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2. CLASSE, GÊNERO E DINÂMICA DA VIDA SOCIAL

2.4. A MULHER DA NOVA CLASSE TRABALHADORA SEGUNDO O DISCURSO DOMINANTE

Beverley Skeggs (1997), ao pesquisar o processo de construção de subjetividade das mulheres da classe trabalhadora, apontou a importância de se reconhecer as posições de classe disponíveis e as categorizações através das quais as suas informantes poderiam (ou não) se reconhecer, e, com isso, conhecer e falar delas próprias. Nesse sentido, tomamos a publicidade como parte de um discurso dominante que se articula com narrativas diferentes em perspectivas complementares (como mídia, mercado e governo) e que, juntas, contribuem significativamente na produção das categorias de reconhecimento da posição de classe e de gênero, tal como sugere Skeggs.

Assim, para visualizar como as posições de classe e de gênero das informantes se relacionam com as leituras que elas fazem das representações das mulheres da nova classe trabalhadora a que têm acesso, mapeamos as diferentes formas pelas quais essa “personagem” é construída pelo discurso dominante. Para tanto, coletamos informações de diferentes fontes institucionais do governo e do mercado de comunicação (instituto de pesquisa, veículo de

comunicação, agência de publicidade e matérias jornalísticas com foco nesse público) com a intenção de reconhecer quais são as principais representações circulantes na composição da posição de classe e de gênero da mulher da nova classe trabalhadora.

Como princípio, interessa saber que, em todos os discursos dominantes (mídia, governo e mercado), a mulher é citada como protagonista do surgimento do fenômeno da chamada “nova classe média”, por sua inserção expressiva no mercado de trabalho (cita-se entre 9 e 11 milhões) nos últimos 15 anos. “O acréscimo da renda feminina potencializou o consumo e a melhoria de vida nas famílias. Ela se torna mais independente ou percebe que pode ser mais independente do homem” (BAKKE, 2013), afirma Rachel Bakke, Analista Sênior de Pesquisa do Data Popular.

O discurso governamental sobre nova classe trabalhadora pode ser observado através da coleção “Vozes da (nova) Classe Média”, editada em versões anuais dede 2012 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, com objetivo de compilar informações e identificar as múltiplas faces da classe média brasileira: como se comportam, como usam e avaliam os serviços públicos, suas necessidades mais abrangentes, receios, valores e desejos (BRASIL, 2012a, p. 8). O perfil dessa mulher, descrito na primeira versão da coleção por Renato Meirelles (sócio-diretor do Data Popular), é carregado de sentidos positivos que sugerem uma vivência muito mais idealizada do que próxima à experimentada no cotidiano brasileiro:

Pense em uma mulher, na faixa dos trinta anos, com curso superior, usuária habitual da internet. Essa mulher, que assumiu o posto de chefe de família, divide seu tempo entre emprego e lar, responde por boa parte da renda familiar e determina a distribuição de quase todo o orçamento doméstico. Com mais escolaridade que o homem, contribui cada vez mais para a renda, ganha dia após dia mais poder social (BRASIL, 2012a, p. 47).

Embora o texto faça uma apresentação positiva e sugira o poder social da mulher de denominada “nova classe média”, é necessário advertir que, “diferentemente da ideia que possa ficar, a mulher com ensino superior e a chefe de família não são preponderantes entre as mulheres da nova classe (assim como em nenhuma classe)” (SIFUENTES, 2014, p. 77). Além disso, o perfil traçado pelo texto governamental acaba por evidenciar o quadro da dupla jornada a que se submete esta trabalhadora e sua responsabilidade no sustento familiar.

Segundo Rachel Bakke, apesar do aumento da renda e do consumo, as políticas públicas voltadas para a classe trabalhadora abordam as questões de gênero e etnia apenas indiretamente, uma vez que a camada mais vulnerável à pobreza é de mulheres e negros. Ao

analisar o crescimento das mulheres desta camada como chefes de família, Rachel faz uma ponderação relevante: a mulher da nova classe trabalhadora chefia mais lares que na elite, mas isso está ligado a uma maior instabilidade nos arranjos familiares. Geralmente, são mulheres com filhos e separadas, muitas sem qualquer auxílio do ex-companheiro. “Isso coloca a pessoa numa situação de vulnerabilidade porque é uma única renda, de uma pessoa que já ganha menos renda, pra cuidar de uma família inteira. Quando tem dois ganhando a probabilidade da situação da vida ser melhor é mais fácil” (BAKKE, 2013), diz a antropóloga. Um aspecto que dificulta a realidade dessas mulheres é o acesso restrito das crianças à creche pública, mesmo que este seja um direito legal. Assim, a maternidade interfere diretamente na condição laboral das mulheres, especialmente as de baixa renda, que não têm recursos suficientes para sustentar os filhos em instituições privadas (SORJ, 2013). Isso leva as mulheres da nova classe trabalhadora a buscarem soluções privadas para o problema de conciliar família e trabalho, seja repassando os cuidados com os filhos para outras mulheres (da família ou da vizinhança), seja flexibilizando sua jornada ou sua forma de participação no mercado de trabalho.

Para a analista do Data Popular, a ausência de políticas públicas de educação infantil é um dos principais motivos que dificulta a inserção das mulheres da nova classe trabalhadora no mercado formal, levando-as a passar a maior parte da vida útil em casa. Diante desse cenário é que a ideia de empreendedorismo aparece como solução para esta parcela.

Entre a nova classe média é muito forte a informalidade do trabalho, o que se reverte na ideia de empreendedorismo, que, nesta camada, significa conseguir um trabalho que permita uma renda melhor que a inserção que ela vai ter no mercado

de trabalho só com o ensino médio. A ideia de empreender vem da necessidade de

flexibilidade e revela um problema público de assistência à família. Essas mulheres têm o desejo de se tornarem independentes, serem suas próprias patroas. Então ela tem essa expectativa de empreendedorismo, porque te dá flexibilidade para tentar

encaixar na sua vida a sua tripla jornada de trabalho. Mas é uma loucura porque

geralmente o autônomo trabalha mais que o regular. Só que isso acaba funcionando na cabeça dela por causa da flexibilidade de ter que buscar o filho na escola ou poder passar a manhã com os filhos. Porque é um problema público sério. Essas mulheres não têm com quem deixar seus filhos e elas têm que ir pro mercado de trabalho (BAKKE, 2013, grifos nossos).

Reflexões como a proposta por Bakke, no entanto, não aparecem no discurso dominante que é tornado público através da mídia. Ao contrário. Em matérias jornalísticas de veículos importantes nacionalmente, o empreendedorismo feminino na chamada “nova classe média” é associado a uma postura de firmeza, um atributo positivo ideal às personagens protagonistas de mudanças, tal como se apresenta em matéria do Portal G1, da Globo, que

aponta crescimento de 78% na renda feminina: “As mulheres da nova classe média não se acomodam no emprego, nem se contentam com o salário. Elas buscam enfrentar desafios na profissão, almejam uma carreira de sucesso. E são elas que têm o poder de decisão em casa” (G1, 2011a).

Com destaque para o aumento substancial de mulheres desta camada que buscaram realizar atividades empreendedoras juntamente com os afazeres do lar, a presidente da ONG Ame (Associação de Mulheres Empreendedoras), Cristina Boner, explica, em artigo na Folha de São Paulo, que o empreendedorismo “está no conceito de uma transformação de vida, e não apenas no advento monetário”. Essa transformação, explica Boner, passa pelo investimento em capacitação profissional, que, no caso das mulheres da nova classe trabalhadora, exige coragem, mas traz benefícios pessoais e também familiares. “As mulheres das classes menos favorecidas ensinam como a união do esforço com a capacidade de aprender é o caminho mais eficiente para o ingresso na estatística positiva de nossa economia”, conclui (BONER, 2013).

Esta experiência de emancipação, mesmo que não necessariamente planejada, e a inserção no mercado de trabalho têm proporcionado mudanças culturais entre as mulheres mais jovens da nova classe trabalhadora, que já priorizam o crescimento pessoal e profissional em detrimento do ideal de casamento, afirma Andre Torretta, sócio do Instituto A ponte Estratégia (TORRETTA, 2012, p. 45).

A expectativa do futuro melhor através da educação também está presente nos desejos das mães desta camada, que investem na escola de seus filhos com o desejo de que eles tenham vidas menos sofridas que as delas. Segundo Rachel Bakke, há, entre as mulheres da nova classe trabalhadora, um investimento muito grande na próxima geração. “Acredita-se que essa nova geração é o que vai alavancar a ascensão social ou que vai permitir a manutenção da situação. Você vê hoje as mulheres falarem em guardar dinheiro para poder pagar uma faculdade ou uma escola particular e isso é uma diferença muito grande”, (BAKKE, 2013) avalia a antropóloga.

Apesar do foco nos jovens e no futuro dos filhos, a mídia também reforça a ideia de que as mulheres da “nova classe média” têm investido no estudo próprio. Segundo matéria veiculada no Bom Dia Brasil, da Rede Globo, elas já representam 66% das universitárias brasileiras e 38% pretende fazer um curso de inglês (G1, 2012). A transposição da noção de “emprego” para “trabalho” como perspectiva profissional é apontada como perspectiva de 70% das mulheres mais jovens desta camada, segundo pesquisa “As poderosas da Nova

Classe Média”20, encomendada pela Editora Abril ao Data Popular e divulgada no mercado

publicitário em 2012 para difusão de informações sobre este novo “target”. De acordo com essa pesquisa, apesar da perspectiva de desenvolvimento profissional, elas não estão dispostas a abrir mão do equilíbrio entre vida pessoal e profissional em nome da carreira:

56% das entrevistadas afirmam que não sacrificariam tempo com a família pelo

trabalho. Dessa forma, estariam menos dispostas a trabalhar no final de semana em

troca de aumentos salariais, e 2/3 das que trabalham já pensaram em mudar para um emprego em que pudessem ter mais tempo para a família.Se pudessem escolher, 35% delas prefeririam ter um negócio próprio, e a “flexibilidade de horário do empreendedor é vista como uma vantagem maior do que a “possibilidade de ganhar mais”. O emprego público – menos sujeito a jornadas extras - também é muito desejado (EDITORA ABRIL, 2011, grifos nossos).

Para André Torreta, é preciso considerar essas mudanças ocorridas nas vidas das mulheres ao longo do tempo. “A mulher da nova classe média de hoje não é a mesma de 10 anos atrás”, ele diz. Segundo o pesquisador há um processo de empoderamento da mulher hoje específico nas camadas populares, advindo da renda, do trabalho e do consumo. Na classe média, esse processo já ocorreu desde os anos 70. “Hoje a mulher popular tem renda, tem trabalho e, quando incomodada, começa a chutar o “bêbado” pra fora de casa. Estamos hoje queimando o sutiã das mulheres que fazem parte da maior parcela da população brasileira”, avalia.

É válido perceber que, do modo como se constroem as representações sobre a mulher da “nova classe média” no discurso dominante, a inserção no mercado de trabalho está diretamente associada ao consumo – sendo este o foco e a ênfase da narrativa, como pode ser visto no material supracitado do Governo Federal.

Conquistando espaço no mercado de trabalho, antes inimaginável, ela rompe novas

fronteiras em seus hábitos de consumo. Roupas e produtos de maquiagem, antes

tidos como compras supérfluas, hoje são considerados investimento para essa jovem mulher que, na classe média, passa a ter profissões mais vinculadas ao atendimento ao público. Almejando novos empregos e estabilidade na carreira, ela se preocupa cada vez mais com sua aparência e não se importa em gastar com isto, pois os benefícios vão além da valorização da sua autoestima e garantem o sustento da

família e sua evolução profissional. Na outra ponta, ao observarmos as mulheres

mais velhas, enxergamos que profissões como a de empregada doméstica alcançaram ganhos reais de salários, uma vez que suas filhas procuram outras

20 Alguns dados sobre a pesquisa demonstram o tamanho do investimento e do interesse dos veículos em

compreender os hábitos e atitudes desse público. Os resultados, por sua vez, são partilhados com anunciantes e agências, como forma de melhor direcionar os conteúdos e estimular os anúncios, tendo em vista a ênfase na demonstração do potencial de consumo e de decisão dessas mulheres. A pesquisa da Editora Abril se baseou numa coleta significativa de dados: foram 20.033 entrevistas quantitativas, aplicadas em todos os estados brasileiros; 556 horas de observações etnográficas; grupo de discussão e entrevistas com especialistas como professores de sociologia e antropologia da USP.

perspectivas profissionais. Em outras palavras, as mais jovens estudam, têm emprego formal e constroem um plano de carreira. As mais velhas ganham mais pelo mesmo trabalho que há anos responde por sua renda (BRASIL, 2012a, p. 47, grifos nossos).

Assim, temos a consolidação da representação que a ascensão da nova classe trabalhadora é marcada pelo aumento de renda e pelo consumo, que carrega em si uma perspectiva de oportunidade, de otimismo, de mudança de vida, etc. “Elas têm a sensação de inclusão social no sentindo de passar a consumir tudo aquilo que elas não consumiam antes”, diz a Rachel Bakke (2013). Essa perspectiva de inclusão a partir do consumo se aproxima da ideia da posse de bens como resposta mais acessível ao exercício da cidadania do que pelas regras abstratas da democracia (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 29).

O consumo é também apontado pela pesquisa “As poderosas da nova classe média”, como um fator preponderante no perfil desta mulher. Segundo dados apresentados, 41% da renda familiar vêm da mulher (na classe A, a mulher contribui com 25% do orçamento) e 70% são as principais responsáveis pelas compras da casa da nova classe. Interessa notar que, nesse aspecto, a participação e a decisão da mulher da nova classe trabalhadora, no que diz respeito ao consumo doméstico, segundo a representação circulante nas matérias e nas pesquisas de mercado divulgadas, têm um caráter de planejamento, sendo a cautela nos gastos uma característica recorrente entre as personagens dos textos jornalísticos. “Há esse cálculo na compra. Até porque você tem uma carteira que é disputada por muitas coisas e ela vai ter que eleger prioridades”, avalia Rachel Bakke (2013).

A ideia passada pelo discurso dominante é de que, diante do desenvolvimento da renda desta parcela, há uma evolução no ciclo do consumo que pressupõe etapas na eleição das prioridades de compra. Num primeiro momento, as mulheres investiram em bens duráveis para a casa e itens relativamente básicos e, posteriormente, passaram a consumir bens antes restritos às mulheres da elite, como esclarece Demetrius Paparounis (2013), Diretor do Núcleo de Revistas Femininas Populares da Editora Abril: “A gente vai na casa das leitoras e já sobra dinheiro para uma certa sofisticação do consumo: máquina de lavar roupa, geladeira duplex, micro-ondas, computador. Então entram itens na vida dela que tem outro valor e isso vai na nossa forma editorial e na publicidade”.

O aspecto mais interessante, ao observar a formação desse discurso que constrói representações sobre a mulher da nova classe trabalhadora, é o modo sofisticado com que o mercado de comunicação coleta essas informações e apropria-se delas na sua produção de conteúdo e na divulgação entre anunciantes. As pesquisas de mercado (que incluem dados

estatísticos, imersões etnográficas, grupos de discussão e entrevistas com especialistas) são as principais fontes de redações jornalísticas, departamentos comerciais dos veículos, anunciantes e agências de publicidade no que diz respeito a quem é essa mulher, o que deseja, sua rotina, como age e como consome.

É preciso, nesse sentido, considerar que tanto os dados divulgados dentro do próprio mercado de comunicação, quanto aqueles que circulam para o público leitor e consumidor, são, muitas vezes, selecionados conforme o perfil que interessa traçar para esta mulher. As questões de desigualdade de gênero, as dificuldades decorrentes da instabilidade profissional ou da falta de políticas públicas, como refletidos brevemente aqui, não fazem parte do perfil da “mulher da nova classe média” que está nas matérias, nos relatórios e nas campanhas publicitárias. Vê-se, desse modo, que, “personagem mulher” presente no discurso hegemônico da “nova classe média” se distancia das mulheres reais que existem e compõem a população dessa camada (MADSEN, 2013, p. 136).

3. DIMENSÕES DO TRABALHO FEMININO: RELAÇÕES E PRÁTICAS NA