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3. DIMENSÕES DO TRABALHO FEMININO: RELAÇÕES E PRÁTICAS NA PRODUÇÃO

3.2. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: ELEMENTO ESTRUTURANTE DAS RELAÇÕES DE GÊNERO

3.2.1. A família como lócus da reprodução da divisão do trabalho

A divisão da perspectiva do trabalho nos campos produtivo e reprodutivo implica dirigir a observação desde o mercado de trabalho (domínio público) até o ambiente doméstico

(domínio privado). Nesse sentido, é válido destacar que a família tem papel primordial na reprodução da dominação masculina, pois é nela “que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão” (BOURDIEU, 1999, p. 103).

É dentro da família, por exemplo, que meninos e meninas são iniciados à distinção entre atributos “femininos” e “masculinos”, espelhados nas brincadeiras consideradas adequadas para cada gênero. No universo das meninas, a simulação das tarefas domésticas ou das profissões associadas ao cuidado começam desde cedo entre bonecas e panelas de brinquedo. Do mesmo modo, elas são encorajadas a ajudar as mães nas tarefas domésticas, tão logo a idade permita, para que possam aprender a cuidar da casa. Já os meninos, ensinados no ambiente familiar a serem aptos à força, ao raciocínio e à coragem são estimulados a interagir com outros brinquedos (como bolas, jogos de construção e super-heróis) e não são tão comumente chamados a colaborar na divisão do trabalho doméstico.

Como a operação dessa dominação se dá aquém da consciência e do discurso, a divisão entre domínio público/masculino e domínio privado/feminino acabou por naturalizar a separação entre família e trabalho21. Nesse contexto, um dos aspectos mais relevantes da

articulação entre trabalho e família que incide diretamente sobre a vida das mulheres é a associação do cuidado como uma prerrogativa feminina. “Essa prática, ao ser socialmente construída e imputada como ‘responsabilidade’ ou naturalizada como ‘atributo’ feminino, se enfraquece como processo social e também onera as mulheres” (ARAÚJO; SACALON, 2005, p.22, grifos das autoras), especialmente porque o tempo destinado ao cuidado deixa de ser considerado trabalho e é visto como parte do ser mulher e seus papéis de mãe, esposa e dona de casa.

A associação das mulheres ao cuidado acaba por determinar boa parte de suas escolhas com relação a vida em geral. No entanto, com exceção das limitações biológicas de gestação e amamentação, todos os outros aspectos que envolvem cuidado no âmbito familiar podem ser

21 Tal distinção tem raízes até mesmo na produção do conhecimento científico. Segundo Bila Sorj (2013), até

poucas décadas atrás, a sociologia abordava os temas família e trabalho como esferas separadas, estudadas por subdisciplinas diferentes, e utilizava o conceito de trabalho apenas para referir-se ao trabalho remunerado, exercido, basicamente, pelos homens. No campo sociológico, a separação entre casa e trabalho estava diretamente associada às qualidades esperadas para homens e mulheres, o que configurava uma prescrição moral da divisão sexual do trabalho e uma interpretação da sociedade funcional à manutenção do sistema social. A mudança deste paradigma, segundo Sorj, veio de uma crítica profunda iniciada pelo movimento feminista, que apontou a estreita ligação entre trabalho e família na produção e reprodução de hierarquias e desigualdades de gênero. Entre os dados estatísticos oficiais, a desvalorização do trabalho reprodutivo refletia quadro semelhante. Até a década de 80, as pessoas cuja atividade principal se enquadrava nos “afazeres domésticos” eram classificadas como “economicamente inativas”, juntamente com os estudantes, aposentados e inválidos. Foi apenas a partir da década de 90 que o trabalho na unidade doméstica deixou de ser considerado como “inatividade” para ser um “trabalho não remunerado” (BRUSCHINI, 2007, p. 543).

desempenhados por homens e mulheres. O que leva a concluir que a associação entre cuidado e mulher é uma questão de gênero (ibidem, p. 48).

No que diz respeito aos arranjos familiares, são principalmente as mulheres que flexibilizam a jornada de trabalho remunerado para conciliar com as atividades relacionadas ao cuidado com a casa e a família – o que demonstra a interferência do trabalho reprodutivo na inserção e na permanência das mulheres na esfera produtiva/remunerada. Em pesquisa nacional realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc, 42% das mulheres inseridas no mercado remunerado afirmaram exercer uma jornada entre 20 e 40 horas semanais, e 33% trabalham mais de 40 horas (ÁVILA, 2013, p. 240).

Segundo a mesma pesquisa, entre as mulheres que pararam de trabalhar e aquelas que nunca trabalharam, as questões relacionadas à esfera familiar (cuidado com os filhos, a casa e o próprio consentimento do marido) são os principais motivos da não inserção no mercado de trabalho:

Quadro 2: Motivos para não inserção do mercado de trabalho

Razões de nunca ter trabalhado Razões de ter parado de trabalhar FILHOS/GRAVIDEZ

Para cuidar dos filhos/não tinha com quem deixá-los, etc.

28% 30%

MERCADO DE TRABALHO

Não teve oportunidade/falta de emprego

26% 25%

TRABALHO DOMÉSTICO

Para cuidar da casa/família/marido/parentes

22% 16%

CASAMENTO/MARIDO

Casou; marido não deixava ou prefere que ela fique em casa para cuidar dos filhos

21% 12%

NÃO TINHA NECESSIDADE

Não precisou trabalhar/marido sustenta a casa ou recebe pensão

13% 6%

INSATISFAÇÃO COM ANTIGO EMPREGO

Não gostava; trabalhava muito; salário era pequeno

---- 10%

TEMPO DE TRABALHO

Não tem mais força; está velha; já trabalhou muito

---- 6%

FALTA DE QUALIFICAÇÃO

Não sabe fazer outro trabalho; não estudou

7% 1%

ESTUDOS

Não trabalha para estudar ou não terminou de estudar

5% 3%

IDADE

Não tem idade suficiente

2% ----

SAÚDE

Para cuidar da saúde

1% 10%

OUTRAS RESPOSTAS 5%

Fonte: Tabela adaptada de resultados de Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo/Sesc (2010) In: VENTURI; GODINHO, 2013, Anexo 2, quadros 2 e 3.

Tendo em vista esse cenário em que o trabalho reprodutivo influencia diretamente a participação da mulher no mercado de trabalho, não surpreende que, em comparação aos homens, as mulheres dediquem um número significativamente maior de horas aos afazeres domésticos.

De acordo com dados da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) 2009, as mulheres dedicam 26,6 horas semanais ao trabalho doméstico e os homens 10,5. Entre as famílias com filhos pequenos (até 6 anos), as mulheres cônjuges22 dedicam em média 31,4 horas em comparação a 4,9 horas semanais de atividades domésticas executadas pelos homens. Essa média diminui quando as mulheres são as chefes de família, mas a desigualdade de gênero permanece, sendo o número de horas dedicadas por mulheres e homens de 25,6 e 5,4 respectivamente. O que sugere que a presença do marido incide numa maior carga de trabalho para a mulher em casa (SORJ, 2013, p. 484-5). Ou seja, a condição de ocupação dos homens (se desempregado; empregado em tempo parcial ou com menor renda), não incide na participação deles nas tarefas familiares. Em contrapartida, o ingresso da mulher no mercado não diminui significativamente sua jornada doméstica (DEDECCA, 2004).

No entanto, essa diferença na distribuição do tempo nas atividades de organização familiar não se restringe à realidade brasileira, ou mesmo aos países subdesenvolvidos. Em países como EUA, Bélgica, Holanda, França ou Reino Unido, em que existem políticas sociais mais amplas e consolidadas, a desigualdade no uso do tempo dedicado ao trabalho e às atividades de cuidado domiciliar permanecem (ibidem).23

Outro tema relacionado à relação entre família e trabalho que tem reflexo direto na inserção da mulher na esfera produtiva e nas horas destinada às atividades domésticas é a maternidade.

De todos os fatores relacionados à esfera reprodutiva, a presença de filhos pequenos é aquele que mais dificulta a atividade produtiva feminina, na medida em que o cuidado com os filhos é uma das atividades que mais consome o tempo de trabalho doméstico das mulheres. As mães dedicam a estas atividades quase 32 horas do seu tempo semanal, um número muito superior ao da média feminina geral e mais ainda ao de mulheres que não tiveram filhos (BRUSCHINI, 2007, p. 546-7).

Em levantamento minucioso sobre a evolução do trabalho feminino entre os anos de 1995 e 2005, Bruschini (ibidem) aponta que a inserção das mulheres no mercado de trabalho é diretamente proporcional à idade dos filhos: quanto mais nova a(s) criança(s), menor a sua participação na esfera produtiva. Embora haja uma evolução dessa inserção na década

22 De acordo com o IBGE, cônjuge é a pessoa unida à pessoa de referência da família (chefe de família), com ou

sem vínculo matrimonial, na ocasião da pesquisa (BRUSCHINI, 2007).

23 Para índices detalhados da distribuição das horas de trabalho doméstico entre homens e mulheres nos países

analisada, em 2005, a diferença da média da taxa de atividade das mulheres que têm filhos com menos de dois anos em comparação às que têm filhos entre 7 e 14 anos é de 54,9% e 72,7%, respectivamente.

Tendo em vista que, diferentemente dos homens, as projeções e os objetivos profissionais para as mulheres estão comumente condicionados aos planos de maternidade, a conciliação dos polos de trabalho remunerado e doméstico termina sendo, muitas vezes, fruto de culpa e insatisfação (LIPOVETSKY, 1997, p. 239). Desse modo, estabelecem-se novos tipos de sobrecargas emocionais às mulheres, geradas pelo desafio de ser eficiente no trabalho e cumprir suas atividades organizacionais na família e, ao mesmo tempo, corresponder às cobranças emocionais que são socialmente estimuladas (ARAÚJO; SCALON, 2005, p. 21).

Assim, apesar das dificuldades de conciliação entre trabalho e família, tem-se um quadro de ampliação constante da inserção de mulheres no mercado de trabalho remunerado, uma vez que a taxa de atividades das mães vem aumentando e alterando o perfil da força de trabalho feminina. No final da década de 1970, a maior parte das trabalhadoras brasileiras era jovem, solteira e sem filhos; no final da década de 2000, predominam as trabalhadoras mais velhas, mães e casadas (NEVES, 2013).