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6. APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO

6.2. METODOLOGIA NA PESQUISA: MÉTODOS DESCRITIVOS E TÉCNICAS DE COLETA E ANÁLISE

6.2.2. Estudo de caso

Tendo em vista a nossa intenção em observar a relação instituída entre publicidade, consumo e representações de classe e gênero, entende-se que esta pesquisa deve considerar os enfoques cultural e processual para a análise (PIEDRAS, 2009) - sendo o foco mais específico nas receptoras para as quais se destinam estas mensagens. Deve-se, portanto, observar a articulação da comunicação publicitária com setores como o mercado e o Estado, bem como a percepção de seu papel pelas mulheres da nova classe trabalhadora, que, em interação com as representações ali circulantes, têm, na publicidade (e no consumo por ela incentivado), um importante meio para a constituição de suas identidades de classe e de gênero.

A construção desta pesquisa foca-se nas práticas cotidianas de um grupo específico inserido em um contexto social e cultural também delimitado, o que para Bourdieu constitui um “caso particular do possível”. Segundo o autor, não é possível “capturar a lógica mais profunda do mundo social a não ser submergindo na particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada e datada, para construí-la, como ‘caso particular do possível’ [...] cujo objetivo é encontrar o invariante, a estrutura, na variante observada” (BOURDIEU, 1996, p. 15).

A análise do habitus de gênero e de classe das mulheres da nova classe trabalhadora a partir das trajetórias e disposições de um grupo específico se dá, portanto, pela observação das particularidades, do invariante, presentes em histórias coletivas diferentes (ibidem). Assim, diz García Canclini, se o habitus recorre a interação entre a história social e a do indivíduo, “a história de cada homem pode ser lida como uma especificação da história coletiva de seu grupo ou sua classe e como a história da participação em suas lutas do campo” (1990, p. 35).

Portanto, para analisar a relação instituída entre as mulheres e as representações presentes na comunicação publicitária, é preciso manter o olhar atento às práticas sociais em relação ao contexto em que se produzem. O que, nesse caso, pressupõe, por um lado, considerar, em níveis micro e macro, as tensões provenientes das relações e disputas de gênero/classe e as diferentes dimensões percebidas e experimentadas no que diz respeito ao

trabalho. Por outro, em nível mais amplo, implica considerar o pano de fundo da dinâmica social e econômica que configura a constituição da nova classe trabalhadora brasileira.

Isso posto, entendemos que nossa pesquisa sugere a adoção de um método descritivo como o estudo de caso, uma vez que temos em pauta uma “inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente evidente e onde múltiplas formas de evidência são utilizadas” (YIN apud DUARTE M., 2011, p. 216).

Quando falamos de consumo e da recepção do gênero publicitário, temos em vista um fenômeno cujo contexto torna-se complexo por tensionamentos sociais, culturais e comunicacionais e tem implicação direta nos modos de apropriação da mensagem. A compreensão do fenômeno pressupõe a observação de seu funcionamento a partir de lógicas internas e em relação ao seu contexto.

Ao fazer um estudo de caso, o pesquisador que o inscreva em reflexões sobre o campo perguntará que lógicas interacionais são relevantes para seu funcionamento; e como estas lógicas se relacionam com processos sociais outros que caracterizam o fenômeno. Para poder perceber tais relações, será preciso inferir, através do exame de indícios pertinentes para isso, o que é propriamente comunicacional e o que deriva de circunstâncias sociais de outras ordens, “modulando” a comunicação (BRAGA, 2008, p. 87)

De modo sintético, na perspectiva de Braga (2008, p. 81), é parte importante trabalho do estudo de caso o levantamento de indícios. Esses não necessariamente remetem direto à realidade, pois devem ser vistos de modo articulado. Após levantar os indícios, o pesquisador deve reconhecer a sua relevância para o objeto em análise, para o seu campo e para o problema de pesquisa. Somente, então, é possível articulá-los para construir inferências sobre o fenômeno. Para o autor, “isso só pode ser feito através de um tensionamento triangular entre situação empírica, bases teóricas e problema de pesquisa” (ibidem).

A proposta de considerarmos de modo mais amplo a relação das entrevistadas com as representações do trabalho feminino presentes nas mensagens publicitárias (incluindo desde experiências advindas das mediações de socialidade e ritualidade, até a evidência do processo de publicização como forma de alterar esta relação entre marcas e receptores/consumidores), parte desta necessidade de levantar indícios de forma mais abrangente. Somente assim entendemos ser possível reconhecer os aspectos que têm relevância para a construção de inferências sobre o papel da publicidade na conformação da identidade de classe e de gênero das mulheres observadas.

Para Braga (ibidem, p. 85), o trabalho do estudo de caso resulta em dois tipos de inferências: 1. aquelas que remetem às regras de funcionamento e à lógica interna do caso singular [o que diz respeito à relação entre as mensagens publicitárias e as mulheres, considerando seu contexto particular] e 2. aquelas que inserem o caso nos contextos sociais de interesse da pesquisa e que permitem proposições de ordem geral sobre o contexto [nesse sentido, tratamos das possíveis inferências que reflitam a recepção e consumo da publicidade e as relações entre gênero e classe].

Quando definimos a necessidade de trabalhar este estudo na perspectiva do consumo, temos em mente uma análise que deve dar conta de uma pluralidade de textos e, “como afirma García Canclini, combina-se o olhar telescópico das enquetes para mapeamento geral do consumo e o olhar íntimo do trabalho de campo” (RONSINI, 2010, p. 3). Nesse sentido, entendemos ser necessário traçar um mapeamento mais abrangente do recorte das mulheres da nova classe trabalhadora para, a partir de um conjunto de dados mais amplos, pensar a relação entre o contexto social observado e a realidade vivida pelas mulheres observadas. “Tal como argumentamos aqui, a dimensão dos fenômenos sociais se entenderia melhor se, ao mesmo tempo que se conhecem as dimensões deste fenômeno, se identificam as dimensões que os sujeitos dão a estas dimensões” (OROZCO; GONZÁLEZ, 2012, p. 31, tradução nossa).

Ao tomarmos o estudo de caso como um método descritivo que possibilita organizar dados sociais (DUARTE M., 2011, p. 217), entendemos que sua realização sugere uma análise intensiva de informações, cuja coleta se dá a partir de técnicas que variam conforme o caso. De acordo com Ronsini (2010, p. 2), o estudo de caso indiciário “se vale de técnicas de coletas mais objetivas que as da etnografia, método que apreende o que escapa ao metódico, pois se baseia na relação pessoal entre investigador e investigado”.

Assim, em nossa pesquisa, adotamos o estudo de caso como um método descritivo relevante na compreensão do contexto mais amplo da pesquisa para que, em combinação com dados coletados da forma aproximada na incursão etnográfica, fosse possível levantar indícios que favorecessem a compreensão das formas através das quais se constituem as posições de classe e gênero das mulheres observadas, suas práticas sociais e o modo como interpretam as representações do trabalho feminino na publicidade.

A descrição do contexto da pesquisa a partir do estudo de caso envolve, portanto, dois âmbitos: o primeiro diz respeito ao discurso dominante sobre as mulheres da nova classe trabalhadora, especialmente na perspectiva do mercado publicitário. O segundo se refere ao levantamento de dados em escala quantitativa entre as mulheres da cidade de Santa Maria sobre aspectos que são relevantes na construção do objeto - trabalho feminino, hábitos de

consumo e reflexões sobre o papel da publicidade e as representações da mulher em seu discurso - para uma posterior comparação com os dados qualitativos. As técnicas de coleta utilizadas da formulação descritiva do estudo de caso foram o levantamento de dados secundários, a entrevista e o questionário, cujos critérios e detalhes serão descritos a seguir.

6.2.2.1. Mapeando o contexto do estudo: técnicas de coleta dos dados macrossociais

Com o intuito de mapear o contexto mais amplo da construção de representações sobre a mulher da nova classe trabalhadora brasileira que circula no discurso dominante, inicialmente, foram compilados dados secundários sobre perfil social e demográfico e as expectativas de consumo das mulheres da chamada “nova classe média” publicados por institutos de pesquisa que produzem informações especialmente para o mercado de comunicação (veículos, agências e anunciantes), como as pesquisas “As poderosas da classe média” (EDITORA ABRIL, 2012) e “Representações das mulheres nas propagandas de TV” (PATRICIA GALVÃO, 2013).

Também foram considerados os dados sociodemográficos levantados por fontes oficiais como o Censo e a PNAD do IBGE, além de Relatório do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (BRASIL, 2011) e a publicação governamental “Vozes da Classe Média” (BRASIL, 2012).A análise desses dados foi fundamental para traçar um panorama sobre os aspectos relacionados às composições familiares, inserção do mercado de trabalho formal e participação no trabalho doméstico, dados econômicos e sociais relativos às mulheres da classe popular no Brasil, na região Sul e em especial na cidade de Santa Maria.

No que diz respeito à coleta qualitativa dos dados para percepção do contexto do fenômeno social analisado, foram realizadas em maio de 2013 na cidade de São Paulo entrevistas com profissionais de âmbito nacional, que trabalham com pesquisas e comunicação voltadas para o público de classe popular. Para tanto, foi elaborado um roteiro55semiestruturado que foi adaptado conforme a natureza da atuação do entrevistado e a própria condução da entrevista, flexibilidade prevista por Jorge Duarte (2011).

Assim, no âmbito dos veículos de comunicação voltados para o público estudado, foi entrevistado Diretor do Núcleo de Revistas Femininas Populares da Editora Abril, Demetrius Paparounis. Na oportunidade de visita à Editora Abril, também foi possível coletar dados a partir do acompanhamento de um grupo de discussão com 10 leitoras de uma das revistas do

Núcleo, a Ana Maria. O grupo, mediado pela diretora de redação e por mais duas jornalistas do periódico, era realizado mensalmente e tinha o intuito de melhor compreender o cotidiano e os principais temas de interesse das leitoras56.

No campo dos institutos de pesquisa voltados para este público, foram entrevistados o publicitário Andre Torretta, sócio da Ponte Estratégia (consultoria nacional de marketing e comunicação especialista em “Classe C”) e autor de livros sobre o tema, e a antropóloga Rachel Bakke, gerente de pesquisa qualitativa do Instituto Data Popular. Já no contexto dos anunciantes, foi entrevistado o publicitário Maurício Magalhães, diretor da Agência Tudo, que atua na área de comunicação integrada e realiza campanhas, eventos e produz conteúdo para empresas que têm o foco na classe popular.

É importante pontuar que a compilação desses dados e a construção deste cenário, embora não caracterize um objetivo específico da pesquisa, ajudaram a observar o que significa o fenômeno social da ascensão da nomeada “nova classe média” sob a ótica do consumo para instituições que têm papel importante na formulação de representações do discurso dominante sobre o papel social da mulher nesse contexto. No que diz respeito aos dados empíricos, o levantamento ajudou a pensar o modo como as mulheres investigadas se aproximam ou não destes parâmetros divulgados pelos estudos sociais e de mercado.

Em outra perspectiva, na intenção de melhor situar o contexto de análise em âmbito local, foi aplicada uma pesquisa quantitativa junto a mulheres de faixa etária entre 25 e 45 anos, residentes na cidade de Santa Maria/RS, que, segundo o IBGE (2013), compõem o universo de 40288 pessoas. Tendo em vista a fórmula para o cálculo de amostra para populações finitas57 (GIL, 2006, p. 107-108), chegamos a uma amostra de 396 mulheres. Os questionários foram aplicados entre os meses de outubro e dezembro de 2013, sendo utilizadas duas estratégias: o inquérito presencial (196 respondentes), realizado em diferentes pontos da cidade de Santa Maria; e o formulário online (200 respondentes), disponibilizado na

56 Além dos dados específicos revelados pelas mulheres presentes, a participação no grupo de discussão com

leitoras na Editora Abril foi uma experiência interessante para perceber as estratégias de produção de conteúdo por parte do veículo especializado, bem como as parcerias entre editora e anunciantes. Naquela ocasião, por exemplo, estavam presentes na reunião profissionais da Nissin Lamen (fabricante dos temperos Sazon) a fim de observar o comportamento de consumo e testar a simpatia das mulheres com o possível novo garoto propaganda do produto, o ator Malvino Salvador.

57Fórmula usada para uma população menor que 100.000 pessoas:

n= ∂2.p.q .N

e2.(N-1)+ ∂2.p.q

Onde N= universo; n=amostra que será calculada; ∂=nível de confiança; e= erro amostral; p.q=porcentagem pelo qual o fenômeno se verifica.

plataforma de formulários do Google, sendo divulgado e compartilhado eletronicamente e preenchido por mulheres residentes na cidade que se encontravam na faixa etária pretendida.

É válido destacar que esta etapa da pesquisa teve apenas em conta o recorte geográfico e de faixa etária, sendo entrevistadas mulheres de diferentes classes sociais. Esta abrangência do público entrevistado, ao nosso ver, abriu a possibilidade de fazer comparações e cruzamentos que tornaram visíveis recorrências e diferenças entre mulheres de capitais econômicos, culturais e sociais distintos.

O instrumento quantitativo58 foi composto por 27 questões de tipos variados: fechadas

(de escala nominal, ordinal, de ordenamento hierárquico) e abertas (NOVELLI, 2011). As perguntas foram divididas em cinco eixos principais: dados sociodemográficos, sentidos e experiência do trabalho feminino, percepções e usos da publicidade, relações entre publicidade e consumo e representações do trabalho feminino na publicidade. Após aplicação dos questionários, os dados foram inseridos em plataforma digital através de suporte específico para análise quantitativa, o software Sphinx Survey. Com esse recurso, foi possivel fazer tabulações simples e cruzamentos que permitiram comparar as relações entre as mulheres do grupo da classe popular e o contexto total da amostra.

A partir destes dados quantitativos, foi possível obter um panorama sobre a temática analisada no âmbito de Santa Maria. Tendo em vista que sua aplicação antecedeu a fase qualitativa da investigação, os resultados também ajudaram a observar questões e sentidos que ainda não tinham sido pensados pela pesquisa, ajudando na estruturação dos pontos a serem observados na etapa seguinte.