• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III O culto aos mortos

3.1.1 A Festa de Qing Ming

A Festa de Qing Ming (清明节, qīngmíng jié) é uma importante festa tradicional da China47 e a única que tem o mesmo nome/data de um de 24 períodos solares (节气, jiéqì). Também conhecida como o “dia da limpeza dos túmulos”, serve para homenagear os mortos. A maioria das festas chinesas tem uma data baseada no calendário tradicional. No entanto, a Festa de Qing Ming é bastante especial em relação às outras, pois a sua data não tem um dia fixo, podendo ser celebrada entre 4 e 6 de abril de cada ano. Para compreender o porquê, impõe-se conhecer os 24 períodos solares do calendário chinês.

3.1.1.1 Divisões lunissolares

A China foi um país iminentemente agrícola, estando as atividades agrícolas intimamente relacionadas com o ritmo da natureza. As 24 divisões lunissolares são um conhecimento da civilização chinesa antiga, resultante da observação do movimento dos corpos celestes, das mudanças do tempo, do clima e da fenologia.

Como se pode observar na figura 23, as divisões solares referem-se aos termos climáticos que representam as mudanças de estação, de acordo com o calendário chinês e a situação da Terra na órbita solar. Os chineses antigos dividiram o movimento anual em volta do Sol em 24 segmentos, correspondendo cada um a determinada posição do astro depois de se mover 15°, e atribuíram um nome específico a cada período.

47 É uma das quatro festas tradicionais mais importantes, juntamente com a Festa da Primavera, a Festa de Duan Wu e a Festa

38

Figura 23: 24 períodos lunissolares48

Os períodos solares foram desenvolvidos ao longo da bacia do Rio Amarelo ( 黄 河 ,

huáng hé), popularizando-se mais tarde entre várias minorias étnicas de diferentes regiões da China. As 24 designações foram registadas pela primeira vez no livro Huainanzi (淮南子,

huaínán zǐ)49, durante a dinastia Han ocidental (202 a.C. – 8 d.C.). No ano 104 a.C, este sistema foi aperfeiçoado no calendário imperial Taichu, quando as 24 divisões foram definidas com base nas fases da lua e nos solstícios.

A UNESCO declarou as 24 divisões lunissolares como Património Cultural Imaterial da Humanidade a 30 de novembro de 2016. Fruto de uma sabedoria milenar orientadora da atividade agrícola, as divisões afetavam quase todos os aspetos da vida antiga. Para os camponeses, este conhecimento ainda hoje é um guia indispensável para o planeamento agrícola. Os 24 períodos lunissolares e respetiva descrição encontram-se no anexo documental50. A Festa de Qing Ming assinala-se no 15º dia após o Equinócio da Primavera. Em 2020, celebrou-se no dia 4 de abril.

48 http://www.weather.com.cn/hainan/zyqxxx/03/3167291.shtml, consultado a 1 de maio de 2020.

49 Conjunto de 21 capítulos que tratam de vários assuntos, escritos no século 2 a.C., na dinastia Han Ocidental, por iniciativa

de Liu An (179 – 122 aC.), tio do Imperador Wudi e rei de Huainan (atual província de Anhui), nos limites do antigo reino de Chu.

39

o erro, envergonhou-se e procurou homenageá-lo com um título, mas este humildemente Jie Zitui escondeu-se numa montanha próxima com a sua mãe. Como ninguém o conseguia encontrar, o duque ordenou que incendiassem a montanha e, três dias depois, encontraram os memorial e ordenou que os seus servos não usassem fogo, comendo apenas comidas frias. Deve-se dizer que a Festa da Comida Fria teve uma grande influência, nos períodos do Norte e

culto dos antepassados uma parte cada vez mais importante da vida das pessoas, a divisão acontecia um ou dois dias antes do período Qing Ming, pelo que ambas passaram a ser neste processo do desenvolvimento, incorporou os costumes de outro festival antigo chamado 3.1.1.2 Origem e Evolução

O nome "Qing Ming" surgiu há mais de 2500 anos na dinastia Zhou (1046 a.C. - 256 a.C.) e continua a ser usado.

No início do período das Primaveras e Outonos (770 - 221 a.C.), o Reino de Jin (晋, jìn) criou a Festa de Comida Fria (寒食节, hánshí jié) em honra de Jie Zitui (介子推, jiè zǐtuī).

Segundo a lenda, o príncipe Jin Wengong saiu do seu próprio reino para fugir dos conflitos, acompanhado por Jie Zitui que o protegia. Mais tarde, o príncipe voltou, tornou-se duque e decidiu homenagear os seus seguidores, esquecendo-se, todavia, de Jie Zitui. Quando percebeu declinou a oferta. O duque resolveu então visitá-lo, porém, ao ouvir a notícia da sua chegada,

dois corpos numa caverna, sob um salgueiro. Em respeito a Jie Zitui, o duque construiu um

do Sul da dinastia Wei e Jin (220 - 589).

A Festa de Qing Ming começou a ser observada na dinastia Tang (618 - 907), altura em que a sociedade feudal atingiu o seu auge. O país estava unificado, a ciência e a tecnologia registaram grandes progressos e a produção agrícola recuperou de séculos de guerra.

A dinastia Tang usou estrategicamente o confucionismo para governar o país. Sendo o

lunissolar de Qing Ming também passou a ser muito apreciada. A Festa da Comida Fria celebradas em conjunto. Desde então, a Festa de Qing Ming foi listada como feriado nacional e,

Shangsi (上巳, shàngsì).

O Festival Shangsi surgiu no fim do período das Primaveras e Outonos, depois das dinastias Wei e Jin, comemorado no dia 3 de março do calendário lunar. Neste dia, as pessoas participavam em cerimónias de sacrifício à beira do rio; tomavam banho no rio para afastar a má sorte; os jovens passeavam na natureza e fazia-se piqueniques.

Na dinastia Song (960-1279), a Festa de Qing Ming foi especialmente valorizada, num contexto de promoção do princípio confucionista de piedade filial. Gradualmente, absorveu os

40

costumes da Festa da Comida Fria e do Festival de Shangsi, substituindo esses dois eventos e transformando-se na primeira festa da primavera.

Uma das pinturas mais famosas da China, O Festival Qingming à Margem do Rio (清 明上河图, qīngmíng shànghé tú), descreve o cenário natural e a prosperidade do capital Bianjing (atual, Kaifeng) durante a dinastia Song do Norte. O pintor - Zhang Zeduan - retratou as pessoas no mercado da cidade fazendo negócios ou compras durante o período Qing Ming. A tela encerra ainda outro significado mais profundo de clareza e brilho (清明, qīngmíng) para simbolizar a paz do império, sendo que o rio (上河, shànghé) é um elogio à capital e à sua prosperidade.

A pintura é dividida em três partes: a paisagem primaveril dos subúrbios de Bianjing, o porto movimentado do rio Bian e o mercado do centro da cidade. A obra parece um documentário minucioso que apresenta os costumes e a vida das pessoas naquela época. A pintura horizontal tem 24,8 centímetros de altura e 528,7 centímetros de comprimento e contém mais de 800 figuras de características diferentes, cerca de 60 animais e mais de 40 tipos de transporte. A arquitetura das casas, pontes e torres apresenta características da dinastia contemporânea à tela.

Figura 24: Primavera na aldeia51

41

Figura 25: Ponte sobre o rio Bian52

Figura 26: Mercado no centro da cidade53

Tradições

Algumas tradições permaneceram até hoje, enquanto outras foram esquecidas. Todavia, o culto dos antepassados sempre foi central na Festa de Qing Ming. Normalmente, as pessoas visitam o cemitério para honrarem os antepassados e limparem os túmulos, prostrando-se depois diante deles em sinal de respeito, cuidado e saudades. Para desejar que os falecidos vivam bem no outro mundo, alguns chineses queimam réplicas de dinheiro ou de utensílios em papel, fazendo ainda oferendas de comida. Tendo em conta o perigo de incêndio, outros escolhem formas mais seguras para expressar saudade, oferecendo flores, por exemplo.

52 https://power-bd.com/b-XMzkwNzc2ODcyOA==.html, consultado a 10 de maio de 2020.

42

Figura 27: Dinheiro para os mortos54

O período de Qing Ming ocorre por ocasião do regresso da primavera, pelo que as pessoas costumam passear no campo e pendurar galhos de salgueiro, tradição que pode ter várias explicações.

Alguns académicos defendem que este costume surgiu em honra de Shen Nong (神农,

shén nóng), governante lendário e herói chinês que viveu há cerca de cinco mil anos. Shen Nong terá ensinado aos antigos chineses não só as suas práticas de agricultura, mas também o uso de medicamentos à base de plantas. Em alguns lugares, as pessoas colocam galhos de salgueiro sob os beirais para prever o clima. Há um ditado que diz: “Se o galho de salgueiro fica verde, vai chover; se fica seco, o céu ficará limpo.”

Devido à influência do budismo, um dos símbolos característicos associados ao Buda, Kuan Yin, (观音)55 é um galho de salgueiro, com o qual se asperge o néctar divino da vida, pelo que este também é usado para afastar os maus espíritos.

Há quem acredite que esse costume surgiu em honra de Jie Zitui, que foi queimado sob um grande salgueiro. No ano seguinte, quando o duque e outras pessoas voltaram ao local da sua morte, descobriram que o salgueiro renascera. O duque colocou uma coroa de salgueiro na cabeça para demonstrar as suas saudades. Desde então, pendurar ramos de salgueiro tornou- se num símbolo da festa.

54 http://www.t-chs.com/pche50019293/580583787143.html, consultado a 10 de maio de 2020.

55 Kuan Yin também é chamada de “Kuan Shih Yin Tzu Tsai” e significa “a soberana que se preocupa com os sons do mundo.”

43

Figura 28: Coroas de salgueiro56

A divisão lunissolar de Qing Ming coincide com um período chuvoso, daí o hábito de plantar árvores. Hoje em dia, esta festividade coincide com a "Festa da plantação de árvores". Outra tradição festiva é lançar papagaios de papel, que à noite se transformam em pequenas lanternas, parecendo estrelas. No passado, era costume de cortar a linha e deixar o papagaio de papel voar, prática que simbolizava a partida de doenças e azares. Outra tradição consiste nas raparigas andarem de baloiço ao ar livre, atividade que cultiva a coragem.

No dia de Qing Ming não se usava fogo para cozinhar, pelas razões já referidas. Hoje, cada região da China tem comida própria para a ocasião. É o caso do bolo verde ( 青 团 ,

qīngtuán) tradicional do sul, feito com uma mistura de farinha de arroz glutinoso e sumo de artemísia e recheado com pasta de feijão vermelho, e do Sazi (撒子, sāzi) que se come em Pequim, feito com farinha de trigo frita, ovos e sésamo.

Figura 29: Qingtuan57 Figura 30: Sazi58

56 http://www.zmdsjw.gov.cn/2018/0403/11330.html, consultado a 11 de maio de 2020.

57 https://www.sohu.com/a/305758262_814673, consultado a 11 de maio de 2020.

44

Outros países asiáticos também celebram a Festa de Qing Ming, nomeadamente o Vietname, a Coreia do Sul, a Malásia e Singapura. É uma ocasião para unir a família em comemoração aos antepassados e mostrar piedade filial, um dos valores mais importantes do confucionismo.

Documentos relacionados