PUC-SP
Igor Volpato Bedone
Imputação de danos na omissão estatal
Mestrado em Direito
SÃO PAULO
PUC-SP
Igor Volpato Bedone
Imputação de danos na omissão estatal
Mestrado em Direito
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Profa. Dra. Odete Novais Carneiro Queiroz.
SÃO PAULO
A SALVADOR BEDONE e JOSÉ VOLPATO,
Se há algo que o autor desta dissertação não aprecia são clichês. Tanto na vida como nas artes, ou no mundo jurídico. Todavia, ao cabo de um trabalho tão árduo e desgastante, impossível fugir da tradição de mencionar todos os que tiveram
sua parcela de colaboração durante essa caminhada.
Em primeiro lugar, agradeço à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo pelo apoio institucional que dá aos seus membros que querem estudar e se
aperfeiçoar. Carreira da qual me orgulho muito ser integrante, e que tem a difícil missão de defender o Estado, em um país em que as pessoas são individualistas e
muitas vezes não têm respeito e cuidado com a res pública. “Por amor às causas
perdidas” é que, corajosamente, atuamos. Agradeço aos meus colegas e amigos procuradores que nesse período estiveram comigo defendendo a São Paulo
Previdência – SPPrev, diante de um Judiciário nem sempre receptivo, atuando bravamente, mas sem perder a ternura jamais.
Agradeço também aos meus amigos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, instituição em que me formei, no maior âmbito que essa palavra pode significar. Pela grande quantidade de pessoas, faço o agradecimento em nome do
nosso grande líder, Anderson Cortez Mendes, hoje juiz de Direito, que dignifica e honra a magistratura paulista, e também em nome de José Francisco Rossetto, hoje
esse caminho. Pessoas brilhantes com as quais aprendo imensamente, e pelas quais nutro imensa admiração: Rafael, Felipe, Paulo, Régis, Thomaz e Luis Gustavo.
Sou muito grato, também, aos meus colegas no mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituição que me acolheu muito bem desde o
início da pós-graduação, e que contribuiu sobremaneira com minha formação intelectual. Agradeço, assim, a Gabriel, Raquel e Daniel, colegas de mestrado, com os quais aprendi muito em milhares de discussões acadêmicas, sempre respeitosas
e francas. Agradeço, também, à minha orientadora, Professora Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz, pela sua generosidade e sabedoria em me orientar e por
me ter como assistente na graduação da PUC-SP no ano de 2011.
Meus agradecimentos, também, àqueles sem os quais eu não teria chegado aonde cheguei. Pessoas que, em uma família repleta de médicos, foram meu norte,
inspiração e exemplo, não só profissional, mas também de vida. Assim, agradeço a: Paulo Curi Neto, brilhante Conselheiro do Tribunal de Contas de Rondônia, meu
querido primo, cuja obstinação, honestidade, inteligência e cultura são fontes de profunda admiração; Wiliam Sebastião Bedone, meu tio e “pai paulistano”, Procurador do Ministério Público do Trabalho e professor universitário, que
carinhosamente me acolheu quando aquele jovem de 17 anos veio do interior para a Capital, e cujos conselhos e exemplos foram fundamentais na minha formação como
minha querida sogra Carmen Lúcia, meu querido sogro José Carlos, meus queridos cunhados Vitor e Gisella, e, por fim, meus sobrinhos loirinhos que são o orgulho do
tio, Gustavo e Helena. Agradeço, também, aos meus irmãos e cunhados, pessoas que amo ter ao meu lado, sempre: Rebeca, Ivan e Anna, Raquel e Fábio. Sem
esquecer, por último, de Henrique, o primeiro neto da família, que está vindo por aí.
Chegando ao final desses agradecimentos, menciono meus amados pais Ivan e Regina. A palavra “tudo” é insuficiente para significar o que eles fizeram – e
fazem –, não só por mim, mas por todos os meus irmãos. Meu amor e gratidão são imensuráveis. Obrigado por terem constituído essa família maravilhosa, por nos
terem legado o exemplo de retidão, ternura e generosidade. Espero poder ser para os meus filhos os pais que vocês são para mim.
Finalmente, agradeço à minha esposa Marina, pela paciência de suportar fins
de semana perdidos para que eu pudesse escrever esta dissertação, por ter dado um novo significado em minha vida, por me ensinar diariamente o que é a felicidade
BEDONE, Igor Volpato. Imputação de danos na omissão estatal. 2013. 241 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
Esta dissertação aborda a imputação de danos ao Estado por sua conduta
omissiva. A principal meta é avaliar se há responsabilidade objetiva ou subjetiva quando se está diante de omissões estatais, conforme notória divergência doutrinária, refletida na jurisprudência. A abordagem metodológica é essencialmente
dogmática, e optou-se por desenvolver o trabalho a partir do estudo das construções dogmáticas típicas do direito civil, como a conduta, o nexo de causalidade e a culpa.
Pretende-se, assim, estabelecer um diálogo entre esses conceitos e o direito administrativo, ramo em que em geral é tratada a responsabilidade civil do Estado. Afinal, se é dito por parte da doutrina que na omissão há um dever de agir que,
violado, implica responsabilidade subjetiva, é imperioso estudar o que é culpa, e quando uma conduta omissiva torna-se civilmente relevante. Ao final, verificar-se-á
que esse debate está mal focado no elemento subjetivo da responsabilidade, quando deveria estar na relação de causalidade, ou melhor, de imputação dos danos. Avaliar-se-á, também, o importante papel das causas de não incidência de
responsabilidade dentro do processo de imputação de responsabilidade por omissão do Estado.
BEDONE, Igor Volpato. Imputação de danos na omissão estatal. 2013. 241 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
This essay focuses on the attribution of liability to the State for its omissive
conduct. The main objective is to discuss whether State omission gives rise to strict liability or fault liability, a question that is the subject of a well-known controversy in legal doctrine, echoed by jurisprudence. The methodology employed is essentially
dogmatic, and I have chosen to build this essay on Civil Law concepts such as conduct, causation and liability. The underlying purpose is to compare such concepts
with those of Administrative Law, the branch of law which establishes the general boundaries of civil liability of the State. If some writers argue that omission is characterized by a duty to act which, if breached, imposes fault liability, one must
study what is “fault” and when an omissive conduct becomes relevant from a Civil Law perspective. In the end, it will be shown that the debate is wrongly centered on
the subjective element of fault, when it should focus on causation, or rather on attribution of liability. The importance of the causes for not imposing liability as part of the process of assessing the State’s liability for omission is also discussed.
INTRODUÇÃO ... 12
1. Objeto ... 12
2. Metodologia, método de trabalho e abordagem metodológica ... 15
3. Corte epistemológico e objeto de estudo ... 20
4. Plano de trabalho ... 24
1. OMISSÃO CIVILMENTE RELEVANTE, IMPUTAÇÃO DE DANOS E CULPA ... 27
1.1 Omissão relevante para efeito de responsabilidade civil ... 27
1.1.1 Introdução ... 27
1.1.2 A omissão no direito penal ... 29
1.1.3 A omissão como modalidade da conduta humana ... 32
1.1.4 O problema das fontes do dever jurídico de agir ... 42
1.1.4.1 Contribuições do direito estrangeiro ... 42
1.1.4.2 Lei ... 53
1.1.4.3 Negócio jurídico ... 56
1.1.4.4 Risco anteriormente criado pelo omitente ... 59
1.1.4.5 Outras hipóteses ... 65
1.1.5 Conclusão ... 70
1.2 Nexo de causalidade e imputação de danos ... 71
1.2.1 Aspectos gerais acerca do nexo causal ... 71
1.2.2 Teorias sobre causalidade (imputação de danos) ... 77
1.2.2.1 Conditio sine qua non ... 78
1.2.2.2 Causalidade adequada ... 79
1.2.2.3 Escopo da norma violada ... 85
1.2.3 Danos diretos e imediatos ... 89
1.2.3.1 Conclusão sobre as teorias ... 93
1.2.4 Conclusão: a imputação de danos na conduta omissiva ... 97
1.3 A evolução do conceito de culpa para a dogmática de Direito Civil ... 100
1.4 A responsabilidade objetiva e a objetivação da ideia de culpa ... 107
1.4.1 Estrutura ... 113
1.4.1.1 Negligência e omissão ... 119
1.4.2 Conclusão ... 122
2. IMPUTAÇÃO DE DANOS NA OMISSÃO ESTATAL 125 2.1 Introdução ... 125
2.2 A responsabilidade subjetiva ... 131
2.2.1 A faute du service ... 138
2.3 A responsabilidade objetiva ... 147
2.4 Omissão genérica e omissão específica ... 155
2.5 Posicionamento da jurisprudência ... 160
2.6 Imputação de danos na omissão estatal ... 170
2.6.1 As fontes do dever de agir na omissão estatal ... 178
2.6.2 Excludentes da responsabilidade estatal na conduta omissiva: a definição da abrangência do dever de agir ... 186
2.6.2.1 Teoria geral das excludentes ... 186
2.6.2.2 Excludentes da responsabilidade estatal ... 193
2.6.2.3 Excludentes da imputação de danos na omissão estatal ... 198
2.6.2.3.1 Fato exclusivo da vítima ... 198
2.6.2.3.2 Caso fortuito ou força maior e fato exclusivo de terceiro – o âmbito de proteção da norma ... 201
2.7 Proposta de interpretação do artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal ... 214
CONCLUSÕES ... 216
INTRODUÇÃO
1. Objeto
A presente dissertação discutirá a imputação de danos ao Estado (em sentido amplo) em razão de sua omissão. A ideia nasceu a partir do diuturno trabalho em casos concretos nos quais este autor, atuando como Procurador do Estado de São
Paulo, constatou certa insuficiência das construções dogmáticas para a solução de problemas envolvendo a responsabilidade civil por omissão.
A riqueza desses casos gerou a percepção de que o confronto que se apresenta hoje na dogmática, no Brasil em especial, acerca da responsabilidade do Estado por omissão não abarca toda a dimensão do tema, de modo que ambas as
posições são incompletas para solucionar os casos concretos colocados diante dos operadores do direito.
É famoso o dissenso doutrinário que existe na matéria. Conforme será pormenorizadamente exposto mais adiante, de um lado defende-se a tese de que, tratando-se de omissão, é preciso verificar o dever de agir infringido pela
Por outro lado, entende-se que, não tendo o artigo 37, § 6.º, da Constituição
Federal feito qualquer ressalva, não caberia ao intérprete fazê-la, motivo pelo qual a responsabilidade civil do Estado deveria ser sempre objetiva.
Percebe-se, assim, que se convencionou limitar esse debate apenas no
elemento subjetivo da responsabilidade civil. É necessária a comprovação de culpa? A responsabilidade é objetiva ou subjetiva? São apenas essas perguntas que os
operadores do direito, em geral, fazem a si mesmos quando são colocados diante de casos tais.
Tais indagações são, todavia, insuficientes para lidar com toda a
complexidade dos problemas envolvendo a responsabilidade civil do Estado quando se trata de omissão imputada ao ente público. Alguns exemplos tornam evidente tal
fato.
Tornou-se corriqueira no Brasil, infelizmente, a morte de detentos em estabelecimentos penitenciários. Imagine-se que ocorra uma briga entre facções em
determinado presídio, levando a óbito alguém que cumpria pena no estabelecimento, sob a custódia do Estado. Trata-se de responsabilidade do Estado
por omissão, afinal este deixou de impedir o resultado danoso, ou seja, não atuou sobre desdobramento causal em curso. O intérprete adepto da corrente subjetiva deve indagar o quê a respeito do caso para solucioná-lo? Se houve culpa na
atividade estatal? Como avaliar a culpa, um parâmetro pessoal de conduta, para aferir responsabilidade nesse caso? Será necessário avaliar toda a execução
número de detentos por cela, checar o número de agentes que cuidavam do
estabelecimento?
Por outro lado, se for dito que a responsabilidade simplesmente é objetiva, isso significa que o Estado deveria interromper qualquer desdobramento causal
gerador de danos? Considerando que a Constituição Federal atribui uma imensa gama de deveres ao Estado, teria ele de agir sempre, sendo responsabilizado por
qualquer dano sofrido por um de seus cidadãos?
Esta dissertação, destarte, nasceu com intuito claro de ser instrumento para a solução de problemas. Não se pretende a simples compilação de doutrinas, ou a
repetição de lições já por todos conhecidas, que muitas vezes se revelam meras abstrações, sem qualquer utilidade para resolver as questões que afligem o
operador do direito. Pelo contrário, a preocupação do trabalho é servir como uma ferramenta de auxílio na compreensão da responsabilidade civil do Estado na conduta omissiva. Como bem lembra Menezes de Cordeiro, “o Direito é um modo de
resolver casos concretos”.1
Tal assertiva não significa, todavia, desapego pela teoria, ou foco somente em
soluções particulares. O rigor teórico e acadêmico é preocupação primeira do trabalho. O que se pretende dizer é que o trabalho será desenvolvido visando à resolução de problemas concretos, reais, da responsabilidade civil do Estado por
omissão. Esse escopo será detalhado no item seguinte.
1 Prefácio da obra de CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na
2. Metodologia, método de trabalho e abordagem metodológica
A ciência, caso haja pretensão de designá-la como tal, precisa ter um
método.2 É imprescindível, assim, indicar, de plano, o método de trabalho que será
desenvolvido. Antes, todavia, deve-se fazer uma breve distinção entre o método de
trabalho, metodologia e abordagem metodológica.
A metodologia tem por objeto “o estudo dos diversos processos que devem disciplinar a pesquisa do real, de acordo com as peculiaridades de cada campo de
indagação”.3 A metodologia jurídica, ou método da Ciência do Direito, procura
apontar formas mediante as quais o jurista deve conhecer o direito. Os autores de filosofia e de teoria geral do direito por séculos debateram (e debatem) a
metodologia jurídica, premidos pela necessidade de justificar e comprovar seu caráter científico.
Karl Larenz, em sua monumental obra sobre esse assunto,4 traça um
panorama bem amplo sobre as discussões metodológicas que intrigaram os juristas
desde o século XIX. Arthur Kaufmann5 também expõe de maneira eloquente os
diversos movimentos que se apresentaram nos últimos dois séculos.
2 Miguel Reale ensina que o que distingue uma ciência de outra não é o objeto, mas o método. Com efeito, diversas ciências podem ter o mesmo objeto, mas a distinção de uma em relação a outra dar-se-á pela abordagem que cada uma dá àquele objeto (cf. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 74-78).
3 Idem, ibidem, p. 29.
4 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. p. 9-241.
Nesse sentido, a escola histórica de Savigny,6 a jurisprudência dos conceitos de
Puchta,7 a jurisprudência dos interesses de Philipp Heck,8 o positivismo lógico-jurídico
de Kelsen,9 a jurisprudência da valoração do próprio Larenz,10 isso para ficar nas
6 Friedrich Carl v. Savigny é considerado o pai da metodologia moderna. Maior expoente da escola histórica do direito, sistematizou os métodos clássicos de interpretação da norma jurídica: gramatical, lógico, histórico e sistemático. Propunha que o critério decisivo para a aplicação jurídica é a vontade do legislador, de modo que se identificava com a chamada teoria subjetivista
da interpretação. Repudiava, assim, o método teleológico de interpretação (Cf. LARENZ, Karl.
Metodologia..., p. 9-19; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 162-166).
7 A jurisprudência dos conceitos, fruto da escola pandectista alemã, concebe o direito como um sistema fechado e estanque, sendo tarefa do jurista deduzir uma pirâmide de conceitos a partir de um conceito supremo. Os conteúdos jurídicos devem, desta maneira, ser deduzidos de maneira lógica dos conceitos superiores, de modo que vão ganhando, paulatinamente, maior concretude. Tal “genealogia dos conceitos”, assim designada pelo pai da teoria, Georg Friedrich Puchta, garante um sistema baseado em um método dedutivo, ou seja, elege a subsunção como forma primordial de aplicação do direito. A definição desse conceito supremo, do qual a pirâmide seria deduzida, é tarefa da filosofia do direito, não da dogmática jurídica (cf. LARENZ, Karl.
Metodologia..., p. 21 e ss.; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 167-170).
8 A jurisprudência dos interesses de Philipp Heck tentou romper com o formalismo da jurisprudência dos conceitos, que pretendia reduzir o fenômeno jurídico à mera lógica formal, mediante a simples subsunção e dedução de conceitos. O juiz na interpretação da norma deve procurar reconstituir a intenção do legislador (interpretação subjetiva) e dar ao caso, mediante a investigação dos interesses que foram o substrato da norma, a solução que melhor se coadune com aquela intenção. Heck denominou o método da jurisprudência dos conceitos de método da inversão, pois, ao abstrair em conceitos as soluções para os casos da vida, acabava por distanciar-se da realidade, gerando injustiça. O sistema criado por essa metodologia seria, assim, aberto, ante o reconhecimento da existência de lacunas. A jurisprudência dos interesses sofreu severa crítica por colocar os interesses tanto como fator causal do direito – criador da legislação (ser) – como critério de valoração dos próprios interesses (dever-ser). De qualquer modo, ainda que lhe falte rigor científico, seu papel de rompimento do formalismo da jurisprudência dos conceitos foi fundamental (Cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 63-77; KAUFMANN, Arthur. A problemática..., p. 173-174).
9 A teoria pura do direito foi escrita em um período em que as ciências humanas tinham a necessidade de se afirmar como tais. Para afixar o rótulo de “Ciência” ao direito, foi Kelsen buscar um método que seria próprio do jurista, distinguindo sua tarefa daquela do sociólogo, do historiador, do psicólogo etc. A preocupação de afirmação do direito como ciência, por um lado, e de sua distinção das demais disciplinas dentro das ciências humanas, por outro, está por trás da Teoria Pura. O trabalho de Kelsen, assim, figura no campo da epistemologia, ou seja, consiste em uma explanação do modo pelo qual o jurista deve conhecer o direito. Não se trata, portanto, de ontologia (o que é o direito?), ou de uma teoria da Justiça. Kelsen, a partir da lógica transcendental kantiana, coloca a norma em um plano diferente do plano fático, de modo a existirem dois planos: o do ser e o do dever-ser. Naquele plano, próprio das demais ciências, trabalha-se com a relação de causalidade (“se A é, B é”), enquanto neste, típico da ciência do direito, trabalha-se com a ideia de imputação (“se A é, B deve-ser”). Caberia ao jurista, assim, ater-se ao plano normativo, avaliando se a norma é válida, ou seja, se ela tem fundamento de validade em norma superior, e se ela tem o mínimo de eficácia. A aplicação da norma não seria tarefa da Ciência do Direito, mas sim da política. O objeto da Ciência do Direito, destarte, seria somente a norma, mediante a aplicação do método normológico de imputação (Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. passim; REALE, Miguel. Filosofia..., p. 455-480; DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 13-30).
metodologias mais conhecidas, foram formas de estabelecer critérios mediante os quais
o jurista deve conhecer e aplicar o direito. O método tópico, de Viehweg,11 bem como o
sistemático, defendido por Claus-Wilhelm Canaris,12 também constituem discussões no
campo metodológico. Pietro Perlingieri entende ser impossível a eleição de uma única
metodologia para lidar com o direito, sendo própria da Ciência do Direito a pluralidade metodológica, cabendo ao jurista estabelecer uma mediação dentro dessa
diversidade.13 Na tradição anglo-saxônica, célebre é a postura metodológica de Ronald
Dworkin,14 com sua teoria General Principles of Law.
ao caso concreto. Nisso residiria a problemática da “jurisprudência da valoração”, sobre a qual se debruça a filosofia do direito. O jusfilósofo alemão rompe, assim, com o pensamento jurídico formalista abstrato, defendendo um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores (Metodologia..., p. 163-182 e 297 e ss.).
11 Para Theodor Viehweg, o direito não comporta uma estrutura sistemática, que permitiria a dedução de todas as suas proposições a partir de alguns axiomas superiores. O modo de realização do Direito seria, então, tópico, ou seja, baseado no problema colocado diante do intérprete. Tal problema é solucionado mediante tópicos, ou seja, lugares-comuns compartilhados com o interlocutor que fundamentam a solução encontrada. O pensamento tópico é, portanto, problemático, não sistemático, à medida que regressa sempre ao problema (caso concreto), não ensejando soluções abstratas, nem um sistema unívoco e completo, mas sim uma pluralidade de sistemas. Para a tópica, então, a Ciência do Direito deve ser entendida como um processo especial de solução de problemas, uma teoria da praxe (cf. LARENZ, Karl. Metodologia..., p. 201-215; CANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito..., p. 245 e ss.).
12 Claus-Wilhelm Canaris teceu crítica à tópica, reafirmando o caráter sistemático da Ciência do Direito, cabendo ela somente erupções ocasionais. Canaris confere ao sistema as características de ordem e unidade, e adjetiva o sistema jurídico como aberto, uma vez que está em constante evolução. Para o autor, a tópica não fornece adequadamente a resposta de qual entre os diversos tópicos ligados ao problema deve ser escolhido para solucioná-lo, cabendo somente ao sistema cumprir essa função de escolha (CANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito...,
p. 279-289).
13 PERLINGIERI,Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 123-126.
Percebe-se, assim, que a metodologia jurídica é área própria da Filosofia do
Direito. Sua finalidade não é a solução de casos concretos, mas sim estudar a forma pela qual o direito deve ser conhecido pelo jurista. Sua abordagem é, pois,
zetética,15 isto é, as perguntas e respostas feitas pelo estudioso são infinitas. Esta
dissertação, ao contrário, situa-se na esfera da dogmática, não sendo seara adequada, destarte, para a discussão filosófica sobre metodologia.
A metodologia jurídica ou método da Ciência do Direito não se confunde, porém, com o método de trabalho e com a abordagem metodológica. Quanto ao primeiro aspecto, o trabalho, como é a regra geral quando se trata de pesquisa
jurídica, limita-se à análise da doutrina e da jurisprudência.
Quanto à abordagem metodológica, o enfoque é, como visto, dogmático.16
Seguindo a divisão proposta por Ralf Dreier e Robert Alexy, segundo os quais a dogmática jurídica poderia ser dividida em três dimensões – a analítica, a empírica e a normativa –, este é um trabalho essencialmente dogmático e seu enfoque é
analítico por excelência.17
15 Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 21 e ss.
16 Diferentemente da zetética, cujas questões são infinitas, a dogmática trabalha com questões finitas. Ela é regida pelo que se chama de princípio da proibição da negação isto é, princípio da não negação dos pontos de partida de séries argumentativas, ou princípio da inegabilidade dos pontos de partida. Sua preocupação primeira é a decidibilidade de conflitos, ou seja, a construção de instrumentos analíticos para solucionar os problemas colocados diante do intérprete. Por isso, sob o enfoque dogmático, a discussão jamais será infinita como no zetético, pois há a necessidade de solucionar a questão colocada diante do intérprete. A ciência jurídica dogmática atua, assim, como ferramenta para decidibilidade de conflitos, ressaltando seu caráter de tecnologia (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução..., p. 58-67).
17 AFONSO DA SILVA, Virgílio. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das
Na dimensão analítica, aquilo de que se trata é da consideração
sistemático-conceitual do direito válido, o que se dá por meio da análise dos conceitos básicos e mais elementares envolvidos no objeto da pesquisa, da investigação a respeito das relações existentes entre os conceitos trabalhados e do exame das formas de
fundamentação jurídica.
Entretanto, além da dimensão analítica, também as outras duas – empírica e
normativa – são fundamentais para a consecução deste trabalho.
Quanto à dimensão empírica da dogmática jurídica, o que nos interessa é o aspecto relacionado ao conhecimento do direito positivamente válido, não somente
no sentido de mera descrição do direito legislado, mas também da descrição e prognóstico da prática judicial, isto é, do direito judicial, dimensão que se concretiza
no exame da aplicação do direito pelos órgãos jurisdicionais, o que será feito, particularmente, na análise de casos concretos.
Por fim, na dimensão normativa da dogmática jurídica se trata da orientação e
crítica da práxis jurídica, especialmente da práxis jurisprudencial, sendo constitutiva a questão de saber qual é, no caso concreto e sobre a base do direito positivo
válido, a decisão correta, sentido em que essa dimensão é, em muitos casos, a própria expressão do conceito de trabalho acadêmico: fornecer uma resposta adequada ao problema analisado.
Não se resume o trabalho a isso, contudo. Com efeito, não tem ele por escopo dar resposta a um caso concreto específico, e, sim, desenvolver um modelo
modelo que possa servir de instrumento para lidar com casos de responsabilidade
civil do Estado por omissão.
Assim, se a ciência do direito tem de cumprir racionalmente sua tarefa prática de responder o que é devido nos casos reais ou imaginados, tem então que vincular
racionalmente as três dimensões da dogmática jurídica como condição necessária da racionalidade da ciência do direito como disciplina prática.
Em suma, pretende-se o cotejo das três dimensões da dogmática na consecução deste projeto: a analítica para desenvolver o modelo teórico, a empírica para conhecer a realidade da jurisprudência atual envolvendo o tema colocado neste
trabalho e a normativa para indicar o caminho que se entende ideal na aplicação dos conceitos sobre ele.
3. Corte epistemológico e objeto de estudo
Corolário do rigor de método que pretende se imprimir nesta dissertação,
cumpre fixar o objeto a ser estudado, realizando um corte epistemológico18 em
matérias afins ao tema que, por exigência metódica, não serão ora tratadas.
Consoante mencionado inicialmente, o objeto de estudo será a imputação de danos na omissão estatal, particularmente o dissenso doutrinário – refletido em
decisões judiciais –, que debate o elemento subjetivo dessa responsabilidade, ou seja, se ela é objetiva ou subjetiva. Foi referido no início que o tratamento
dogmático em geral dado à questão é insuficiente para solucionar os casos
concretos.
Não se pode olvidar, contudo, o posicionamento de quem entende que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público não é sempre objetiva,
independentemente da natureza da conduta (comissiva ou omissiva). Em outras palavras, além da divergência doutrinária da espécie de responsabilidade civil
(subjetiva ou objetiva) do Estado, existente quando a conduta é omissiva, há doutrina, a despeito do artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal, que defende a responsabilidade civil subjetiva das pessoas jurídicas de direito público em outras
hipóteses, além daquela já mencionada da conduta omissiva.
Sérgio Severo19 aborda muito bem o tema. O seguinte trecho de sua obra
introduz seu pensamento sobre o tema:
Muitas vezes repetida, uma das “verdades” mais falsas do direito brasileiro é a erradicação da culpa na responsabilidade pública, derivada de uma exegese que não corresponde ao sentido do § 6.º do art. 37 da CF, tampouco considera a absoluta impossibilidade de o risco solucionar determinadas situações de fato.
[...].
A responsabilidade objetiva do Estado, sublimando de forma absoluta a noção de funcionamento anormal (faute du service) no direito brasileiro, se fosse uma asserção verdadeira, seria pioneira no plano do direito comparado. Nem a França, em homenagem a Boris Starck, ousou tanto. Não é assim na Itália. Não é assim na Alemanha. Não é assim em Portugal. Não é assim na Inglaterra. Não é assim na Argentina.20
No que tange ao direito português, citado no trecho anterior, a Lei 67/2007
regulamentou a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, prevendo dois regimes gerais de responsabilidade: (i) por fato ilícito, que será caracterizado em três hipóteses: quando houver culpa leve do agente público,
quando houver funcionamento anormal do serviço, a faute du service (nesses dois casos, responsabilidade exclusiva do Estado) e, por último, quando houver culpa
grave ou dolo (caso em que a responsabilidade é solidária do Estado com o agente público); (ii) pelo risco, próprio de atividades desempenhadas pelo Estado que sejam essencialmente perigosas, quando a responsabilidade será objetiva, exonerável
somente quando houver caso fortuito ou de força maior.21 Em Portugal, destarte,
resta claro que a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público não é
objetiva em todos os casos.
De acordo com Sérgio Severo, o sistema de responsabilidade civil do Estado não é unidimensional, ou seja, somente objetivo, em interpretação fria do texto
constitucional. Assim, a culpa teria papel na responsabilidade civil do Estado em duas hipóteses: nos casos de funcionamento anormal do serviço público (faute du
service) e quando a ação for de caráter nitidamente privado, por força do princípio da isonomia.
No primeiro caso, só haveria responsabilidade estatal se comprovado
funcionamento anormal do serviço público. Não seria a culpa própria do direito civil, lastreada em elementos volitivos do agente, mas sim a culpa anônima, baseada em
num standard calcado na noção de que a ação administrativa deve dar-se de acordo
21 Cf. RANGEL DE MESQUITA, Maria José. O regime da responsabilidade civil extracontratual do
com um padrão adequado de funcionamento. Como dito no item 1 desta Introdução,
a teoria da faute du service é o ponto de partida dos defensores da responsabilidade subjetiva do Estado quando se trata de conduta omissiva, embora a responsabilidade por omissão não abarque toda a fenomenologia da faute du
service. Será, pois, abordada neste trabalho quando relacionar-se com a responsabilidade civil do Estado por omissão.
Nesse segundo aspecto levantado pelo autor, quando a atividade desempenhada pelo Estado for equivalente a que desenvolveria um particular, o fator de atribuição não seria objetivo, mas sim subjetivo. Interessantes questões são
por ele elaboradas para ilustrar tal assertiva:
a) Em um acidente de trânsito, o fato de o Estado ser proprietário de um dos
veículos envolvidos no sinistro gerará tratamento mais benéfico ao particular, tratamento esse que não ocorreria se o outro envolvido também ostentasse tal condição?
b) Como aceitar que dois pacientes, sujeitos à mesma intervenção cirúrgica em que foram empregados a técnica adequada e meios suficientes, possam receber
tratamento jurídico distinto caso o hospital seja público ou particular?22
Os exemplos parecem lógicos. Eventual cirurgia cardíaca feita em hospital público que ensejasse óbito do paciente, mesmo que realizada sem qualquer erro
médico, deveria ensejar responsabilidade civil estatal, pelo disposto no artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal? Não teria que ser avaliada, in casu, a culpa do agente
público, de modo a tornar tal responsabilidade subjetiva? Ou o Estado deve pagar
indenização a todos aqueles que morrem diariamente no Sistema Único de Saúde, independentemente de mau funcionamento do serviço?
Essa defesa da necessidade de aferição de culpa, quando se tratar de conduta
estatal equiparável ao particular, ao certo, merece aprofundamento e estudo. Não será, todavia, o foco desta dissertação. Realiza-se, assim, um corte epistemológico: parte-se
do pressuposto – epistemológico, repita-se – de que a responsabilidade dos entes estatais é objetiva, de modo a centrar seu objeto apenas na famosa discussão doutrinária: quando a conduta é omissiva, tal responsabilidade torna-se subjetiva?
4. Plano de trabalho
Estabelecidos o objeto (a responsabilidade civil extracontratual dos entes estatais é subjetiva quando se trata de conduta omissiva?), o enfoque metodológico
(dogmático, em suas três perspectivas) e realizado o corte epistemológico, de modo a pressupor que a responsabilidade do Estado é sempre objetiva em condutas comissivas, cabe indicar qual plano de trabalho que será desenvolvido.
A quase totalidade dos trabalhos envolvendo esse tema é feita na cadeira de direito administrativo. A apresentação é sempre muito parecida, passando por uma
introdução histórica da responsabilidade civil estatal, tanto alhures como no Brasil, para depois se expor sumariamente as duas correntes, filiando-se a uma delas. Temas vitais para a adequada compreensão do tema, como a conduta omissiva, a culpa, a ilicitude e
Assim, a pretensão desta dissertação é dar um enfoque eminentemente de
direito civil ao problema da omissão estatal, a partir dos conceitos de conduta, culpa e nexo de causalidade, que deverão dialogar com construções próprias do direito administrativo, como a faute du service. Afinal, o sistema de responsabilidade civil é
um só, não havendo razão para atribuir tratamento dúplice ao problema dos danos por omissão estatal.23
Na primeira metade do trabalho, será feito um estudo de teoria geral da responsabilidade civil. Serão abordados a conduta, o nexo de causalidade e a culpa. No que tange à primeira, já que o tema desenvolvido é a responsabilidade por
omissão, cumpre analisar se a omissão pode ser equiparada à ação como modalidade de conduta e, em caso afirmativo, quais critérios tornam a omissão
civilmente relevante. No que se refere ao assim chamado nexo causal, que na conduta omissiva na verdade é um juízo de imputação, conforme será visto, é importante que se entenda como uma omissão, um não fazer, pode ser vinculada a
determinado resultado, de modo a ensejar a responsabilidade civil de alguém que não agiu quando deveria ter agido.
Por fim, no tocante à culpa, uma vez que os partidários da corrente subjetivista afirmam ser necessária sua verificação para que haja responsabilidade
civil, ainda que sob a forma da culpa anônima (faute du service), é imperioso saber o
que se entende por culpa dentro da tradição da dogmática de direito civil, de modo que se verifique se há mesmo culpa quando a responsabilidade é imputada ao Estado a título de omissão.
Na segunda metade desta dissertação, será detalhada a disputa existente entre as correntes, com os argumentos de parte a parte. Será avaliada, ainda, a tese
da culpa anônima, cotejando-a com o conceito corrente de culpa para o direito civil, com escopo de analisar a compatibilidade entre as figuras. Revistos, assim, todos os pontos que circundam a matéria, será avaliado se o enfoque atualmente corrente na
dogmática acerca da responsabilidade civil do Estado por omissão, qual seja, compartimentado no elemento subjetivo da responsabilidade civil (é necessária a
verificação de culpa?), é suficiente, e, em caso negativo, como deveria ser considerada a questão pelo operador do direito.
Perceba-se que será dispensada a abordagem histórica, que ganhará mera
referência no início do segundo capítulo. E tal dispensa não é à toa, pois não se vê utilidade em passar páginas e mais páginas tratando da história de determinado
instituto se tais informações não serão úteis para o deslinde do tema.24 O foco é
dogmático, é contribuir para a formulação de instrumentos técnicos visando à decidibilidade dos conflitos.
24 Luciano Oliveira escreveu interessantíssimo texto criticando, de maneira contundente, alguns vícios da pesquisa jurídica no Brasil, e o maior deles é a realização de escorços históricos que nada contribuem para a solução do problema colocado no trabalho, e o maior exemplo desse mau hábito é a constante menção ao código de Hamurabi, não importa qual seja o tema em discussão, como direito do trabalho, recuperação judicial ou contratos. Cf. Não fale do Código de Hamurabi.
Disponível em:
CAPÍTULO 1
OMISSÃO CIVILMENTE RELEVANTE, IMPUTAÇÃO
DE DANOS E CULPA
1.1 Omissão relevante para efeito de responsabilidade civil
1.1.1 Introdução
Convencionou-se dizer, no Brasil, que os elementos ou pressupostos da responsabilidade civil são a conduta, o dano, o nexo de causalidade e a culpa em
sentido amplo. Os três primeiros são pressupostos objetivos, ao passo que a culpa, por se referir ao agente, é um pressuposto subjetivo. Caso se faça necessária a
presença de todos esses elementos para a configuração da responsabilidade, será esta subjetiva; prescindido-se do elemento subjetivo (culpa), a responsabilidade é objetiva.25
Tradicionalmente, ensina a doutrina que a conduta,26 como elemento objetivo
da responsabilidade civil, pode assumir duas formas, quais sejam ação e omissão. Conduta é, portanto, “o comportamento humano voluntário que se exterioriza através
de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas”.27 A conduta
comissiva é de fácil apreensão, uma vez que há um comportamento positivo, ativo, que desencadeia determinado fenômeno causal. Jogar uma pedra em um rio é uma
ação que desencadeia o fenômeno de formar ondas concêntricas em seu leito; chutar uma bola é ação que desencadeia o fenômeno de movê-la do lugar, e assim por diante.
Quando se está diante da omissão, o panorama, todavia, se altera radicalmente, tornando muito mais difícil a compreensão por parte do observador,
pois na omissão não há alteração da realidade perceptível pela observação, à medida que a conduta é negativa, é um não fazer.
Diante dessa característica de abstenção, de vazio, de “nada”, própria da
omissão, emerge a questão de como seria possível reuni-la com a ação na rubrica de conduta humana, para efeito de responsabilidade civil. Em outros termos:
considerando-se que a omissão não tem existência no plano natural, de que maneira enquadrá-la como conduta humana? Caso a resposta seja afirmativa, sob quais
26 Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho prefere o termo comportamento ao conduta. De acordo com o autor português, comportamento é termo mais abrangente que conduta, pois inclui a realidade complexa envolvendo a conduta (ativa ou omissiva) e seu evento (resultado), que, para ele, não podem ser separadas. O termo conduta, assim, é reservado somente para designação de atividade corporal, em oposição ao resultado (Omissão e dever de agir em direito civil..., p. 38-39). Para efeito deste trabalho será utilizado o termo conduta, mais comum na dogmática brasileira, e preciso para designar tanto a ação como a omissão humana, no contexto da responsabilidade civil.
critérios? As respostas a essas perguntas serão desenvolvidas nos próximos
tópicos.
Antes, todavia, vale ressaltar que a abordagem da omissão é muito aprofundada na dogmática do direito penal, mais até que na dogmática civilista,
constatação também feita pela dogmática lusitana.28 É de extrema valia, assim,
passar os olhos sobre a matéria à luz da dogmática do direito penal.
1.1.2 A omissão no direito penal
O sistema clássico de direito penal, tributado, sobretudo, a Liszt, Von Beling e Radbruch, apreciava a conduta de uma maneira meramente mecanicista ou naturalista. Ação era o movimento corporal causador de alguma alteração
perceptível no mundo fenomênico. Tal conceito, por óbvio, não permite o enquadramento da omissão como conduta humana, à medida que esta,
naturalisticamente falando, é um não fazer, um “nada”. A vetusta tese revelou-se artificial e inútil, conduzindo a conclusões bizarras, por não cobrir todas as formas de
comportamento humano que interessam ao direito.29
A dogmática de direito penal, assim, evoluiu no sentido de afastar a concepção da omissão como uma realidade em si mesma, tomando por fundamento
da omissão a ação esperada que o omitente deixou de praticar. A omissão não
28 “É no campo do direito penal (onde significativamente a acção apresenta a sua força patológica mais intensa) que a teoria da acção tem sido alvo de tratamento mais aprofundado. Será, pois, por aí que iremos começar a construção do nosso conceito de comportamento humano em Direito Civil, conceito que procuraremos que seja suficientemente abrangente por forma a abarcar todos os comportamentos ilícitos como os lícitos” (CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de.
seria, portanto, mera abstenção, mas sim o juízo que se forma desse não fazer, a
partir da ação esperada.
Antes do tipo, isto é, em nível da conduta, não há omissões, pois todas são ações. E assim é porque “omitir” não é um puro “não fazer”: “omitir” é apenas “não fazer” o que se deve fazer, e este dever não poderá ser conhecido enquanto não se chega à norma, ou seja, enquanto não se chega à tipicidade.30
O ângulo de análise não é meramente natural, mas normativo, à medida que
se trata de uma ação esperada pelo fato de ser normativamente devida.31 A omissão
não se caracterizaria, assim, por um aspecto naturalístico, causal, mas sim por um aspecto normativo, consistente em um dever de prática de determinado ato que não
foi praticado, derivado de imposição normativa, seja legal, seja negocial, ou, ainda, derivada de situação anterior de risco criado pelo próprio omitente. Quando o omitente se coloca nessa posição, diz a doutrina que está em posição de garante, à
medida que deve garantir a não ocorrência do resultado.
Nelson Hungria demonstra que a omissão pode ser considerada causa
somente do ponto de vista lógico, mas não sob o aspecto naturalístico, pois a omissão é causa do resultado por não impedir seu advento, e o dever jurídico de impedi-lo pode decorrer de um mandamento expresso da ordem jurídica, de uma
30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6. ed. São Paulo: RT, 2005. v. 1, p. 462.
relação contratual ou de uma situação de perigo em que o omitente tenha se
colocado previamente.32 No mesmo sentido ensinam Magalhães Noronha33 e Cezar
Roberto Bitencourt.34
Portanto, a omissão, do ponto de vista naturalístico, é um nada, de onde nada
advém. Sua relevância jurídica, destarte, aparecerá a partir da expectativa de uma conduta não realizada, a qual, caso tivesse ocorrido, interviria no desdobramento
causal, obstando o resultado.
Nosso Código Penal prevê as hipóteses da omissão penalmente relevante. Basicamente, são as situações em que o agente está na situação de garante, seja
pelo risco por ele mesmo criado, seja pelo dever legal ou contratual de evitar o
resultado (artigo 13, § 2.º, do Código Penal).35 Esse dispositivo do Código Penal é
próprio dos crimes comissivos por omissão, isto é, aqueles que são praticados por comissão, mas que, eventualmente, podem ser praticados por omissão, desde que preenchidos os requisitos desse artigo em comento. Não se podem confundi-los com
os crimes omissivos próprios, isto é, crimes de mera conduta praticados apenas na
32 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 11 ao 27. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, v. 1, t. II, p. 53-54. Note-se que essa obra também foi escrita antes da reforma do Código Penal de 1984, de modo que ainda não existia o artigo 13, § 2.º, do referido diploma, que acaba por abraçar essa sugestão de Nelson Hungria, arrolando justamente as fontes por ele apontadas como geradoras do dever de impedir o resultado.
33 Cf. MAGALHÃES NORONHA. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 117 e ss.
34 “Na omissão não existe causalidade, considerada sob o aspecto naturalístico. Como já afirmava Sauer, sob o ponto de vista científico, natural e lógico, ‘do nada não pode vir nada’. No entanto, o próprio Sauer admitia a causalidade na omissão, concluindo que ‘a omissão é causal quando a ação esperada (sociologicamente) provavelmente teria evitado o resultado. Na verdade, existe tão somente um vínculo jurídico, diante da equiparação entre omissão e ação. E toda equiparação feita pelo Direito, quando não se fundamenta na realidade, nada mais é do que uma ficção jurídica” (BITENCOURT,Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 187).
modalidade omissiva (por exemplo, omissão de socorro), em que não há resultado
naturalístico e, portanto, não se cogita sobre a pesquisa do nexo causal.36
Analisando-se a dogmática penal, percebe-se que a omissão torna-se relevante quando existe um dever jurídico de impedir o resultado. A omissão, naturalisticamente,
não produz resultado, e as tentativas de comprovação em sentido contrário, pela teoria mecanicista ou naturalista, há muito são rechaçadas. O nexo causal na conduta
omissiva, destarte, é meramente normativo, a partir de um dever de interrupção do
processo causal naturalístico derivado de uma norma jurídica, de um negócio jurídico ou de um risco criado (artigo 13, 2.º, do Código Penal).
1.1.3 A omissão como modalidade da conduta humana
Feita a incursão sobre o direito penal, deve-se dar adequada resposta às indagações colocadas na introdução deste item: como enquadrar a omissão como
conduta, e quais os critérios que tornariam determinado comportamento omissivo relevante para efeito de responsabilidade civil.
Considera-se, em opinião ratificada por José Virgílio Vita Neto,37 que o tema
da conduta humana não é adequadamente abordado pela dogmática de direito civil.
36 “A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação quando se colocar, por força de um dever jurídico (art. 13, § 2.º), na posição de garantidor da não ocorrência do resultado. Não se trata, pois, como salienta Wessels, de um ‘não fazer’ passivo, mas da ‘não execução de uma certa atividade juridicamente exigida’. Nessa linha, que é a mesma que temos sustentado, que o Supremo Tribunal Federal, acolhendo o parecer que emitimos, decidiu: ‘A causalidade, nos crimes omissivos por omissão, não é fática, mas jurídica, consistente em não haver atuado o omitente, como devia e podia, para evitar o resultado’ (RTJ 116:177)” (ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 117-118).
A responsabilidade civil historicamente teve um cunho moralista, de modo que os
estudos da dogmática sempre deitaram os olhos sobre a vontade, sobre o aspecto subjetivo da conduta, negligenciando-se, assim, a conduta como dado objetivo. Em Portugal, Menezes de Cordeiro e Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho são da
mesma opinião.38 Na Itália, Giuseppe Cricenti ratifica tal conclusão.39 Em geral, é
feita menção sobre a conduta somente na seara da responsabilidade civil, quando
deveria ser objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, à medida que é pressuposto da geração de efeitos em todas as esferas do direito privado.
Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho indaga se é possível um conceito
pré-jurídico de omissão, ou seja, se ela existe somente como realidade jurídico-normativa, ou se existe independentemente dela, como modalidade de conduta
humana.40 Para que se chegue à resposta, antes é mister analisar algumas teorias
feitas acerca do tema.
A teoria naturalista ou mecanicista já foi explanada na seara do direito penal,
e as mesmas críticas ali realizadas valem aqui. Trata-se de concepção ultrapassada e de pouca operabilidade jurídica.
voluntarismo dominante não deixa praticamente qualquer espaço para o desenvolvimento dogmático do conceito de conduta” (VITA NETO,José Virgílio. A atribuição de responsabilidade contratual. 2007. Tese (Doutorado em Direito) – FADUSP, São Paulo, p. 94).
38 CARVALHO, Pedro Pitta e Cunha Nunes de. Omissão e dever de agir..., p. 39.
39 “L’omissione constituisce um tema critico. Raramente le dottrine giuridiche se ne occupano, preferendo indagare la condotta umana sotto il suo aspetto attivo, in ciò manifestando una sorta di condizionamento filosofico: soltanto l’azione, e non l’omissione, è sempre stata considerata una categoria dell’essere, una sua modalità accidentale, una circostanza che caratterizza l’uomo” (A omissão constitui um tema crítico. Raramente a doutrina jurídica se ocupa dele, preferindo indagar sobre a conduta humana somente em seu aspecto ativo, com isso manifestando uma espécie de condicionamento filosófico: somente a ação, e não a omissão, foi sempre considerada uma categoria do ser, uma modalidade acidental dele, uma circunstância que caracteriza o homem – tradução nossa) (CRICENTI, Giuseppe. Il problema della colpa omissiva. Padova: Cedam, 2002. p. 55).
A teoria do aliud facere defende a ideia de que o ser humano nunca está sem
fazer nada. Se o homem dorme, está dormindo; se está deitado sobre a relva vendo o céu, está vendo o céu. Assim, não existiria jamais omissão propriamente, mas uma
ação diferente daquela que não foi praticada.41
Uma crítica central pode ser feita à teoria do aliud facere ou aliud agere: a
confusão da causalidade jurídica com uma causalidade natural. Embora,
naturalisticamente, a omissão não possa mesmo produzir o resultado, juridicamente ela o pode. A atividade desempenhada, no caso, embora exista naturalisticamente, é juridicamente irrelevante, enquanto aquela não realizada, em que pese não existir no
mundo fenomênico, será considerada para efeito de verificação de responsabilidade. O tema ainda será aprofundado no item sobre nexo causal e imputação de danos.
Para a teoria normativista, a omissão só existe como realidade jurídica, uma vez que se configura pela violação de norma legal que impõe dever de agir, de modo a interromper desdobramento causal em curso. Quando se perscrutou sobre a
omissão no direito penal, viu-se que se considera a omissão como uma modalidade de conduta humana, e que sua análise deve ser feita visando a determinado ato não
realizado. Ela não é, portanto, um dado em si, devendo ser cotejada com uma conduta comissiva que restou não praticada. As lições da dogmática do direito penal demonstram esse fenômeno demonstrando que na omissão há uma expectativa
normativamente gerada de prática de uma conduta que teria evitado o resultado
(artigo 13, § 2.º, do Código Penal).42
Giuseppe Cricenti explana bem a teoria normativista:
Segundo a teoria normativista, como é notório, a omissão é perceptível somente em referência a uma norma que impõe agir de certo modo ou de conseguir determinado resultado, e assim consiste no descumprimento de algo devido, no sentido genérico do termo, na recusa de um comportamento que determinada regra impõe executar (tradução nossa).43
A adoção da tese puramente normativista implica importante consequência
dogmática. Afinal, se a omissão existe somente quando se viola dever de agir, normativamente imposto, ela acaba por se confundir com a ilicitude. Assim, em vez
de a omissão figurar ao lado da ação como modalidade de conduta, ela se desloca para a esfera da ilicitude. Essa importante consequência, a qual muitas vezes não é notada, é bem explicitada por Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho:
Se é certo que a omissão enquanto pressuposto da responsabilidade civil (e também da responsabilidade criminal) é um dado jurídico, (pelo menos na generalidade dos ordenamentos jurídicos), discute-se se consiste ou não numa forma de comportamento ao lado da acção, se é uma realidade pré-jurídica ou se tem existência meramente normativa, e, portanto, se deve ser referida a propósito do pressuposto “facto voluntário” ou “comportamento humano”, ou se deve ser estudada apenas em sede de ilicitude.44
42 Giuseppe Cricenti assevera a predominância da teoria normativista também entre os penalistas italianos, como Grispigni, Caraccioli e Cadoppi (Il problema..., p. 57).
43 “Secondola teoria normativa, como è noto, l’omissione è percepibile soltanto in riferimento ad uma norma que impone di agire in un certo modo o di consiguire un certo resultato, e dunque consiste nel non compiere qual cosa di dovuto, nel senso genérico del termine, nel rifiuto di un comportamento che determinate regole impongono di compiere” (Idem, ibidem,p. 57).
Entende o autor português que a omissão não significa “não fazer nada”, mas
sim “não fazer algo”. O conceito de omissão, necessariamente, implica a representação de uma dada ação que acabou por ser omitida. Tal ação, todavia, há de ser “algo que era esperado”, concluindo-se assim que a omissão é mais do que a
simples inércia ou inatividade, pois esse elemento é acrescido da esperança de uma determinada ação que ao final foi omitida. Como ensina José de Oliveira Ascensão:
A omissão não é o nada, nem é não fazer nada: que o agente se mexa ou não, é irrelevante. Há omissão quando o agente não interfere na realidade exterior para evitar um evento, quando o podia fazer: isso estava na dependência de sua vontade.45
Ilustrando a assertiva, Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho fornece o exemplo de um jantar. Se A não foi a um jantar na casa de B, só faz sentido dizer que ele se omitiu caso houvesse algum motivo de supor que ele iria ao evento. Não
há sentido em dizer que A se omitiu de ir ao jantar se não foi convidado por B.46
Então, é possível dizer que há um conceito pré-jurídico de omissão,
consistente na abstenção de determinada conduta que, pelo contexto, era socialmente esperada. Esse requisito da esperança acaba por realizar uma função limitativa, pois a omissão restaria caracterizada somente caso a conduta não
realizada fosse esperada, exigível, pelo contexto social. Excluem-se, assim, todos os demais infinitos comportamentos humanos que poderiam ser adotados.
Este conceito pré-jurídico de omissão contém um elemento fundamental para a relevância jurídica de qualquer comportamento: a relevância social, que resulta do facto de a acção ser socialmente
45 ASCENSÃO,José de Oliveira. Direito civil: teoria geral.Ações e fatos jurídicos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, p. 23.
esperada. Conforme observávamos, os comportamentos jurídicos são, antes de mais, comportamentos de relevância social. A relevância social da omissão é, pois, o primeiro elemento da relevância jurídica da omissão.
[...]
Trata-se, pois, de um critério fundamentalmente objectivo, embora aberto. Mas não arbitrário: é o costume, são os usos e as normas de cortesia, enfim os valores sociais que indicam se era ou não de esperar a ação.47
Assim, é sob esse conceito pré-jurídico de omissão, como modalidade de
conduta ao lado de ação, que o Direito construirá seu conceito jurídico. Juridicamente, a omissão, para efeito da responsabilidade civil, pode ser conceituada como a abstenção de uma conduta socialmente esperada, em razão de
imposição de dever de agir pelo ordenamento jurídico.
A teoria normativista, destarte, acerta ao relacionar a omissão com o dever de
agir, mas exagera ao tentar compartimentar toda a fenomenologia da omissão dentro do Direito, pois, como visto, é possível vislumbrar um conceito pré-jurídico de omissão, a partir da expectativa social do desempenho de determinado ato.
Tendo em vista que a omissão, para ser civilmente relevante, deve implicar a violação de um dever de agir imposto pelo ordenamento jurídico, impende esclarecer como se relacionam a omissão e a ilicitude.
A ilicitude pode ser compreendida como a contrariedade à ordem jurídica, que se revela pela prática de conduta contrária à lei sem o enquadramento em preceito
permissivo. Nesse sentido, ainda que a conduta, à primeira vista, seja contrária ao
ordenamento jurídico integral, a ilicitude será neutralizada quando a ordem jurídica
permitir, de maneira expressa, a prática do ato (no Código Civil, artigo 188;48 no
Código Penal, artigo 23). Nesse diapasão, ensinam Zaffaroni e Pierangeli que a “antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não
só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa
e de preceitos permissivos”.49
Ilicitude, no aspecto material, “se constitui da lesão produzida pelo
comportamento humano que fere o interesse jurídico protegido”.50 No aspecto
formal, significa a violação de norma jurídica.51 O aspecto formal tem mais interesse
no direito penal, em que existem crimes de mera conduta e crimes formais, que se consumam independentemente de qualquer resultado. Na responsabilidade civil, em
que não há ilícito sem dano, e também pelo fato de não trabalhar com a tipicidade fechada própria do direito penal, a perspectiva formal da ilicitude perde
importância.52 Ensina Roberto Senise Lisboa:
Como a responsabilidade civil funda-se na concepção de tipologias abertas, a antijuridicidade exerce uma função indiciária do tipo, preponderando no direito civil a chamada antijuridicidade material, ou seja, deixa-se de lado a noção segundo a qual somente haveria ilícito na ilegalidade. Superou-se, como observa Carlos Roberto Gonçalves, a ideia de numerus clausus dos direitos subjetivos
48 “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”
49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 488. 50 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual..., p. 237.
51 “Ato ilícito, na definição clássica de Planiol, nada mais é do que a violação de um dever preexistente, que se impõe ao agente. É a transgressão de um dever jurídico” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Ato ilícito. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Org.). Teoria geral do direito civil. São Paulo: RT, 2008. p. 722).
tutelados, característica da antijuridicidade formal, adotando-se a concepção do dever de reparação de todo e qualquer dano ressarcível.53
Para alguns autores, o ato ilícito é somente aquele praticado com culpa,54 de
modo que ele exige mais que a violação da norma, mas também a censurabilidade, a ligação da conduta subjetivamente ao sujeito (culpabilidade). Os atos violadores de interesses alheios sem culpa seriam meramente antijurídicos, mas não ilícitos.
Fernando Noronha55 utiliza a nomenclatura de ilicitude objetiva para os atos sem
culpa e ilicitude subjetiva para aqueles com culpa. Os atos que ensejam
responsabilidade objetiva não seriam, pois, ilícitos, mas meramente antijurídicos. Sérgio Cavalieri Filho afirma que o conceito estrito de ilicitude, abrangendo somente os atos culposos, tornou-se insuficiente para o direito civil, de modo que atualmente
trabalha-se com um conceito mais amplo de ilicitude, que envolve também a
responsabilidade objetiva.56 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho
entendem que, com a vigência do Código Civil de 2002, o ato, para ser ilícito, não
precisa ser culposo.57
Apesar das divergências de nomenclatura, não há substancial diferença no
tratamento da ilicitude na omissão, se comparada à ação. Alguns argumentos podem ser arrolados para referendar a assertiva.
53 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 261.
54 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 488. 55 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.p. 382-392. 56 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., p. 7-13.
Em primeiro lugar, no aspecto formal da ilicitude, se é verdade que a omissão
só é ilícita quando a ação é imposta, também é verdade que a ação também somente é ilícita quando é proibida.
No aspecto material da ilicitude, a única diferença refere-se ao âmbito dela,
que na omissão é mais apertado se comparado à ação. Para essa ser ilícita, deve haver violação de direitos alheios sem causa de justificação. Já para a omissão ser
ilícita, além desses dois requisitos, deve haver a violação ao dever de agir imposto pela norma.58
Giuseppe Cricenti, em que pese não faça referência à ilicitude, também
percebe essa distinção, dizendo que o sistema italiano de responsabilidade civil é
atípico para as condutas comissivas, baseado no neminem laedere,59 e típico para a
responsabilidade por omissão, pois deve haver violação de um dever específico de agir. Por isso, para o autor italiano, o neminem laedere é norma primária na conduta
ativa, e norma meramente secundária na omissiva.60
58 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso..., p. 136.
59 A famosa máxima latina do Neminem laedere, isto é, “não lesar a outrem”, aparece no Digesto, uma das partes do Corpus Juris Civilis de Justiniano, por obra de Ulpiano, no ano de 526 d.C. Sobre a origem histórica do princípio v. DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e extensão do princípio do neminem laedere. In: ––––––; NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.)
Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 483 e ss.
Do exposto até o momento, pode-se dizer que existe um conceito pré-jurídico
de omissão, consistente em uma abstenção qualificada por uma expectativa, socialmente gerada, da prática de determinado ato. Para a responsabilidade civil, a omissão será relevante quando houver, pelo ordenamento, a imposição de
determinado dever de agir que restou não observado pelo omitente. Viu-se, ainda, que a ilicitude presente no ilícito omissivo não difere, substancialmente, daquela dos
ilícitos comissivos.
Vale lembrar que não há dever de indenizar sem dano. Assim, só haverá ilícito omissivo se sobrevier um prejuízo, seja material, seja moral, para a vítima. A
omissão, destarte, além de conduta não realizada, tem de ter um parâmetro
adicional de análise, qual seja o evento danoso.61
Para que seja feita essa aproximação desses elementos, ou seja, a abstenção, a ação devida e o resultado, a dogmática se vale da noção do nexo causal, tema que será objeto de estudo em item posterior.
A responsabilidade por omissão gira em torno, assim, do dever de agir. Questão tormentosa é saber quais as fontes do dever jurídico de agir. Foi visto que o
Código Penal, no artigo 13, § 2.º, reconhece a lei, o negócio jurídico ou o risco anteriormente criado como fontes desse dever. Desse tema se ocupará o próximo item.
1.1.4 O problema das fontes do dever jurídico de agir
1.1.4.1 Contribuições do direito estrangeiro
A legislação brasileira não contribui com o jurista no que tange à
responsabilidade civil por omissão. Com efeito, nosso Código Civil, em seu artigo
186,62 aponta que a omissão pode ser causa de dano, mais nada. Não há qualquer
referência a dever jurídico de agir, bem como não há qualquer pista sobre quais as fontes que podem gerar ao omitente referido dever, apto a impedir desdobramento causal em curso.
Como se viu, o Código Penal tem artigo que prevê a relevância causal da omissão quando há dever legal, dever contratual ou quando há risco anterior
criado pelo próprio omitente. A doutrina civilista brasileira, em geral, limita-se a afirmar a relevância civil da omissão quando há dever de agir. Alguns autores chegam a apontar aquelas fontes prescritas pelo Código Penal. Vejam-se
Francisco Amaral,63 Sérgio Cavalieri Filho,64 Rui Stoco, Paulo Nader,65 Maria
62 “Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
63 “O comportamento do agente pode consistir também em omissão, que será causa jurídica do dano se houver dever de agir, de praticar o ato omitido, como, por exemplo, no caso do ascendente que deixa de alimentar o descendente pelo qual é responsável; ou o técnico que deixa de prestar auxílio a quem era obrigado” (AMARAL,Francisco. Direito civil: introdução.7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 553).
64 “A omissão, todavia, como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar, física ou materialmente, o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém. Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem um dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado, dever, esse, que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando o risco da ocorrência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo” (CAVALIERI FILHO, Sérgio.
Programa..., p. 24).
65 “Em síntese, somente haverá responsabilidade civil por ato omissivo se o agente tiver o dever jurídico de praticar uma conduta positiva, isto é, uma ação” (NADER,Paulo. Curso de direito civil: