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3.1 As vozes no documentário clássico: para além da “voz de Deus”

3.1.2 A voz visível

As vozes que estão ancoradas na imagem, na presença de um referente visual que se localiza, entende-se ou supõe-se como fonte sonora, fazem-se presentes desde os primeiros documentários sonoros aqui analisados, mesmo que ocupando uma dimensão menor que no domínio ficcional, tanto em termos quantitativos quanto de estrutura narrativa. E podemos notá-las nas tomadas de locação e nas tomadas de estúdio. A voz visível não está necessariamente sincronizada com os corpos e nem necessariamente vemos a boca do corpo que a emite, mas são associados, de alguma forma, com a voz que escutamos ou são imaginados como sua fonte sonora, mesmo que o espaço-tempo de tomada do corpo não seja o mesmo da tomada da voz.

Um primeiro exemplo a se considerar para encaminhar a discussão é o filme Entusiasmo de Dziga Vertov, especialmente a partir de dois aspectos. O primeiro deles diz respeito à pesquisa tecnológica desenvolvida para criar um aparato capaz de filmar satisfatoriamente em locação. Uma investida substancial para o período, que permitiu que Vertov coletasse e montasse sons “reais”. A concatenação e transformação destes documentos sonoros do mundo histórico dentro da articulação fílmica se coloca em pauta numa questão atualmente cara para a teoria do som fílmico que lida com as confluências, indiscernibilidades e fronteiras entre as pistas de música e ruído da trilha sonora28. O segundo aspecto interessante é que o planejamento sonoro do filme

28 Claudiney Carrasco, por exemplo, desenvolve esta temática em sua atual pesquisa “Música experimental e sound

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foi feito antes do visual (1929 e 1930, respectivamente)29. Ou seja, numa concepção invertida do que se tem como consenso (o som, de forma geral, é concebido conjuntamente ou posteriormente às imagens, com exceção das falas), evidenciando a relevância do sonoro na construção autoral da obra.

Nesse filme já podemos notar alguns aspectos que são relevantes para pensar a tradição documentária. A valoração do som fílmico e de sua coleta em locação, em ambientes abertos, indica a importância que o som potencialmente toma como referente do mundo histórico e de indicialidade em uma composição fílmica. Importância dada, até então e sobretudo, às imagens.

Apesar de já haver sons coletados em locação em Entusiasmo, a valoração desse tipo de tomada sonora apenas alçaria larga importância no documentário moderno, em suas perspectivas observativas, interativas e reflexivas – com claras diferenças éticas e estilísticas em relação a Entusiasmo, que se ancora mais numa (re)construção do mundo histórico, pautada fortemente na sua (re)montagem, numa ressignificação dos dados indiciais através do choque entre planos. A voz do documentário moderno se aproximaria daquilo que Fernão Ramos chama de encenação direta (cinema direto) e encenação interativa (cinema verdade), numa valorização ainda maior da indicialidade que aflora de dentro do plano, seja a partir do recuo do cineasta ou na sua interatividade com o filmado, no diálogo, na entrevista ou no depoimento. Contudo, se pensarmos numa espécie de genealogia da voz direta e interativa no documentário, já podemos encontrar em Entusiasmo vozes coletadas em locação, assim como no filme Housing problems, People of Britain de Paul Rotha e Children at school (1937) de Basil Wright, assim como nas falas de Triunfo da vontade (1935) e Olympia de Leni Riefenstahl30, no filme Pedra fundamental do edifício do Ministério de Educação e Saúde (1937) do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), dirigido por Humberto Mauro, na série Why we fight (1942-1945) produzida por Frank Capra; ou ainda, nas inúmeras produções não ficcionais da Fox Movietone News a partir de 192731. Há também o caso interessante de The voice of Britain (1935) de Stuart Legg, com falas gravadas em sincronia com a imagem em estúdios que eram, em verdade, a própria locação – os estúdios da B.B.C.

29 Verificar Artículos, proyectos y diarios de trabajo de Dziga Vertov (1974, p. 306-311) e “Música, futurismo e a

trilha sonora de Dziga Vertov” de Michelle Magalhães (2005, p. 96).

30 Em Triunfo da vontade e Olympia existe tanto tomada em locação como tomada em estúdio. Importante aclarar

também que a circunstância de mundo aí foi flexionada/criada de antemão tendo em vista (e para coincidir com) a mise-en-scène da circunstância de tomada.

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Dentro de uma perspectiva diacrônica da história do documentário, podemos dizer que a tomada de voz em locação se fortifica nos princípios éticos e estilísticos do fazer documentário conforme a voz invisível é questionada sobre sua validade em informar e falar do outro e pelo outro (independentemente de sua tendência lírica ou assertiva) e conforme a gênese do som filmado e seus aspectos indiciais ganham valor.

Contudo, neste trilho, no qual existe a valorização do espaço homogêneo entre os sons do mundo cotidiano e os do campo do filmado, é importante notar, além da voz invisível e da voz visível de locação, o lugar da voz visível coletada em estúdio, que se interpõe no caminho do documentário clássico ao moderno.

As vozes com referentes visuais coletadas em estúdio32 são mais frequentes que as de locação nos primeiros anos do documentário sonoro, mesmo que com inflexões próprias de cada filme, sem uma regularidade e convencionalidade exacerbada. Inflexões que variam do lírico ao assertivo, da sincronização gestual à labial, da inexata à exata, mas que dificilmente fogem daquilo que Fernão Ramos chama de encenação construída. Pode-se dizer também que essas vozes, até então, não exercem papel semântico fundamental na narrativa documentária, como se pode notar, por exemplo, em Melodia do mundo de Walther Ruttmann, Song of heroes (1932) de Joris Ivens, Os pescadores de Aran (1934) de Robert Flaherty, Song of Ceylon de Basil Wright, Coal face de Alberto Cavalcanti33 e Spanish Earth de Joris Ivens34.

A importância que elas ativam é de uma categoria que não é semântica. Em Os pescadores de Aran, por exemplo, as falas, que ocorrem tanto em inglês quanto em irlandês, cumprem, mais que tudo, uma função fática – ou seja, um tipo de fala que se foca no próprio canal de comunicação, estabelecendo ou criando um canal de comunicação entre aquele que fala e aquele que escuta sem a transmissão ou elaboração de ideias ou mensagens importantes. Apesar de haver existido no filme a preocupação de gravar as vozes dos nativos das Ilhas de Aran no estúdio, depois

32 No começo dos anos 1930, no cinema ficcional sobretudo, a captação era preponderantemente em tomada direta

(com sincronia desde o momento da captação da imagem), mesmo sendo em estúdio, aspecto que foi mudando no decorrer dos anos 1930, com o desenvolvimento do double system e das técnicas de edição e mixagem sonora.

33 Em Coal face existem vozes importantes à narrativa, mas elas nos são apresentadas em formas mais musicais, numa

função não corriqueira às vozes do cinema de então.

34 Apesar de estes filmes terem tomadas visuais em locação e em estúdio, as tomadas da voz são feitas em estúdio. Por

este motivo podemos dizer que as vozes destes filmes mantêm uma heterogeneidade entre a circunstância da tomada e a circunstância do mundo que a cerca, mesmo se pensarmos que em Song of Ceylon e em Os pescadores de Aran as vozes gravadas em estúdio, já na fase de pós-produção, são de nativos dos lugares filmados.

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das imagens já editadas, a preocupação não ocorreu devido aos aspectos semânticos, nem com a preocupação em criar diálogos e conversas que compusessem pilares para a narrativa e sua estrutura. Kevin Donnelly (2015, p. 140), em seu estudo sobre Os pescadores de Aran, afirma que a voz dos personagens cumpre, mais que uma função semântica, uma função estética, sendo um componente essencial do senso de autenticidade e da representação da cultura das Ilhas de Aran. Em Song of Ceylon, num exemplo parecido, as vozes visíveis também se afastam da função semântica mais corriqueira e funcionam mais como senso de autenticidade e referente cultural daquilo que é filmado (ou ainda numa função mais musical, como veremos mais adiante).

Contudo, no decorrer da década de 1930 já notamos a voz, até então mais “fática” e “estética”, ganhar contornos de função semântica, ocupando um lugar de maior destaque na narrativa fílmica. Em The King’s stamp (1935) de William Coldstream e Night Mail, por exemplo, o diálogo, em voz visível, em sua tomada de estúdio e em forma de encenação construída, já toma uma larga importância para a narrativa fílmica – as conversas são fundamentais para as tomadas, elas informam e direcionam o entendimento da narrativa. Pett and Pott (1934) de Cavalcanti e The voice of Britain (1935) de Stuart Legg são dois casos importantes também em que esse tipo de voz já se faz presente. Importância de proporções parecidas na narrativa que começaremos a notar mais frequentemente no documentário do período da Segunda Guerra e do pós-guerra – por exemplo, nos filmes North sea (1938) de Harry Watt, Valley Town de Willard Van Dyke, Target for tonight (1941) de Harry Watt e Basil Wright, Native land (1942) de Leo Hurwitz e Paul Strand, Listen to Britain (1942) de Humphrey Jennings e Stewart McAllister, Farrebique (1946) de Georges Rouquier, A diary for Timothy (1946) de Humphrey Jennings e Louisiana story (1948) de Robert Flaherty, num nível de encenação construída e dentro de uma articulação fílmica que se aproxima, guardadas as distinções, da condução narrativa dramática do domínio ficcional. Num trajeto em que a voz visível, de dentro do campo, com seu potencial referente visual, ganha valiosa importância na narrativa fílmica, mesmo quando dividindo espaço com a voz invisível.

Ken Cameron (1947, p. 5-6), sound supervisor da Crown Film Unit, afirma que no momento do pós-guerra há que se aceitar a existência de duas classes de documentários: uma que faz uso do comentário, de alguma música e efeitos, na qual “existe uma franca descrição de um incidente ou de um processo ou um estilo de vida”, como em London can take it; e outra que se aproxima do filme comum, comercialmente produzido, e de seus diálogos, que lida com a

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“imaginação, ou humanidade ou simplesmente com o conhecimento e observação de como as pessoas comuns deste país [Inglaterra] vivem, trabalham, pensam e agem”, como em Target for Tonight e Listen to Britain.

Pode-se notar o espaço que a voz visível ganha no pós-guerra mesmo nos filmes em que a voz invisível é preponderante, como nos curtas, de produção já descentralizada (ou melhor, mais diversificada), como A plan to work on (1948) de Kay Mander, Mining review 2nd year Nº 11 (1949) de Peter Pickering, From the ground up (1950) da Crown Film Unit (sem crédito para diretor), The undefeated (1950) de Paul Dickson e Transport (1950) de Peter Bradford.

O que de certa forma iremos notar com mais frequência são relações, conflitos, questionamentos, esclarecimentos etc. sendo articulados em forma de diálogo na narrativa. Características que irão ganhar mais força no documentário moderno.

Apesar da ligação que essas vozes (visíveis e de estúdio), de forma geral, mantêm com as imagens, devemos pensá-las segundo sua heterogeneidade em relação às imagens e também ao mundo que as circunda. E esses aspectos são importantes para demarcar distinções em relação à voz visível do documentário moderno. Uma das marcas do documentário moderno, como veremos mais adiante, é a homogeneidade da voz com a imagem e também com o mundo que a circunda. Neste tipo de presença, a voz infla-se de um presente praesentia, ou seja, infla-se de seu próprio ato no presente, valorizando sua própria emissão e materialidade, flexionada equilibradamente pelas memórias e expectativas do tempo que passa e está por chegar no presente, deixando registrado um acontecimento do mundo histórico em sua homogeneidade com a circunstância de tomada e com a tomada visual que a acompanha.

No documentário clássico, a voz visível de estúdio encontra um lugar entre a voz invisível do documentário clássico e a voz visível de locação do documentário moderno. Se, por um lado, já notamos a valoração da voz visível em forma de diálogo e conversa, tal como no documentário moderno, por outro lado, ela ainda se distancia dos valores éticos e estilísticos de tomada dos anos 1960. Ela não preza pela homogeneidade. Antes disso, ela se preocupa com a reconstrução, encenação ou representação de relações pessoais e sociais com referente num passado e num outro lugar que serve de molde (por mais que seja um passado muito curto em relação ao presente da tomada ou mesmo um presente que vira recorrentemente passado, por ser atual para o presente da tomada, como é o caso de relações de trabalho em instituições ainda

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existentes na época do filme, como vemos, por exemplo, em Night mail; e mesmo que a tomada ocarra num misto de locação com estúdio). Podemos dizer, assim, que a heterogeneidade temporal entre o que é visto e ouvido e seu referente no passado é marca da voz visível do documentário clássico, assim como a heterogeneidade espacial. Nesse sentido, a voz não é matéria em si, ou melhor, ela é um dos coadjuvantes da dramatização com diálogo, que passará a ser mais costumeira a partir da Segunda Guerra; diferente do que acontece com a voz do documentário moderno, que ganha valor em si, fundando-se sobretudo na inflação do presente praesentia, numa homogeneidade com o mundo histórico que a circunda.

Podemos dizer que a voz visível do documentário clássico, em linhas gerais, tem o passado – que é heterogêneo ao presente da tomada – como referência forte para a encenação da tomada no presente – mas que, contudo, não se apaga de expectativa, que é valorizada principalmente na articulação fílmica, que foca na perspectiva social da intenção fílmica, que é, sobretudo, educativa ou propagandística, ou seja, pensada para o futuro.

O que de certa forma iremos notar com mais frequência a partir da Segunda Guerra, é a tomada que evidencia as relações de trabalho e pessoais, as decisões políticas e ideológicas, as perspectivas, os julgamentos e a observação sobre o mundo a partir da ação e dramatização construída para a tomada, com personagens dialogando e agindo um sobre o outro em suas relações, simulando, tentando simular ou tangenciando o espaço-tempo mundano.

Cabe apontar que a voz visível do documentário clássico não tem a mesma mobilidade da voz invisível do documentário clássico, que consegue lançar mão de uma extensão maior de passado para engajar, a partir do presente, o futuro. A voz visível, tendo em perspectiva nossas fontes fílmicas, não lida com um passado muito distante, apesar de potencialmente poder encená- lo, ao passo que a voz invisível consegue, por exemplo, retomar questões históricas antigas para argumentar sobre questões de um passado curto ou do presente. Contudo, é interessante notar que ambas irão se engajar no futuro numa perspectiva equivalente, que é, sobretudo, a da intenção educativa ou propagandística.

Podemos, assim, notar nas preponderâncias da diacronia da história do documentário um percurso no qual a voz invisível começa a ceder espaço para a voz visível de estúdio, por mais que modestamente, sobretudo a partir da Segunda Guerra (em um primeiro momento a voz visível possui uma função mais fática e estética e num segundo momento ganha função semântica), que,

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por sua vez, cede espaço à voz visível de locação com o documentário moderno. Em outras palavras, um percurso no qual o informar e falar do outro e pelo outro (documentário clássico, em especial de 1929 a 1937) cede um modesto, porém crescente, espaço à (re)construção de fenômenos e eventos em formas de diálogos, em condução dramática (documentário clássico, em especial o da Segunda Guerra e do imediato pós-guerra), que, por sua vez, cede lugar a uma voz indicial, à evidência oral, revelada na homogeneidade entre a tomada e o mundo histórico (documentário moderno), numa valorização do ver o filmado falar por ele mesmo e da articulação fílmica valorizar este aspecto na montagem e em sua observação ou em sua provocação, intervenção e interação do cineasta com o filmado, como discutiremos mais adiante.

O que não se sabia, e tampouco estava em pauta – quando apontamos dentro do documentário clássico essas variedades de tipo de voz –, é que o lugar de fala não estava sendo efetivamente transformado numa perspectiva de valorização da alteridade ou nos trilhos da “história vista de baixo” em detrimento da “história vista de cima”, ou ainda nos rumos de uma “heteroglossia” em detrimento de uma voz que emana de um lugar social, político ou econômico uno; a fala e seu lugar só estava mudando de roupagem. Problematização de cunho parecido que também foi feita pelos defensores do cinema verdade aos realizadores do cinema direto norte- americano35.