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A fase da acumulação intensiva com consumo de massa

2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO DO TRABALHO: O ASSÉDIO

2.2 DO TAYLORISMO/FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E SEUS

2.2.3 A fase da acumulação intensiva com consumo de massa

O modelo de desenvolvimento do fordismo – um acoplamento do taylorismo com a mecanização – contempla a acumulação intensiva com consumo de massa. O processo produtivo desta fase foi determinado pelos avanços tecnológicos e incentivado pelo Estado – sob a influência das ideias keynesianas e do controle fiscal do sistema Bretton Woods –, que realizou as infraestruturas necessárias à eficiência do investimento, promovendo a cobertura social para os assalariados e o desenvolvimento de políticas de estabilização da conjuntura fordista. A era do fordismo, segundo Boyer (2009) e Lipietz (1991), é baseada em uma produção de massa altamente mecanizada, com elevação da produtividade e do poder aquisitivo dos assalariados, sem eliminação da crescente polarização entre idealizadores qualificados e executantes sem qualificação, uma fase marcada pela estabilidade das taxas de lucros das firmas, com plena utilização do maquinário produtivo e pleno emprego dos trabalhadores.

O fordismo, materializado em um regime de acumulação e em um modelo de regulação, segundo Lipietz (1991, p. 31), é resultado de um “compromisso fordista” que envolve: os trabalhadores e os sindicatos – em busca de participação dos ganhos de produtividade resultantes da racionalização do trabalho, após décadas de uma longa

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Além da trilogia já comentada, Hobsbawm (1995) escreve sobre o breve século XX (1914-1991), a

Era dos extremos. Neste livro, dividido em três partes, ele aborda a Era da catástrofe, a Era do ouro, e o Desmoronamento.

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resistência ao taylorismo e de pressão ao patronato; os empregadores e políticos – com a preocupação pela aceleração dos ganhos de produtividade e, consequentemente, a contrapartida do aumento da demanda social pelos produtos industrializados e, também, pelo crescimento regular do poder aquisitivo dos trabalhadores; e o Estado – sob pressão do fascismo e stalinismo e a adoção do ideário da socialdemocracia –, que estabelece um “compromisso global e organizado entre patronato e sindicato, para redistribuição dos ganhos de produtividade aos assalariados”.

A “conexão entre produção em massa e consumo de massa crescente”, como já salientado por Lipietz (1991, p. 32-33), reflete o “compromisso fordista” cujas regras do jogo são fortalecidas pelo modo de regulação instaurado pelo Estado, por meio de legislação social para proteção do assalariado (salário mínimo) e pela generalização das convenções coletivas entre empregados e empregadores; pelo “Estado Providência”, apoiado em um sistema amplo de previdência social, que garantia a renda mesmo com o afastamento do trabalho por doenças, aposentadoria, desemprego, etc.; e pela moeda de crédito – política keyneisiana –, que começa a atuar em função das necessidades da economia e não da produção, sob o comando dos bancos centrais e do Estado, este com responsabilidade ativa no controle da conjuntura econômica.

Como um processo para superar a queda da taxa de lucro do setor industrial americano, o fordismo, para Antonio Gramsci (1968), deriva da necessidade de organizar uma economia pragmática cuja racionalização exige a elaboração de um novo tipo humano – um “novo tipo de trabalho e de produção” e um “tipo novo de trabalhador e de homem” –, sob um determinado ambiente, uma determinada estrutura social e um determinado tipo de Estado e adaptado psicofisicamente para determinadas condições de trabalho cujos métodos de trabalho, que combinam coerção com persuasão e consentimento, estão fortemente ligados a um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida. Imposto, a partir de 1945, nos países capitalistas avançados, o fordismo se torna, de acordo com Boyer (2009) e Lipietz (1991), ancorados no pensamento de Gramsci (1968), um paradigma societal hegemônico, cuja visão de mundo contempla o modo certo de viver em sociedade com a sua concepção de moral, do normal e do desejável, o que reforça, quanto às ideias e aos comportamentos, o seu modelo de desenvolvimento cuja concepção é apoiada no progresso técnico, no progresso social e no progresso do Estado, uma espécie de fiador do interesse coletivo em detrimento do interesse individual e com controle do pleno emprego e progresso do consumo.

“Os trinta anos gloriosos” do fordismo, segundo Boyer (2009), contemplam o período pós-Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 1970 que, sob o estandarte do

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keynesianismo e de reajustes cambiais pelo sistema Bretton Woods, se torna a fase do capitalismo em que houve um alinhamento da produção com o consumo, elevando-se o padrão de vida nos países desenvolvidos, e que foi marcada pela incorporação de elementos coletivos em sistemas de cobertura social tais como acesso à educação, saúde, habitação, aposentadoria, etc. e pela institucionalização de uma relação salarial baseada no princípio do compartilhamento dos ganhos de produtividade.

Para Hobsbawm (1995), esse período, marcado pelo extraordinário crescimento econômico e por uma grande transformação social, pode ser visto como uma espécie de Era do ouro, uma fase única no capitalismo, e como um fenômeno mundial, embora a riqueza jamais tenha chegado para a maioria da população do mundo, incluindo os países do Terceiro Mundo. Para o autor, entre o pós-guerra e 1973, com a influência da Guerra Fria e graças ao reduzido preço do petróleo, houve um impacto extraordinário da transformação econômica social e cultural que pode ser percebido pelo estilo de vida, que exige níveis de renda elevados e em constante expansão, pelo poder de consumo da classe trabalhadora e pela proteção do Estado do Bem-Estar Social, circundados por um permanente grau de confiança no futuro. O surto econômico foi movido pela revolução tecnológica em constante processo de inovação e impulsionado por pesquisas e desenvolvimento em vários setores da economia.

A passagem da relação salarial que prevalecia no começo da industrialização para a relação salarial fordista dependeu da implantação de algumas condições que constituíram a chamada sociedade salarial, conforme Castel (1998, p. 419; 423). Dentre estas condições, temos: a separação entre os trabalhadores ativos e os inativos, como forma de repressão à vagabundagem e implantação da disciplina como regramento; a fixação do trabalhador em seu posto de trabalho, pela racionalização do processo de trabalho – organização científica do trabalho; a elevação dos salários para fortalecer o consumo em massa; o acesso ao sistema de proteção social, a exemplo de serviços públicos como saúde, higiene, moradia, instrução; e o reconhecimento do trabalhador, pelo direito do trabalho, como membro de um coletivo dotado de um estatuto social, a exemplo da convenção coletiva. Tais condições que, conforme este autor, asseguraram a sociedade salarial e o Estado Social, fortalecendo as relações capitaltrabalho dos chamados Anos dourados de Hobsbawm (1995), são também pontos de questionamentos de alguns pensadores que se posicionam contrários ao papel interventor do Estado na economia e são favoráveis ao ideário do liberalismo em todos os seus sentidos.

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Em O caminho da servidão37, Friedrich Hayek (1946) dá continuidade a uma temática por ele desenvolvida desde 1938, sob o título de A liberdade e o sistema econômico, em que elabora um conjunto de ideias políticas, econômicas e sociais favoráveis ao liberalismo econômico, tendo como contraponto o avanço do socialismo, a ascensão do nazismo e fascismo – não como reação e sim como resultado das tendências socialistas –, a intervenção do Estado com as políticas keynesianas bem como a implantação do Estado do Bem-Estar Social, vistos como perigos iminentes para as sociedades capitalistas. Percebe-se, a partir desta discussão, que o modelo de desenvolvimento fordista, em plena fase dos “anos gloriosos” (BOYER, 2009), não era um consenso político e que já havia questionamentos sobre o compromisso social firmado entre o capital e a classe trabalhadora sob a custódia do Estado.

Diante da preponderância das ideias socialistas e da forma como a sociedade capitalista reagiu com o intervencionismo do Estado, inclusive com a implantação de benefícios sociais para a classe trabalhadora, Hayek (1946) pondera que, ao invés de liberdade e prosperidade, é a miséria e servidão que teremos pela frente. Para ele, é um caminho a ser abandonado e, por esta razão, trabalha com a recuperação do espírito do individualismo que fora desviado do capitalismo e com a reativação das ideias liberais do século XIX – o princípio do laissez-faire, em busca de um mundo liberal, da esfera autônoma do sujeito, da supremacia dos interesses individuais, enfim, da recuperação do “homem econômico”.

O termo individualismo, para um mundo liberal, segundo Hayek (1946), não é associado ao egoísmo ou ao egotismo e sim a uma oposição ao socialismo e a todas as outras formas de coletivismo, comunismo, fascismo, etc. Resgata-se, em sua visão, o respeito pelo homem individual na sua qualidade de homem em busca do desenvolvimento dos dotes e inclinações individuais de cada um para tentar dirigir a própria vida. A nova consciência de poder sobre o próprio destino e a convicção de que existem infinitas possibilidades de melhorar a própria sorte são os pontos destacados por ele como princípios básicos do liberalismo econômico cujo modelo de concorrência como organização social exclui certos tipos de intervenção coercitiva na vida econômica, apesar da necessidade de manter um amplo sistema de serviços sociais, inclusive com a existência de um sistema legal apropriado, mas com atuação limitada do Estado.

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Esse livro é considerado por Perry Anderson (1995), em o “Balanço do neoliberalismo”, como o texto de origem das ideias do neoliberalismo. Eric Hobsbawm (1995), em Era dos extremos, diz que Hayek foi um dos mais prestigiosos e influentes defensores da completa liberdade de mercado.

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Para construir um mundo melhor e que seja pautado em um princípio orientador de uma política verdadeiramente progressista, Hayek (1946) pondera que a proteção do padrão de vida e a garantia de uma razoável renda profissional, como resultado do acordo voluntário entre o capital e o trabalho organizados e sob a tutela do Estado, são fatores que impedem a liberdade individual. Para tanto, segundo o autor, ao invés de inventar novos mecanismos para guiar e dirigir, é preciso remover estes obstáculos, desobstruindo o caminho, acabando com a insensatez humana e liberando a energia criadora dos indivíduos, o que fomentaria condições favoráveis ao progresso.

O conjunto de ideias políticas, econômicas e sociais favoráveis ao liberalismo econômico elaborado por Hayek (1946), que se tornaria o arcabouço do neoliberalismo, ganha espaço alguns anos depois e, diante de uma crise que se anunciava, pela baixa produtividade industrial do fordismo, é, teoricamente, absorvido pelo capital, principalmente aquelas ideias relacionadas à intervenção do Estado na economia e ao desmoronamento do Estado do Bem- Estar Social, mas as ideias de Hayek (1946), apesar do arcabouço neoliberal, não tinham nenhuma vinculação direta com a crise do modelo fordista que se aproximava. Hobsbawm (1995), em Era dos extremos, levanta uma questão bem interessante e chama a atenção para as consequências do uso das novas tecnologias durante a Era de Ouro, que é a sua futura morte por entropia: o avanço tecnológico está diretamente relacionado à redução da mão de obra, tanto na produção quanto em serviço e os trabalhadores vão sendo, paulatinamente, substituídos por robôs automatizados e por computadores. Para o autor, este é o problema central da Era do Ouro. O extenso período de expansão econômica e de Bem-Estar Social levou a um período semelhante de problemas econômicos e outras perturbações surgidos com um afrouxamento na ascensão contínua de produtividade, o que veio a demonstrar que não houve uma recuperação do ritmo anterior à grande depressão dos anos 30, levando a Era de Ouro ao desmoronamento e à perda do seu brilho. A perda dos ganhos de produtividade está diretamente relacionada à divisão do trabalho imposta pelo modelo do taylorismo-fordismo e, também, pela resistência da classe trabalhadora à intensificação do ritmo de trabalho imposto pelo capital (HOBSBAWM, 1995).

A violência ao trabalhador, apesar de existente nessa fase da acumulação intensiva com consumo de massa, é praticamente silenciada e são raros os casos registrados e analisados. Um desses relatos sobre a opressão do trabalho nesse período é retratado com muita particularidade por Simone Weil (1996, p. 79-80) em A condição operária, em que critica o excessivo controle sobre os trabalhadores desenvolvido por Taylor, considerado por ela como uma espécie de escravidão e condicionado pela rapidez dos movimentos para

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executar as tarefas e pelas ordens dadas aos operários para agilizar a produção. Os seus depoimentos sobre a sua vida operária, na França, registrados em cartas e em diários, revelam a sua conscientização da exploração e da dominação do capital naquele contexto fabril, e a necessidade de uma luta contra a opressão social. O seu cotidiano como operária foi marcado por rotinas e monotonia – “o trabalho, sem estímulos, é como a morte” –, pelas grosserias e brutalidades das chefias, pela servidão e pelo trabalho duro representados pelo relógio de ponto e pela exigência de mais produção: “Chegando-se à frente da máquina, é preciso matar a alma, oito horas por dia, pensamentos, sentimentos, tudo”. Quanto à rapidez exigida pela máquina, declara: “[...] é preciso repetir movimento atrás de movimento, numa cadência que, por ser mais rápido do que o pensamento, impede o livre curso da reflexão e até do devaneio”. As ordens, para a operária, “desde o momento em que se bate o cartão de entrada até aquele em que se bate o cartão de saída, elas podem ser dadas, a qualquer momento, de qualquer teor. E é preciso sempre calar e obedecer”. As lembranças desta vida de operária de Simone Weil, obrigada a engolir a tristeza, a irritação, o desgosto e não demonstrar alegrias são reflexos da dureza que domina o expediente da fábrica até hoje.

2.2.4 A fase da acumulação extensiva de capital com aprofundamento das