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A fase da acumulação extensiva com regulação de concorrência

2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO DO TRABALHO: O ASSÉDIO

2.2 DO TAYLORISMO/FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E SEUS

2.2.1 A fase da acumulação extensiva com regulação de concorrência

A acumulação extensiva com regulação de concorrência, ocorrida nos séculos XVIII-XIX – economias de industrialização antiga e florescimento do primeiro capitalismo industrial –, período analisado por Marx, em O Capital32, era determinada pela superioridade dos métodos empregados nas organizações produtivas, com o trabalhador assalariado ainda em pleno desenvolvimento e pouca participação na procura de mercadorias, e estabilizada pelas flutuações da frota de reserva, estas oriundas das oscilações da atividade industrial sobre a formação do salário nominal, conforme Boyer (2009).

Esse período do florescimento do capitalismo industrial, mais precisamente entre 1789 e 1848, é traçado como a Era das Revoluções, por Hobsbawm (2001a), que destaca uma dupla revolução responsável por esta transformação do mundo: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Inglesa, responsáveis pela ascensão da sociedade capitalista. Sobre a etapa consecutiva, a Era do Capital, que define o período de 1848 a 1875, Hobsbawm (1988; 2001b) afirma que se trata do triunfo global do capitalismo, cujo crescimento econômico repousava na competição da livre iniciativa e do livre mercado para formar a sociedade liberal, que alcançaria, entre os anos de 1875 e 1914 – a Era dos Impérios –, o seu apogeu

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Para Hobsbawm (2001b), em Era do Capital – 1848 – 1875, Marx e Engels são os maiores comentadores deste período. Há, inclusive, uma lacuna nas etapas posteriores do capitalismo deste tipo de análise mais detalhada da organização do trabalho e dos seus efeitos negativos na vida do trabalhador.

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com as grandes corporações e, também, uma “morte estranha”, pelas suas inúmeras contradições, inclusive a Primeira Guerra Mundial.

É interessante observar que, nessa fase inicial da acumulação extensiva do capital, que visava a composição da força de trabalho a ser explorada e a demarcação da propriedade privada capitalista, “[...] grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros”. Assim, com a expropriação da base fundiária por poucos usurpadores, “o povo do campo foi transformado em “vagabundo”33 e enquadrado por leis grotescas e terroristas em uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio de açoite, do ferro em brasa e da tortura”. Sob o aspecto da ascensão dos capitalistas industriais ao “livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem”, Marx (1988, v. 2, p. 252; 253; 267) afirma, sem exagerar, que “a história dessa expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo”.

Com as transformações econômicas que surgiram na Era das revoluções, chegaram também os problemas sociais característicos do industrialismo: o novo proletário, os horrores da incontrolável urbanização, o aumento da criminalidade e da violência, a embriaguez, o infanticídio, a prostituição, o suicídio, a demência, as doenças, inclusive oriundas do trabalho, etc. O novo proletariado, constituído por trabalhadores livres, pobres e desprovidos de terras, é formado por uma expressiva quantidade de mão de obra barata, doméstica, subcontratada e tecnicamente retrógrada que, diante da catástrofe social e da exploração do capital, é jogada em cortiços ou em extensos complexos de aldeias industriais e, ainda, mergulhada na total desmoralização. O movimento da sociedade burguesa, sem limitações legais e fortalecido pelo despotismo dos patrões, era profundamente cruel, injusto e desumano.

À margem da sociedade burguesa, obrigado a aceitar um rígido controle e disciplina e a aceitar castigos nas fábricas, o proletário só tinha como alternativas lutar para se tornar burguês, permitir a opressão ou se rebelar. A primeira opção, diante de um sistema individualista puramente utilitário, é, praticamente, descartada, restando a submissão e o enfrentamento como classe operária aos patrões capitalistas. O movimento operário, fortalecido pelos sindicatos, sociedade cooperativa ou mútua, instituições trabalhistas, jornais, agitação, vem proporcionar uma resposta ao grito do homem pobre. A consciência de classe e a ambição de classe, moldadas pela miséria, fome, ódio e esperança do trabalhador fabril,

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Para Castel (1998), em As metamorfoses da questão social, a vagabundagem é a essência negativa do assalariado e os vagabundos são considerados os inempregáveis de hoje.

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suscitam algo também verdadeiramente novo: o movimento operário e a luta coletiva na perspectiva de derrotar a sociedade existente e estabelecer uma nova sociedade, questões estas que se tornam comuns durante a Era do capital. (HOBSBAWM, 2001a; 2001b).

Outro aspecto ressaltado por Hobsbawm (2001b), a partir da metade do século XIX, em a Era do capital, e já discutido em Marx (1988), é a intensa migração do homem do campo para a cidade e também o fluxo da emigração para outros continentes, a exemplo dos Estados Unidos. Em ambas as situações, o atrativo era o trabalho industrial em si mesmo. A cidade, inclusive, se tornou símbolo exterior do mundo industrial, a urbanização, a forma mais dramática da nova vida, e os pobres, um mercado que não dava lucro, uma ameaça pública. O progresso capitalista que se esperava não alcançou os trabalhadores pobres e esta pobreza, que representava uma inferioridade econômica, passa a ser um índice adequado de inferioridade de classe.

A vida dos trabalhadores, no século XIX, era dominada pelo fator insegurança em todos os seus sentidos: emprego, moradia, acidentes, doenças, a uma distância mínima do miserável. Esta insegurança, para o mundo do liberalismo e para a classe trabalhadora, era o preço a pagar pelo progresso e pela liberdade. Tais fatores, que davam um sentido comum ao trabalho e à exploração, diante de uma situação precária, também criavam condições para se pensar os trabalhadores como uma classe. E a era do capitalismo liberal, estável e florescente para a classe burguesa, criou a possibilidade de aumentar o senso do coletivo, pela organização e pela luta dos trabalhadores, e fez emergir os partidos e os movimentos de classe operária. Apesar da melhoria advinda com a expansão capitalista para a classe trabalhadora, a distância entre o que a separava do mundo burguês era intransponível. As demandas vindas de baixo clamavam por proteção contra os capitalistas, por segurança social, por medidas públicas contra o desemprego, por um salário mínimo, na busca por um novo Estado, mais forte e mais intervencionista.

Ao analisar o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações sociais, compreendendo a ordem capitalista como um estágio historicamente transitório e constantemente premido pela luta de classe, e sem tentar mascarar a realidade das cidades industriais, Marx (1988) ressalta como componentes inerentes às misérias modernas e como efeitos imediatos da produção mecanizada sobre o trabalhador as seguintes situações: a apropriação de forças de trabalho suplementares pelo capital  o trabalho feminino e infantil; as péssimas condições de moradia e alimentação resultantes do elevado grau de exploração da força de trabalho e de sua baixa remuneração; o prolongamento da jornada de trabalho – carga horária de doze a quinze horas, em seis dias úteis, incluindo, eventualmente, o domingo; a

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avidez do capitalista por mais-trabalho com a intensificação do trabalho; e a falta de limite legal da exploração dos trabalhadores em vários segmentos fabris.

Para Robert Castel (1998, p. 277), as transformações políticas ocorridas no fim do século XVIII, liberaram apenas o acesso ao trabalho, não havendo nenhuma preocupação ou promoção da condição salarial. O trabalho enquanto fonte de riqueza não trouxe o Bem-Estar Social aos operários. Ao contrário, o pauperismo foi imposto como uma degradação completa dos modos de vida dos operários e de suas famílias e passa a ser o ponto de cristalização da nova questão social. Neste sentido, “a contratualização da relação de trabalho não é capaz de remediar a indignidade da condição de assalariado que continua sendo, se não pior, pelos menos uma das piores condições”.

O panorama traçado por Marx já havia sido analisado em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, por Friedrich Engels (2008, p. 308), que demonstra, a partir de dados colhidos em Manchester, então conhecida como “a oficina do mundo industrial”, um quadro fiel das condições de vida, de sofrimentos e lutas bem como das esperanças e das perspectivas da classe operária, expressão máxima e mais visível da miséria social cuja causa deveria ser procurada no sistema capitalista em si. O autor registrava, também, que “a relação entre o industrial e operário não é uma relação humana: é uma relação puramente econômica – o industrial é o ‘capital’, o operário é o ‘trabalho’”. Diante de uma livre concorrência capitalista que repugna qualquer limite – adoção plena do laissez-faire e do laissez-aller –, em que o Estado aparece como estorvo, a aspiração do trabalhador a uma condição humana passa, necessariamente, pela reversão da relação capitaltrabalho, assegura Engels.

Nessa fase de acumulação do capital, de acordo com Marx (1988), a produção fabril de mercadorias – aço, ferro, vidro, fósforo, pão, tecidos, roupas, etc. – normalmente acontecia em locais insalubres, repugnantes, sem ventilação, com altas temperaturas artificiais, em espaços físicos bastante reduzidos, impregnados de resíduos de matéria-prima e marcados pelo contínuo ruído ensurdecedor das maquinarias, o que faria Dante sentir, como ultrapassadas, as mais cruéis fantasias do inferno. Esta sistemática de exploração envolvia uma multidão de trabalhadores de todas as profissões, idades, sexos, a maioria sem nenhum tipo de qualificação que, costumeiramente, sofria, por parte dos proprietários das fábricas, além da baixa remuneração e das péssimas condições de trabalho, “pequenas furtadelas de minutos”: antecipação do horário de entrada e extensão do horário de saída; redução dos horários de almoço; redução do tempo de descanso, todos ajustados de acordo com a necessidade da produção, apesar da existência de leis limitadoras da jornada de trabalho.

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Com relação às leis fabris inglesas, desde as compulsórias para o prolongamento da jornada de trabalho – metade do século XIV a fim do século XVII , até a limitação, por força de lei, do tempo de trabalho  a partir de meados do século XIX –, resultantes de um embate pelos direitos iguais entre a classe dos capitalistas e a classe trabalhadora, Marx (1988), apesar de considerar que estas tentaram conter o impulso desmesurado do capital em sugar a força de trabalho pela limitação coercitiva por parte do Estado, não deixa de expor algumas situações que fogem deste controle, o que demonstra que o capital não atropela apenas os limites legais e morais, mas, também, os limites físicos dos trabalhadores sem sequer se importar com a duração da vida da força de trabalho.

Dentre essas situações que extrapolam os limites legais da organização do trabalho, Marx (1988) ressalta, ainda, as doenças e as mortes provocadas por excesso de trabalho, a degradação física e mental dos trabalhadores, a tortura do sobretrabalho para o incremento da produção e o trabalho infantil, geralmente realizado por crianças entre seis e dezoito anos, que eram obrigadas a trabalhar desde as duas, três ou quatro horas da manhã até a madrugada, totalizando, às vezes, quinze horas de serviço, trabalho este simultâneo ao definhamento e atrofiamento físico destas criaturas, com registro de raquitismo com redução de altura e peso entre gerações, em uma espécie de sistema de ilimitada escravidão.

Diante do quadro degradante das condições de trabalho impostas pelo capital, cujo movimento pela acumulação do lucro é sempre insaciável e incessante e regido pela livre concorrência enquanto lei externa inexorável, Marx (1988) registra que a violência é a lei reguladora do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias. Acrescenta, ainda, que, sob o ponto de vista da valorização do capital, este existe para absorver cada gota de trabalho e que, por este motivo, não tem a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, que é mantido por uma relação coercitiva que o obriga a executar mais trabalho além das suas necessidades vitais.

Quanto à organização do trabalho nos espaços fabris, Marx (1988) evidencia o caráter cooperativo do processo de trabalho, ou seja, a cooperação enquanto emprego simultâneo de um grande número de trabalhadores que, dispostos fisicamente lado a lado pelo arranjo produtivo, de forma planejada e conjunta, se torna responsável pela geração de uma maior produtividade, tornando-se uma necessidade técnica ditada pela natureza do próprio meio de trabalho a eliminação das limitações individuais e o incentivo à produção coletiva dos assalariados. A subordinação do operário ao andamento uniforme do processo de produção é mantida por uma “disciplina de caserna” e comandada pelo movimento contínuo, constante e rigoroso da máquina, que impõe o ritmo e o grau adequado da intensificação do

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trabalho. Com a cooperação, enquanto técnica racional de organização de trabalho, pelo ato de dirigir, superintender e mediar todo o processo fabril, o comando do capital transforma a execução do próprio processo de trabalho em condição de produção, ou melhor, em uma maior produção possível de mais-valia e, portanto, em uma maior exploração da força de trabalho. No lugar do chicote do feitor de escravos e com a função de exploração de um processo social de trabalho, apareceram os supervisores e os manuais de penalidade para a adequação, vigilância e o controle de comportamentos, destaca Marx (1988).

Harry Braverman (1981, p. 68), quando analisa as origens da gerência para esse mesmo período de exploração capitalista criticado por Marx, afirma que “como um cavaleiro que utiliza rédeas, bridão, esporas, cenoura, chicote e adestramento desde o nascimento para impor sua vontade ao animal, o capitalista se empenha, através da gerência, em controlar”. E o controle é, de acordo com este autor, “o conceito fundamental de todos os sistemas gerenciais [...]”. Neste sentido, a dominação e a exploração do trabalhador ocorrem com a gestão da produção, em busca de mais trabalho e devidamente estabelecida pela divisão do trabalho, algo comum a todas as fases de acumulação do capital.