus de The march of time) foi a primeira forma acabada de documentário. Como convém a uma escola cujos propósitos foram esmagadoramente didáticos, empregava uma voz fora-de-campo supostamente autorizada, contudo, frequentemente presunçosa. Em muitos casos essa narração dominava efetivamente os elementos visuais, embora pudesse ser, em filmes como Night mail ou Listen to Britain, poética e evocativa.

Considerações nesse trilho, apesar de exageradas17, são recorrentes no pensamento sobre voz no documentário clássico (tanto em debates, como artigos, conferências, palestras, cursos etc.), tal como se pode notar em textos referenciais como o de Consuelo Lins (2006):

Desde que o documentário tornou-se falado no final dos anos 20, desde que as imagens tornaram-se meras ilustrações de um comentário, que a voz que narra é uma voz masculina, desencarnada, “voz de Deus”, que tudo vê e tudo sabe18.

16 A ideia de se ter uma voz cujo corpo não se vê, mas que, ao mesmo tempo, se faz presente em algum lugar é

trabalhada por Michel Chion (1994, 1999) pelo conceito acousmêtre, uma junção de être (ser) com acousmatique (som invisível, ou aquilo que escutamos e não vemos/sabemos a fonte), que poderia ser pensado como um corpo que tem uma presença sonora (vocal) invisível. Contudo, o conceito de Chion se restringe a tipos específicos do cinema ficcional, como a voz de Mabuse em O testamento do Dr. Mabuse (1933), a voz do mágico no Mágico de Oz (1939), a voz da “mãe” em Psicose (1960), a voz do computador Hal em 2001: uma odisséia no espaço (1968). Para Chion (1999, p. 224), a voz do comentador é de outra categoria, ela ocupa uma estância fílmica removida, ela, diferente da voz acousmêtre, não “tem um pé na imagem, no espaço do filme”, ela não “visita”, diferente da voz acousmêtre, “as fronteiras, que não são nem o interior do espaço fílmico nem o proscênio – um lugar que não tem nome, mas que o cinema sempre põe em jogo”. Para Chion, a voz da narração é entendida como aquela que fala como um observador.

17 Em relação a Listen to Britain, ao qual Nichols se refere na citação, é, inclusive, complicado afirmar a presença de

narração. No começo do filme vemos e ouvimos a pessoa que nos introduz ao filme, e, ao longo do filme, as vozes que se aproximariam de uma ideia de narração são associáveis a ou identificáveis como trechos de transmissão de programas de rádio.

18 Com exceção à questão da voz masculina, que, de fato, é a que se faz presente e que, portanto, não se configura

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E o que está em jogo nesses pontos é arrancar do fosso do não diegético essa voz que não se vê e trazer à tona sua presença num lugar que não é apenas aquele das ferramentas de articulação fílmica. É dar uma dimensão espacial e temporal mundana, uma materialidade física que ocorre no espaço-tempo, encarná-la, evidenciar que nem tudo sabe e nem tudo vê.

Dessa mudança de perspectiva, o estudo que não apenas semântico da voz – ou seja, seu estudo recitativo e tímbrico, de circunstância de tomada, de montagem, de meios e modos de produção etc. – e o estudo das diversas possibilidades de relação da voz com a imagem – e não apenas aquela que entende a voz como determinadora das significações da imagem ou como articuladora fílmica – tornam-se mais palpáveis.

Em Noite e neblina (1955) de Alain Resnais, por exemplo, a heterogeneidade espaço-temporal entre a tomada da voz invisível e das imagens de arquivo é flagrante. A dimensão da história e da memória que vemos emergir da imagem e do som só são possíveis devido à diferença de circunstância de tomada que lhes são implícitas. O cruzamento de uma voz que fala de um passado com a carga de quem o conhece (com traços de uma escrita historiográfica) com a voz que no presente não muito distante daquelas imagens de arquivo fala de um passado (com a carga da memória que salta no presente) só é possível porque a diferença temporal da circunstância de tomada do som e da imagem não é tão grande e nem tão pequena (entre uma e duas décadas, aproximadamente)19. Ou melhor, aquela voz é fruto de uma década de digestão, não apenas individual, mas também coletiva, de acontecimentos do passado. A isso se adiciona o fato de o escritor da voz invisível ser o poeta Jean Cayrol, que foi prisioneiro de campo de concentração nazista (tema central do filme). E essa informação é valiosa para entender a voz e seu lugar de fala no filme tanto no que concerne ao estilo de escrita, que é oralizada, quanto à ética da produção do filme.

A diferença espacial também não é menos importante. A voz que não se altera muito ao longo do filme, naquilo que concerne à tessitura e timbre, nos traz uma carga contemplativa que é própria daquela que contém uma diferença brutal em relação à intensidade e ao risco do presente da circunstância de tomada das imagens que chegam ao espectador. Ou seja, o choque entre uma voz cuja tomada é feita na segurança do estúdio e uma imagem que é tomada em locação em uma

19 Mesmo quando as imagens não são de arquivo, elas são, sobretudo, de ruínas, repletas de rastros, restos, escombros

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dimensão inefável só é possível devido à heterogeneidade de circunstância de tomada entre som e imagem.

Na série de documentários Why we fight (1942-1945), as imagens do inefável também chegam ao espectador, mas a diferença temporal entre tomada visual e tomada sonora não é suficiente para que uma carga, nas proporções de Noite e neblina, de história e memória, ou contemplativa, se sobressaia. A diferença temporal entre imagem e som é, em boa parte do tempo, de um, dois ou três anos (apesar de contar com imagens de arquivo dos anos 1930, por exemplo). Fala-se de e mostra-se uma guerra ainda em curso. A característica da voz que nos salta é a daquela que se adere ao presente, ou melhor, que tem o potencial de mudar o futuro. Ela toma partido não sobre um passado (apesar de falar de acontecimentos de um passado recente), mas sobre um futuro que pode ser flexionado pelas ações de um presente, que se não é o mesmo da voz, é muito próximo dele. Ao tratar do Holocausto, Noite e neblina não consegue mudar o curso daquilo que foi, apenas consegue construir uma perspectiva daquilo que foi, potencialmente mudando o presente daquele que assiste ao filme, que está numa temporalidade outra. Why we fight, ao tratar da Segunda Guerra, pode potencialmente mudar o seu curso, pois a voz emerge de um presente compartilhado, um presente cujo tema, imagem e som compartilham.

Se pensarmos, sem muitos detalhes, no triplo presente trabalhado por Paul Ricoeur (2010) em Tempo e narrativa (presente preterita, presente praesentia e presente futura) notaremos que em Noite e neblina, a narrativa, em especial a voz, infla-se de um presente preterita, uma voz presente que fala e age por um passado, que já é memória, ou resgate de memória, devido às imagens de um presente anterior (ou que a ele remetem) – ela é diminuída de expectativa e carregada de memória; já em Why we fight, a narrativa e sua voz inflam-se mais de presente futura, elas aderem ao presente com uma carga de expectativa e previsão em relação ao futuro, que não se esgota porque seu tempo não acabou, ou seja, a expectativa ainda não se tornou memória, a guerra ainda não acabou. Nesse sentido, torna-se plausível considerar que a narrativa só se torna inteligível quando pensada segundo sua mediação entre diferentes momentos, ou seja, quando consideramos que ela possui um lugar e tempo de partida e um outro lugar e tempo de chegada no mundo.

Ao pensar em “voz de Deus” nesses casos, essa ideia de temporalidade nos é roubada. A voz de um Deus, tal como seu nascimento, vem do eterno. O tempo é mundano. Deus é eterno porque não se adere ao tempo; ele é universal, onipresente, onipotente e onisciente por esse motivo.

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A voz de Deus é o verbo, sem corpo, a voz do documentário é humana e sua dimensão temporal é essencial para entender a narrativa.

As implicações dessa perspectiva não excluem a existência da “voz over” e da “voz de Deus”; pelo contrário, comportam-nas e abrem uma gama maior de possibilidades na análise, que nos livra da inevitabilidade de considerar tudo aquilo que foge dos limites dessas duas expressões como experimentações isoladas, que pouco teriam a ver com o suposto verdadeiro documentário clássico. Há ponderação entre o verbum e a vox, ou seja, existem vozes que se aproximam mais de Deus, da eternidade, tal como existem vozes que se aproximam mais do humano, mundano, de sua temporalidade. A universalização, característica de uma voz poética, afasta-se da particularização de uma crônica, por exemplo. Uma tende ao eterno, por tratar de essências, e outra ao tempo (mundano), por tratar de acontecimentos efetivos localizados no passar do tempo. Contudo, ao se tratar de documentário, não se pode perder de vista que as universalizações “não são ideias platônicas. São universais parentes da sabedoria prática, portanto da ética e da política” (RICOEUR, 2010, p. 74).

Cabe também lembrar que nos anos 1930 não se usava a expressão “voz over” e que “voz de Deus” foi raramente utilizada para fazer referência ao tipo de voz que aqui discutimos20.

Entre os realizadores do documentário britânico e norte-americano, por exemplo, as duas expressões mais comuns eram narration e commentary, como se pode verificar vastamente nos créditos dos filmes, que dividiam nos escritos espaço com expressões como canned monolog, running monolog, running comment, running commentary, descriptive talks, stage lecture e off-screen interlocutor, off-off-screen narration, off-stage voice21. Nenhuma delas continha em seu sentido o fardo da voz de autoridade, de supremacia, de Deus.

20 Em nossas fontes dos anos 1930, encontramos três textos que usam a expressão “voz de Deus” ao falar de cinema.

No artigo “Propaganda: a problem for educational theory and cinema” de John Grierson (Sight and Sound, v. 2, n. 8, winter, 1933/1934, p. 120), a expressão é utilizada no sentido do provérbio “Vox Populi, vox Dei” (A voz do povo é a voz de Deus): “he is, indeed, bound in one sense or another, to the doctrine of democracy, and the proposition that the voice of the people may, under his proper guidance, become the voice of God”. No artigo “Introduction to a new art” de John Grierson (1934b, p. 104), a expressão “voz de Deus” é usada numa acepção próxima à nossa: “Notice how a commentator - a voice of God in the last instance - may be used effectively even in a story film”. No livro Documentary film de Paul Rotha (1939, p. 209), originalmente lançado em 1936, a expressão “voz de Deus” é usada em contexto pejorativo: “There is room, also, for experiment in relating more intimately the voice with the screen, perhaps to be achieved with less formality and more spontaneity, so that the speaker becomes a part of the film rather than the detached ‘Voice of God’ which seems so dear to some producers of documentary”.

21 Verificar, por exemplo, as críticas fílmicas “The break up” (Variety, 6 ago. 1930, p. 35), “Explorers of the world”

(Variety, 22 dez. 1931, p. 19), “Bring’en back alive” (Variety, 21 jun. 1932, p. 14), “Igloo” (Variety, 26 jul. 1932, p. 17), “Taming the jungle” (Variety, 6 jun. 1933, p. 14), “Hell’s holiday” de Frank S. Nugent (New York Times, 15 jul.

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Inclusive, era recorrente a crítica negativa às vozes que “falavam muito”, em tons acadêmicos e professorais, nas resenhas de documentários nos periódicos britânicos Sight and Sound, Cinema Quarterly e World Film News and Television Progress nos anos 1930. Essa crítica era recorrente porque, de fato, existiam vastos exemplos em que a “voz de Deus”, mesmo não sendo assim referida, fazia-se presente. Contudo, ao pesquisar a que filmes os textos desses periódicos dirigiam suas ressalvas, notamos que eram, sobretudo, cinejornais e filmes produzidos especificamente para a exibição em escolas, figurando fora da dimensão autoral do documentário sobre a qual o esforço acadêmico se debruça e sobre a qual se fundamenta o grosso da produção historiográfica e teórica do documentário. Concomitantemente, os filmes que hoje são canônicos para a teoria do cinema documentário eram, nesses periódicos, criticados positivamente pelo afastamento que muitas das vezes mantinham dessa ideia de “voz de Deus”.

E o que, de forma geral, era levantado nos textos desses periódicos dos anos 1930 no que diz respeito à voz?

O mais recorrente era a crítica aos comentários excessivos, em tons professorais, distantes das imagens. No texto “And now Rawtenstall” da Sight and Sound (1936-7, p. 155), por exemplo, o autor anônimo escreve que “pouco esforço foi ainda feito para produzir filmes educativos nos quais o som emerge como concomitante natural das imagens visuais” e lamenta, escrevendo que “o método bruto de adicionar comentário a uma série de imagens ainda persiste”. Na crítica “The face of Britain” presente na Sight and Sound (1935, p. 127), o autor anônimo chega a dizer que “comentário é sempre um problema” a ser resolvido. Na crítica “Industrial Britain” presente na Sight and Sound (1934, p. 145), o autor anônimo afirma que “ele [Industrial Britain] é somente estragado pelo comentário, que explica muito e é falado numa voz acadêmica que está fora de sintonia com as realidades da imagem” (INDUSTRIAL..., 1934, p. 145). Mesmo se tratando de um cânone, Industrail Britain não pode ser considerado, segundo John Grierson (1934a, p. 215), sob nenhum ponto de vista, algo representativo em relação à arte e à prática sonora, sendo esse filme um exemplo típico no qual podemos encontrar a “voz de Deus” e no qual a teoria consolidada encontra respaldo.

1933, p. 14), “Hei Tiki” (Variety, 5 fev. 1935, p. 31), “Land of promise” de Bige (Variety, 27 nov. 1935, p. 30), ou ainda os volumes dos anos 1930 do periódico Sight and Sound.

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Thomas Bird e William Farr, no texto “The world we live in” da Sight and Sound (1937, p. 146), inferem que o caráter persuasivo dos filmes não é alcançado necessariamente pelas informações que emergem do filme: enquanto informativo, parte dos documentários britânicos não necessariamente arremessam informações às nossas cabeças e, por esse motivo, concluem os autores, eles são persuasivos e também mais poéticos que científicos e dificilmente estatísticos. No mesmo texto, os autores ainda escrevem:

[...] o comentário na maioria dos casos [da produção não ficcional norte-americana] tentou carregar todo o tema e a imagem foi deixada como ilustrativa, com planos de cinejornais e cortes de outros filmes. O próximo passo é, obviamente, que se faça com que as imagens carreguem algo do tema e a maior parte das ações. Uma realização nesse sentido foi aparente em The plow that broke

the plains [...] (BIRD; FARR, 1937, p. 146).

No texto “Producing an educational film” de Woolfe Bruce na Sight and Sound (1933, p. 106-109), o autor deixa evidente que mesmo nos filmes produzidos com fins pedagógicos para escolas, o uso do comentário não era unanimidade no que diz respeito à eficácia educativa e que, na maioria dos casos, depois das imagens já editadas é que se avaliava a possibilidade de incluir comentário. O questionamento do comentário como ferramenta educativa se faz presente em outros tantos textos, como em “Films for school” de autor anônimo da Sight and Sound (1936, p. 98-99) e “Sound or silent film in teaching” de C. Ford e J. Fairgrieve da Sight and sound (1935, p. 26-30).

Ao passo que a crítica negativa ia por esse caminho, afloravam abundantemente os elogios aos filmes que empregavam estratégias diversas do uso da voz. No artigo “Camera on nature” da World Film News and Television Progress (1938, p. 125), o autor anônimo, ao falar dos êxitos da série Secrets of Nature (1922-1933), cita o uso inovador, por exemplo, do alongamento e do encurtamento silábico da emissão vocal do comentador, que imprimia nos filmes perspectivas rítmicas diversas. Ao se referir a um episódio específico da série, Plants of the underworld (1930), o autor se refere positivamente ao esforço dos realizadores em empregarem “versos brancos”, especialmente escritos para o filme. Charles Davy (1935, p. 110) na resenha “The Song of Ceylon” da Cinema Quarterly, refere-se ao comentário de Song of Ceylon (1934) como “uma brilhante ideia” e ressalta o interessante uso do texto de Robert Knox de 1680 como comentário, proferido num tom arcaico por Lionel Wendt, que “se encaixa exatamente na atmosfera do filme”, delegando à voz, mais que um caráter informativo, um elemento de construção de percepções.

Referências

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