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OS PARÂMETROS METODOLÓGICOS E AS AÇÕES TRABALHISTAS

1 O PERCURSO METODOLÓGICO

1.2 OS PARÂMETROS METODOLÓGICOS E AS AÇÕES TRABALHISTAS

Os documentos gerados pelos dissídios judiciais trabalhistas são importantes para abordar a questão do assédio moral porque dispõem, textualmente, os elementos da violência no trabalho relatados pelos próprios trabalhadores, com depoimentos das partes envolvidas, inclusive as opiniões do empregador ou seu representante, além de declarações das testemunhas das partes envolvidas e, também, os pareceres emitidos pelos julgadores dos litígios, tanto em primeira instância quanto em segunda instância da Justiça do Trabalho. Por ser uma documentação oriunda de uma demanda judicial, constituída de acordo com processo judiciário do trabalho definido pela CLT para a Justiça do Trabalho, em uma relação de forças entre as partes litigantes e mediada pelo poder público, é imprescindível uma abordagem metodológica com capacidade de capturar e interpretar, entre os textos e os discursos ali gerados e registrados, a contextualização da relação capital–trabalho, de forma a subsidiar o nosso entendimento sobre o assédio moral, a partir das denúncias formuladas pelo próprio trabalhador sobre a violência, sobre o adoecimento, sobre as condições efetivas de trabalho, sobre a pressão para produzir, sobre as exigências de horários, sobre o cumprimento de metas e sobre o descumprimento dos direitos trabalhistas.

A abordagem da realidade conflituosa que emerge das ações trabalhistas será conduzida pelo método hermenêutico-dialético, um método, em nossa visão, com capacidade de apresentar uma interpretação mais aproximada da realidade, ao colocar a fala do trabalhador em seu contexto, sob a perspectiva histórica e totalizante, levando-nos a entender o seu depoimento, a sua fala, o seu discurso como resultado de um processo social, envolvendo trabalho e dominação, conforme Maria Cecília Minayo (2000). Este método é fundamental para analisar o assédio moral para além dos conflitos das relações interpessoais

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no ambiente de trabalho e, para isto, definimos como categorias analíticas deste nosso objeto de estudo, o trabalho, a flexibilização e a precarização das relações de trabalho, que servirão de baliza não apenas para a abstração, generalização e aproximação do tema assédio moral, mas também como condutores para a definição das categorias empíricas que, operacionalmente, permitirão comprovar, ou não, as hipóteses enunciadas e responder às questões do nosso estudo.

No plano metodológico, seguindo as diretrizes do método hermenêutico-dialético, a execução desta pesquisa sobre assédio moral é formulada como pesquisa quantitativa e qualitativa, delineada pelo método da análise documental e subsidiada pelas técnicas de análise de conteúdo – refere-se ao estudo dos documentos pesquisados, o que permite a inferência a partir das descrições ali constantes; pela análise de discurso – que permite decifrar as intenções do discurso e a manipulação dos textos pesquisados; e pelo método biográfico, pois se trata da redescoberta das histórias ou relatos de vida, que dá acesso a uma prática que é também social (MINAYO, 2000).

Como o documento escrito é uma fonte extremamente valiosa para o pesquisador em Ciências Sociais, o material oriundo das ações trabalhistas, por conter elementos que dificilmente seriam captados oralmente, é fundamental para a percepção e a compreensão da realidade social ali vivenciada. Diante da natureza qualitativa desta fonte, optamos pela análise documental, conforme André Cellard (2008, p. 296), para explorar todas as informações geradas nas ações trabalhistas, o que cria a possibilidade de expressar como e porque esses trabalhadores foram assediados moralmente. Segundo o autor, este é um método de coletas de dados que elimina, praticamente, outros tipos de influência na análise do pesquisador porque a sua interação não se dá diretamente com o sujeito da ação, uma vez que o “documento permanece surdo” e a informação circula em sentido único. A análise dos documentos oriundos das ações trabalhistas, ao permitir a compreensão das particularidades denunciadas pelo trabalhador contra determinada organização com o auxílio das técnicas de análise de conteúdo e análise de discurso, cria condições para que possamos nos aproximar do contexto em que foi gerado o assédio moral, identificando os papéis exercidos pelos atores sociais e permitindo uma interpretação mais coerente daquele local de trabalho.

Com relação à formulação da pesquisa como quantitativa e qualitativa, adotamos aqui a diretriz traçada por Minayo (2000) que assume o posicionamento dialético de que quantidade e qualidade são variáveis inseparáveis e interdependentes nas relações sociais, posicionamento este que promove a dissolução das dicotomias entre o método quantitativo e o método qualitativo, chamando a atenção para o sujeito do estudo.

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Em nosso caso, o trabalhador, sob determinadas condições de violência no trabalho, é o cerne da pesquisa. É a apreensão qualitativa da realidade e dos significados das ações deste sujeito que nos interessa sem, no entanto, desconsiderar os dados objetivos que esta mesma realidade pode apresentar. O conjunto de dados quantitativos e qualitativos se complementa sem oposição, segundo a autora, apresentando o dinamismo da realidade vivenciada pelo trabalhador enquanto ator social. Considerando que as ações trabalhistas permitem também uma apuração quantitativa que irá subsidiar a análise qualitativa da pesquisa, enquanto um recurso metodológico dotado de significado social substantivo e de forma complementar, construiremos, conforme diretriz pensada por Paulo Jannuzzi (2012), alguns indicadores sociais que serão extraídos da mesma fonte documental, a exemplo do quantitativo de assédio moral entre homens e mulheres, quantidade de trabalhadores adoecidos, de trabalhadores aposentados por invalidez, dentre outros.

A adoção das técnicas de investigação – análise de conteúdo e análise do discurso –, diante do material qualitativo oriundo dos processos judiciais, objetiva uma melhor compreensão dos relatos e discursos ali descritos ao aprofundar suas características principais, como o tipo de relações trabalhistas existentes na organização em análise, buscando os aspectos mais relevantes das causas litigiosas, a exemplo de motivações e razões, fundamentais para elucidar as relações conflituosas do trabalho no próprio ambiente, o que permitirá a inferência dos acontecimentos para além das circunstâncias das relações interpessoais no trabalho e à luz do entendimento do assédio moral como um modo de gestão no atual contexto produtivo.

Ao falar sobre o método análise de conteúdo, enquanto um conjunto de técnicas de análises das comunicações, Laurence Bardin (2010) inicia sua discussão com a provocação de que, por trás de todo discurso, há um sentido oculto a ser desvendado nas mensagens. A preocupação maior, pelo visto, é com o rigor e a descoberta advindos deste método a partir dos vestígios que cada mensagem contém, sugerindo ir além das suas aparências e da sua superfície para se chegar à realidade dos fatos. Para tanto, em termos de análise exploratória, sugere a superação da incerteza e o enriquecimento da leitura como os principais objetivos a serem alcançados pela análise de conteúdo que tem como característica principal a inferência. Como instrumento de indução, segundo o autor, a análise de conteúdo investiga as causas a partir dos efeitos. A intenção é conhecer o que está por trás das palavras em busca de outras realidades contidas nas mensagens. Essencialmente, em nosso estudo, é perceber o que cada ação trabalhista, enquanto fonte documental, diz com relação ao assédio moral para se chegar às atuais formas de exploração e dominação do trabalhador pelo capital.

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Para Eni Orlandi (2009, p. 26; 29; 30), a análise de discurso enquanto mediação necessária entre o homem e a realidade social visa “a compreensão de como um objeto simbólico produz sentido, como ele está investido de significância para e por sujeitos”. Segundo a autora, essa “compreensão procura a explicação dos processos de significação presentes no texto e permite que se possam ‘escutar’ outros sentidos que ali estão, compreendendo como eles se constituem”. Esta conceituação tem como proposta “ir além do que se diz, do que fica na superfície das evidências”. Para ela, os sentidos não estão apenas nas palavras e nos textos em si, “mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos”. Cada texto, cada palavra, segundo a autora, deixa vestígios que se transformam em pistas para se compreender os seus sentidos: “esses sentidos têm a ver com o que é dito, assim como o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi”. Ao acrescentar que os sentidos estão aquém e além das palavras e o silêncio, em uma sociedade de constante confronto de poder como a nossa, tem outro horizonte de sentidos, a autora esclarece que a análise de discurso não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real sentido em sua materialidade linguística e histórica.

Assim, quando um empregado, por exemplo, expressou que, para ir ao banheiro atender suas necessidades físicas, ele dependia de autorização prévia do supervisor e que este tempo utilizado fora da área de trabalho poderia ser descontado do seu pagamento mensal, a análise de discurso nos permite entender este sentido para além de um simples controle administrativo, partindo para uma compreensão de que, naquele ambiente de trabalho, a pressão pela produção é intensificada minuto a minuto, desconsiderando o trabalhador como um ser humano e vivo. Em nosso estudo, a análise de discurso cria a possibilidade de quebrar os silêncios das palavras para encontrar o sentido da história de cada trabalhador, desvendando as relações de opressão no ambiente de trabalho. E, com este entendimento, a análise de conteúdo e a análise de discurso se completam porque permitem um olhar mais aprofundado para cada documento, para cada texto, para cada palavra.

Quanto ao novo método biográfico a partir do resgate de história de vida em documentação escrita, Gilles Houle (2008, p. 319-320) tem como preocupação o retorno daquele sujeito que não havia, de fato, partido, ou que, se partiu, deixou ainda resíduos que podem ajudar no esclarecimento de algumas situações por ele vivenciadas. Estas premissas chamam a atenção não apenas pela importância da documentação em si e pelo seu potencial de pesquisa, mas pela interpretação dada pelo autor. Para ele, como discutido anteriormente, não há relatos apenas sob o ponto de vista individual. Quando encontramos um documento em que o sujeito fala das suas experiências vividas, o seu discurso dá acesso a uma prática que é

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também social. Nesta perspectiva, de um olhar novo sobre a riqueza “do relato de vida ao relato da vida” – do vivido pelo trabalhador em seu local de trabalho –, pretendemos explorar as histórias destes trabalhadores assediados moralmente, pontuando os seus elementos mais intrigantes, de forma a entender a precarização das relações de trabalho sob o ponto de vista coletivo.

Com o propósito de expor as situações de assédio moral e condições de trabalho impostas ao trabalhador, algumas ações trabalhistas serão, parcialmente, transcritas em nosso trabalho. As histórias de vida de cada trabalhador ou grupo de trabalhadores serão reelaboradas, de modo a pontuar apenas os elementos mais contundentes. No caso de citação direta, estas partes serão citadas sempre com aspas, de modo a deixar claro que aquelas falas ou aqueles comentários foram retirados integralmente dos documentos analisados. Para as histórias de vida dos trabalhadores, faremos uma reelaboração dos episódios, que serão capturados das atas, das sentenças, dos acórdãos e de outros documentos gerados na ação trabalhista. Normalmente, terão uma obediência cronológica, para uma melhor percepção dos fatos, a exemplo da data de ingresso, o período da licença saúde, a data da rescisão do contrato, com registros dos episódios mais relevantes, para que haja um entendimento melhor daquela trajetória. Nenhum destes documentos, porém, contém, linearmente, a vida do trabalhador. A nossa proposta, com esse aporte metodológico, é fazer esta reconstrução, transformando a história de vida de um trabalhador em a história da vida do trabalhador, conforme Houle (2008), para destacar que uma situação de extrema violência, como o assédio moral, muitas vezes encarada como de natureza pessoal e individual, transcende esta barreira, abrindo horizontes para novas interpretações.