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2. IMPUTAÇÃO DE DANOS NA OMISSÃO ESTATAL

2.2 A responsabilidade subjetiva

2.2.1 A faute du service

A teoria da culpa do serviço, da faute du service, da culpa anônima, ou, ainda, da culpa administrativa, procura desvincular a responsabilidade do Estado da ideia de culpa do funcionário.305 Não se trata, portanto, da culpa individualizada, subjacente ao ato de determinado sujeito, e, sim, de culpa abstrata, anônima, isto é, uma atividade não condizente com um padrão esperado de desempenho do serviço público.306

304 Interessante observação faz Maria José Rangel de Mesquita, no sentido de não se confundirem

as figuras da faute de service e da faute du service, ambas da doutrina francesa. As duas podem gerar responsabilização da pessoa jurídica de direito público, mas na primeira é possível identificar a culpa do funcionário, ao passo que a segunda “tem lugar sempre que o facto ilícito gerador de um prejuízo na esfera jurídica do particular tenha ocorrido em virtude de um determinado serviço público ter funcionado mal e não como seria legítimo esperar – o facto lesivo que causa danos ao particular é, neste caso, imputável ao próprio serviço que faz parte integrante da Administração, e não a qualquer pessoa individual – titular de órgão, funcionário ou agente – que actue a serviço daquela” (Da responsabilidade civil extracontratual da Administração no ordenamento jurídico-constitucional vigente. In: QUADROS, Fausto de. Responsabilidade civil extracontratual da administração pública. 2. ed.Lisboa: Almedina, 2004. p. 50-51).

305 “O dever de indenizar do Estado decorre da falta do serviço, não já da falta do servidor. Bastará a

falha ou o mau funcionamento do serviço público para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes aos administrados. De acordo com essa nova concepção, culpa anônima ou a falta do serviço público, geradora de responsabilidade do Estado, não está necessariamente ligada à ideia de falta de algum agente determinado, sendo dispensável a prova de que funcionários nominalmente especificados tenham incorrido em culpa. Basta que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 241).

306 “Há de se esclarecer que a culpa a que nos referimos não se baseia, em regra, na concepção

civilista, centrada em elementos volitivos do agente para determinar uma negligência, imperícia ou imprudência, consoante concebida no plano do art. 186 do CC (art. 159 CC/16). A culpa que

Neste tópico, a doutrina divide-se se, efetivamente, se pode falar em “culpa” no caso de faute du service, ou seja, se a hipótese seria mesmo de responsabilidade subjetiva. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, trata-se de verdadeira hipótese de responsabilidade subjetiva, pois não se exigem o mero dano e a relação de causalidade, mas sim um padrão a ser seguido, um modelo abstrato juridicamente exigível, que pode ser identificado como culpa. Esclarece o autor que a confusão pode ter sido gerada por uma má tradução do termo faute, que muitos, a seu ver inadvertidamente, traduziram como ausência (falta), quando o correto seria traduzi-lo como culpa. Afirma, ainda, que outro fato a gerar confusão seriam as presunções de culpa que muitas vezes vigoram em casos de responsabilidade do Estado por faute du service. Tratar-se-ia de meras presunções relativas, a influir no ônus da prova, não na configuração do instituto de direito material.307

Nesse sentido: Maria Sylvia Zanella Di Pietro,308 Sérgio Severo,309 Sérgio Cavalieri Filho,310 José dos Santos Carvalho Filho,311 Arnaldo Rizzardo312 e Rui Stoco.313

informa algumas esferas da responsabilidade pública é aquela derivada do funcionamento anormal do serviço público, um standard baseado na concepção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo com padrões adequados de funcionamento, concepção objetiva da noção de culpa, que constitui uma das mais importantes construções do direito administrativo” (SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 247).

307 “É mister acentuar que a responsabilidade por “falta de serviço”, falha do serviço ou culpa do

serviço (faute du service, seja que for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes, tem- se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo), como sempre advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Com efeito, para sua deflagração não basta a mera objetividade de um dano relacionado com o serviço estatal. Cumpre que exista algo mais, ou seja, culpa (ou dolo), elemento tipificador da responsabilidade subjetiva” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 967-968).

308 “Essa culpa do serviço público ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão),

funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação da culpa do funcionário” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 701).

Por outro lado, Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem314 afirmam que a faute du service não pode ser identificada com a responsabilidade subjetiva, e que não pode ser aplicada acriticamente a todo e qualquer ordenamento jurídico, sendo produto do contexto jurídico-social da França. Explicam os autores, a partir de estudo de arestos do século XIX do Tribunal de Conflitos francês, que a teoria da faute du service public foi desenvolvida a partir de duas ideias: distinguir a faute de service da faute personelle; imputar a responsabilidade diretamente ao serviço, sem a perquirição de participação do agente. Em nenhum momento, assim, foi uma teoria de responsabilidade subjetiva, nem própria das condutas omissivas.

No que tange ao primeiro ponto, destaca-se o arrêt Pelletier, de 30 de julho de 1873, que considerou a faute personelle aquela que pode ser separada das funções

309 Cf. SEVERO, Sérgio. Tratado..., p. 247 e ss.

310 “Alguns autores não fazem distinção entre a culpa anônima e a responsabilidade objetiva,

chegando, mesmo, a afirmar que são a mesma coisa. Estamos, nesse ponto, com o professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao advertir que a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço, seja qual for a tradução que se dê à fórmula francesa faute du service, não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, porque baseada na culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima ou impessoal” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 241).

311 “A falta do serviço podia consumar-se de três maneiras: a inexistência do serviço, o mau

funcionamento do serviço ou o retardamento do serviço. Em qualquer dessas formas, a falta do serviço implicava o reconhecimento da existência de culpa, ainda que atribuída ao serviço da Administração. Por esse motivo, para que o lesado pudesse exerceu seu direito à reparação dos prejuízos, era necessário que comprovasse que o fato danoso se originava do mau funcionamento do serviço e que, em consequência, teria o Estado atuado culposamente. Cabia-lhe, ainda, o ônus de provar o elemento culpa” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual..., p. 546).

312 No caso da administração pública, deve-se levar em conta o conceito ou ideia do que se

convencionou denominar “falta do serviço” (faute du service), ou a “culpa do serviço”, que diz com a falha, a não prestação, a deficiência do serviço, o seu não funcionamento, ou o mau, o atrasado, o precário funcionamento. Responde o Estado porque lhe incumbia desempenhar com eficiência a função. Como não se organizou, ou não se prestou para cumprir a contento a atividade que lhe cumpria, deixou de se revelar atento, diligente, incorrendo em uma conduta culposa” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil, p. 364).

313 “Em verdade, cumpre reiterar, a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa

do serviço é subjetiva, porque baseada na culpa (ou dolo)” (STOCO, Rui. Tratado..., p. 997).

314 Cf. GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil do Estado, faute du

service e princípio constitucional da eficiência administrativa. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello et al. (Coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 262-282.

exercidas pelo funcionário, enquanto a faute de service não pode ser destacável das funções do agente público. Depois, no julgamento do caso Laumonnier-Carriol, de 5 de maio de 1877, estabeleceu-se que, se o ato danoso é impessoal, ele mantém-se administrativo e deve ser julgado pela jurisdição administrativa, ao passo que, se a personalidade do agente se revela pelas faltas de direito comum, por uma imprudência, então a falta é imputável à pessoa do funcionário, dando ensejo a conhecimento pela jurisdição ordinária.

Dessa distinção advém outra importante consequência, qual seja a cumulação de responsabilidade entre a pessoa jurídica de direito público e o funcionário. A evolução da jurisprudência do Conseil d’État gerou tal possibilidade. No citado caso Pelletier, as faltas eram compreendidas de maneira excludente: ou era falta pessoal, submetida à jurisdição ordinária, ou era falta de serviço, submetida à jurisdição administrativa. Em outro momento, a partir do Arrêt Anguet, de 3 de fevereiro de 1911, passou-se a reconhecer a possibilidade de acumular os dois tipos de falta, facultando à vítima acionar o agente ou o Estado. Posteriormente, a partir do caso Lemonnier (26 de julho de 1918), à cumulação de faltas foi associada dupla responsabilidade, de modo a se entender que, se a falta pessoal decorreu das condições criadas pelo serviço, ela não pode ser dele separada, de modo que a falta pessoal ensejará a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público a que o agente estiver vinculado. Por último, nos casos Laruellee Delville (28 de julho de 1951), admitiu-se a ação regressiva do agente em relação ao Estado, e deste em relação àquele, quando houvesse cumulação de faltas e responsabilidades.

Concluem os autores, assim, que essa preocupação de distinção da faute du service e da faute personelle tinha grande sentido na França, onde se costuma

avaliar ao mesmo tempo a conduta imputável ao Estado e o comportamento atribuível ao agente público. Era importante, assim, delimitar responsabilidades: existindo faute du service, há responsabilidade da Administração; havendo faute personelle, existe responsabilidade do agente; por fim, existindo ambas, há cumulação de responsabilidades. No direito brasileiro, o rigor dessa distinção não ostenta semelhante relevância, à medida que a Constituição Federal, no artigo 37, § 6.º, já exige que para a responsabilidade do Estado os danos causados advenham de ato daquele que está na qualidade de agente público, de modo que a falta pessoal, quando totalmente desvinculada de função pública, não tem relação com o direito administrativo e a responsabilidade civil do Estado.

No que tange ao segundo aspecto da faute du service, qual seja imputar a responsabilidade diretamente ao serviço, sem a perquirição de participação do agente, são hipóteses em que não é necessária qualquer avaliação de culpa pessoal, bastando que se verifique a ineficiência do serviço, abstratamente considerado. A noção de culpa, que é pessoal, vinculado ao ato, à pessoa, é deixada em um plano secundário.

Assim, analisando o contexto de criação da teoria, entendem Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem que a teoria da faute du service não pode ser simplesmente trasladada para os dias atuais, para qualquer ordenamento jurídico e, particularmente no Brasil, utilizada em hipóteses de omissão do Estado. É mister transcrever um trecho do artigo ora em comento:

Pede-se vênia para manifestar discordância em relação ao entendimento antes mencionado [identificação da faute du service como responsabilidade subjetiva]. As considerações tecidas a seguir têm por escopo demonstrar que a adoção da responsabilidade subjetiva no direito brasileiro, nos casos de responsabilidade civil do

Estado por descumprimento do dever de eficiência nas situações omissivas (serviço não funcionou ou funcionou atrasado), não procede pelo menos por quatro motivos: (a): a teoria da faute du

service não remonta, necessariamente, à responsabilidade

subjetiva; (b) o critério para distinguir a responsabilidade pour faute (por falta) da responsabilidade sans faute (sem falta) no direito francês não é a natureza omissiva da conduta; (c) na França admite- se hipótese de responsabilidade objetiva do Estado por omissão; (d) os contornos da responsabilidade estatal dependem do regime jurídico administrativo de cada ordenamento, e a Constituição Federal de 1988 impõe um sistema de responsabilidade objetiva.315

No que se refere ao primeiro aspecto (a), fazem os articulistas uma investigação sobre o termo faute.316 A partir de lições da doutrina francesa, demonstra-se que a faute indica uma violação de dever preexistente, um fato objetivo de inobservância de um dever juridicamente imposto, não guardando qualquer relação com a aferição de negligência, imprudência ou imperícia. A melhor tradução ao termo, destarte, é falta, no sentido de “infração” (não no sentido de “ausência”), como se costuma utilizar no direito do trabalho. No entanto, se a culpa é própria do subjetivismo, da pessoa e de sua vontade, não há sentido utilizar o mesmo termo para descrever um fenômeno como a faute du service, em que se perscrutam padrões objetivos e abstratos de funcionamento da atividade pública. Na sequência, arrematam:

Torna-se sem sentido falar de “culpa da Administração” ou “culpa do serviço.” Só podem incorrer em culpa ou dolo pessoas físicas, dotadas de subjetividade, pois ambos são elementos subjetivos. Se nos casos de faute du service não se perquire quem foi o agente

315 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 269-270.

316 A esse respeito, Menezes de Cordeiro reconhece a dificuldade de tradução do termo faute, que

surgiu com Jean Domat (1625-1696), e depois acabou consagrado no sistema de responsabilidade civil francês inaugurado com o código napoleônico de 1804. Explica o tratadista português que a faute é o elemento central da teoria de responsabilidade civil francesa, e que engloba a culpa, a ilicitude e o nexo causal (modelo monista de responsabilidade). A divisão entre culpa, nexo causal e ato ilícito é uma criação dos pandectistas alemães, precursores de um método analítico de verificação da responsabilidade, que viria a vicejar com o BGB em 1894 (Cf. Tratado..., p. 317-325).

responsável pela prática do dano, é incompreensível pretender avaliar se houve culpa ou dolo da pessoa jurídica.317

No que tange ao segundo ponto (b), explicam que a teoria da faute du service não foi elaborada para ser aplicada às condutas omissivas da Administração Pública, mas sim para identificar as hipóteses em que ela deve ser compelida a indenizar o cidadão, sozinha (quando não houver falta pessoal destacável da Administração Pública) ou em solidariedade com o agente público. A responsabilidade civil do Estado francesa não tem por fundamento a dicotomia responsabilidade objetiva vs. responsabilidade subjetiva. Pelo contrário, a grande questão da matéria é identificar a existência de uma falta para verificação da responsabilidade civil do Estado, considerada a partir de um padrão objetivo de funcionamento do serviço público. Sustentam os autores, assim, que a doutrina brasileira tentou promover uma adaptação – inadequada – dessa teoria ao direito brasileiro, no qual há disputa entre a responsabilidade objetiva e subjetiva dentro da responsabilidade civil, mas que tal disputa jamais esteve na pauta do direito francês, sendo por isso errado identificar a responsabilidade pour faute como responsabilidade subjetiva. Ademais, a doutrina francesa jamais circunscreveu a teoria às condutas omissivas, bem como jamais fez referência à negligência ou à imprudência, de modo que não há sentido em vincular essas noções à teoria da faute du service.318

Em relação ao terceiro ponto (c), afirmam que a própria doutrina e jurisprudência francesas reconhecem casos de responsabilidade objetiva por

317 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 274. 318 Idem, ibidem, p. 275-276.

omissão, de modo que não cabe ao direito brasileiro negar a hipótese, com base em doutrina francesa. Por fim (d), sustentam que a importação de teorias desenvolvidas em outros países requer compatibilidade entre os sistemas de direito positivo, o que não existe no que se refere à faute du service, uma teoria criada para solucionar problemas próprios do sistema francês, que no Brasil não se apresentam da mesma maneira.319

Podem ser acrescentados, ainda, alguns outros elementos à crítica de identificação da faute du service com uma teoria baseada na culpa. Com efeito, à luz do direito civil, apontar a teoria da culpa do serviço como uma teoria de responsabilidade subjetiva encerra uma contradição evidente. Os próprios autores de direito administrativo dizem que se trata de uma culpa abstrata, não vinculada à conduta de determinado agente, mas sim uma conduta em desacordo com o padrão de funcionamento que deveria ostentar o serviço público, e que acabou se revelando ineficiente.320

Se assim o é, é inadequado dizer na sequência, como fazem os partidários da corrente em comento, que para a verificação da culpa de serviço é necessária a comprovação de negligência, imprudência, imperícia ou dolo, que são parâmetros de aferição de atos de pessoas, em que há participação da vontade, e que tradicionalmente teve um papel de maior relevância para aferição de culpa. Vale aqui relembrar as lições expostas no item 1.3 do Capítulo 1 deste trabalho.

319 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade civil..., p. 276-277.

320 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso…, p. 966-967; DI PIETRO, Maria Sylvia, Direito

Parece claro o que faz a teoria da faute du service, que é buscar padrões de eficiência para a entidade abstrata serviço público, ou seja, se o serviço atingiu os patamares esperados, não há falha no serviço, mas, se ele foi desempenhado em patamares abaixo do desejado, o serviço foi falho. A fixação desses standards que devem ser seguidos pela atividade estatal em absoluto pode ser chamada de responsabilidade subjetiva, de culpa, cujo conceito nasceu para moralizar condutas humanas individuais.321

Sérgio Severo, em que pese não abandone a denominação culpa do serviço, reconhece que não há falar em negligência, imprudência ou imperícia quando se toca nesse tema:

[...] há que se esclarecer que a culpa a que nos referimos não se baseia, em regra, na concepção civilista, centrada em elementos volitivos do agente para determinar uma negligência, imperícia ou imprudência, consoante concebida no plano do art. 186 do CC (art. 159 do CC/16). A culpa que informa algumas esferas da responsabilidade pública é aquela derivada do funcionamento anormal do serviço público, um standard baseado na concepção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo com padrões adequados de funcionamento, concepção objetiva da noção de culpa, que constitui uma das mais importantes construções de direito administrativo.322

Mais adiante em sua obra, afirma que tecnicamente sequer se poderia chamar de culpa o funcionamento anormal do serviço, uma vez que não tem aferição subjetiva:

321 “Reina certa nebulosidade na doutrina e na jurisprudência pátrias quanto à responsabilidade por

omissão. Há afirmações nesse sentido de tratar-se de responsabilidade subjetiva. [...] Não parece apropriado o uso do termo subjetiva, nem da expressão culpa do serviço, pois tais vocábulos se mostram adequados a ações ou omissões de pessoas físicas, não de pessoas jurídicas” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 378).

O critério de funcionamento anormal corresponde à aferição de um elemento que não é propriamente identificado com a culpa. Trata-se de um standard jurídico; logo, a aferição não é efetivamente subjetiva, uma vez que não decorre de mera observação do elemento volitivo do agente, mas também do confronto com o critério objetivo com que se considera o serviço em si. Assim, o critério de funcionamento anormal (faute du service), fruto do direito administrativo, encontra-se numa zona fronteiriça entre os fatores de atribuição objetivo e subjetivo, ocupando este último posto mais por tradição do que por aferição científica.323

Nesse sentido, se a culpa anônima não é pessoal, mas abstrata; se os critérios da culpa clássica de direito civil foram feitos para condutas em que há participação da vontade, não como critérios abstratos de eficiência; e, por último, se a teoria da culpa do serviço na verdade compara o serviço desempenhado com um padrão abstrato de eficiência, não há razão chamar de culpa aquilo que não é culpa, donde se conclui que a faute du service não pode ser apontada como responsabilidade subjetiva.

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