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Omissão genérica e omissão específica

2. IMPUTAÇÃO DE DANOS NA OMISSÃO ESTATAL

2.4 Omissão genérica e omissão específica

Esse entendimento foi pioneiramente defendido por Guilherme Couto de Castro,349 que faz a distinção entre omissão específica e omissão genérica. Para expor seu ponto de vista, começa o autor dizendo que a responsabilidade objetiva estatal prevista na Constituição Federal decorre da ação administrativa, não da omissão, salvo se ela estiver ligada a específico dever de agir, sob pena de cobertura por parte do Estado de riscos inerentes à vida coletiva. Assim, entende o

349 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. 2. ed. Rio de

autor que, havendo uma omissão específica, não genérica, a responsabilidade deve ser analisada sob o ponto de vista objetivo, tal qual na hipótese de ação estatal.

Em outros termos, para referido autor há omissão específica quando o Estado, por omissão sua, cria a situação propícia para a ocorrência do evento em situação que tinha o dever de impedi-lo. Em outros termos, quando a própria entidade pública, por não agir da maneira esperada, gera condições para que o risco concretize-se no evento danoso. Pode-se dizer que o Estado acaba por se colocar na posição de garante, ou seja, na posição em que há dever de impedir o resultado. Nesse caso, a responsabilidade do Estado é objetiva. Já na omissão genérica o Estado não se colocou na posição de garante, pois sua omissão não contribuiu de maneira específica e circunstanciada para a produção do dano, o que torna sua responsabilidade subjetiva.

Um exemplo fornecido no referido livro é a morte de detentos em estabelecimentos penitenciários. É dito que há um dever específico de agir – cuidar da incolumidade física do preso – de modo que não importa que a conduta estatal, que pode até mesmo ser adequada e dentro dos padrões de normalidade, emergindo inexoravelmente sua responsabilidade diante do não cumprimento do dever de garantir a vida do preso. Ele arremata dizendo que “não houve ilícito por parte da Administração; foram adotadas as cautelas razoáveis e imediatas, mas o evento ocorreu, ainda assim”.350

Note-se que o autor confunde o ilícito com responsabilidade subjetiva, à medida que diz que não houve ilícito da Administração – de modo que não há responsabilidade subjetiva –, mas há responsabilidade (objetiva) pela ocorrência de

um dano que deveria ser evitado. Ora, se o resultado danoso sobreveio, e há responsabilidade, há ilícito, e no caso um tipo muito específico que foi a violação de um dever de agir imposto ao ente estatal. O que ocorre é que esse ilícito não tem relação com a culpa, com responsabilidade subjetiva. Não é adequado, destarte, dizer que não houve ilícito pelo fato de ser desnecessária a verificação de culpa.

Luis Manuel Fonseca Pires externa opinião em sentido equivalente, ao afirmar que a responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão não implica sua transformação em um segurador universal, de modo a se responsabilizar por todo e qualquer evento ocorrido em seu território e no qual não tenha intervindo. Assim, ao tratar da responsabilidade civil do Estado pela ausência de segurança pública, para esse autor, não é o fato da agressão, da violência, que gera a responsabilidade civil, mas sim a identificação de um comportamento omissivo imediato, concreto e circunstanciado do Poder Público que permite imputar sua responsabilidade.351

Rômolo Russo Júnior também é partidário da distinção entre omissão genérica e específica, dizendo que não cabe ao Estado a obrigação de reparar danos causados por atos predatórios, ilícitos em geral, mas cabe sim quando se tratar de uma omissão específica e concreta, quando, por exemplo, há confrontos pré-agendados por via eletrônica entre torcidas organizadas, e tal conflito não é impedido ou reprimido, causando dano a terceiros.352 A distinção também é adotada por Sérgio Cavalieri Filho.353

351 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado..., p. 731 e ss. 352 ROSSO JÚNIOR, Rômolo. Responsabilidade civil do Estado..., p. 748-749.

353 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 252. O autor apresenta exemplos que ajudam a

compreender a ideia de omissão específica: se o motorista embriagado atropela e mata pedestre que estava na beira da estrada, o Estado não poderá ser responsabilizado, pois se trata de

Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, em dissertação de mestrado sobre responsabilidade civil do Estado por omissão, adota posição semelhante, defendendo que não se pode estabelecer uma dicotomia estanque entre a responsabilidade subjetiva e objetiva quando se trata de responsabilidade civil do Estado por omissão. De acordo com esse autor, deve ser promovida uma comparação entre a inação do Poder Público e o grau de eficiência que dele se espera, de modo a se aferir, com menor erro, se um comportamento passivo está além ou aquém do desejável. Se o comportamento estatal for muito abaixo do mínimo esperado, objetiva será a responsabilidade, ao passo que, quanto mais próximo do mínimo, será subjetiva. Assim, se a conduta estatal estiver dentro do padrão de eficiência que se espera, o Estado não poderá ser responsabilizado, e tal faixa de rendimento da atividade estatal deve ser orientada pela legalidade, moralidade e eficiência. Vale a pena transcrever um trecho que sintetiza bem tal ideia:

O ilícito omissivo não responde a critério tão vasto que transforme o Estado em criatura onipresente e pagador universal, o que o conduzirá à inexorável falência. Quando a omissão for específica, objetiva será sua responsabilidade. Noutro aspecto, seu comportamento será de omissão genérica e sua responsabilidade apurada como subjetiva. Porque quando o Estado pratica uma omissão específica, seu rendimento está muito abaixo do padrão imaginário de eficiência, e desculpa por sua inação não soará razoável. Quando descumpre uma obrigação geral, rendendo ensejo a uma omissão genérica, está próximo da eficiência esperada e é crível a investigação de sua culpa.354

omissão genérica. No entanto, se o motorista, momentos antes, passou por uma patrulha rodoviária, teve o veículo parado, mas os policiais, por alguma razão, deixaram-no prosseguir viagem, aí já haverá omissão específica que se erige em causa adequada de não impedimento do resultado. Nesse segundo caso haverá responsabilidade objetiva do Estado. Outro exemplo: o Estado não pode ser responsabilizado por veículo em má condição de manutenção que causa acidente, mas pode ser responsabilizado se tal veículo foi aprovado em alguma vistoria que aprovou sua utilização.

354 CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. Responsabilidade civil extracontratual por omissão do

O próprio autor reconhece que esse raciocínio coincide em grande medida com a distinção entre omissão genérica e omissão específica ora em comento.355

As posições ora apresentadas são ligeiramente diferentes se comparadas à simples dicotomia responsabilidade subjetiva contra objetiva, acima exposta, pois não são tão extremas, permitindo a convivência entre ambos os regimes de responsabilidade quando se estiver diante de omissão do Estado.

Todavia, a afirmação de que a espécie de omissão altera a natureza da responsabilidade civil não é adequada tecnicamente. Na dita omissão específica há responsabilidade porque, no caso concreto, o Estado acaba por se colocar no dever de impedir aquele desdobramento causal. Na genérica não há responsabilidade pelo fato de não haver referido dever. A culpa não tem nenhuma relação com essa distinção.

A questão que se coloca é o dever ou não do Estado de impedir o resultado, ou melhor, de quando surge tal dever para um ente de responsabilidades tão numerosas e genéricas. Não há falar, assim, em culpa (negligência, imprudência ou imperícia).

Destarte, a maneira correta de enxergar a dicotomia ora em comento é transportando a vexata quaestio do elemento subjetivo para a abrangência do dever de agir do ente estatal, ou seja, para a relação de imputação de sua omissão com o dano. Não se deve debater sobre culpa. Deve-se ter mente apenas se há o dever de impedir o desdobramento do nexo causal, haja vista que aquela situação concreta

assim o exige. O debate para aferição da responsabilidade, destarte, deve ser restrito à relação de imputação do dano ao Estado (relação de causalidade), que na espécie é diferenciada pelo fato de a conduta ser omissiva.

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