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A FICCIONALIZAÇÃO DO REAL E A REALIZAÇÃO DO FICCIONAL

5. DA FICCIONALIZAÇÃO DO REAL À FÁBULA CONTEMPORÂNEA

5.1. A FICCIONALIZAÇÃO DO REAL E A REALIZAÇÃO DO FICCIONAL

Segundo Lyotard (1998), a formulação narrativa é um importante instrumento, próprio do humano, desenvolvido com o objetivo de fornecer um propósito crível a um grupo. Essa definição está atrelada ao que ele conceitua como “metanarrativas”, construções lexicais produzidas por instituições sociais para legitimar sua práxis e fornecer credibilidade. São exemplos de metanarrativas, discursos políticos que engajam indivíduos numa luta partidária, doutrinas canônicas que dão sustentação a organizações religiosas ou afirmações científicas produzidas para justificar o seu papel no desenvolvimento dos elos sociais. Lyotard afirma, entretanto, que com a pós-modernidade, iniciada a partir da II Guerra Mundial, teve início um novo processo: deu-se a falência na crença em uma única grande narrativa capaz de dar conta da realidade e, com isso, a multiplicidade de metanarrativas surgiu,

articulando-se num múltiplo jogo de linguagem.

A noção de metanarrativa decorre da necessidade de melhor compreender as novas produções e relações humanas e mapear uma realidade que se configurou, a partir da segunda metade do século XX, como entrelaçamento de multiplicidades nas quais se enovelam realidade e ficção.

A era da globalização, da tecnologia, do múltiplo parece ser também um período no qual um emaranhado de narrativas tecem a realidade, instaurando também a preponderância da ficção - termo compreendido aqui como criação narrativa de teor fabular que afeta o sentido da realidade.

A produção e o consumo de fábulas deve-se, segundo Larrosa, à “necessidade de preencher o vazio existencial num mundo administrado”. (LARROSA, 2003, p.42). Esse movimento capacita o homem a sair de uma posição de mero observador, impotente, diante dos fatos naturais e sociais que o cercam, para minimizar os desajustes entre si e o mundo, podendo reconfigurá-lo ao ressignificá-lo.

Assim, essa ressignificação permite que se construam histórias materializáveis e capazes de fornecer o propósito crível descrito por Lyotard, no campo religioso, político, econômico ou artístico.

A narrativa é própria ao humano também através da perspectiva do jogo, como sugere Huizinga (1996), ao entender o homem como ser eminentemente lúdico (homo ludens), afeito ao jogo, à constituição de relações de jogo, o qual considera como uma atividade anterior à cultura.

Percebe-se, portanto, que a narrativa e a ficcionalidade são instrumentos criados pelo homem para conhecer a si e ao mundo. Contudo, muitas vezes esses instrumentos são utilizados para condicionar percepções e adestrar atitudes de modo a beneficiar estruturas político-econômicas vigentes, o que torna necessário apurar o olhar e propor uma reflexão crítica. A realidade tornou-se um enigma, cuja ordenação precisa ser decifrada para não sermos devorados pelo vórtice de sua ficcionalidade.

Diante de olhares estupefatos, somos dia a dia orientados pelo ritmo frenético do sistema de vida sócio-econômico vigente. Seguimos, por vezes cambaleantes, porém, compassadamente, os ditames de uma cultura contemporânea que mescla padrões de entretenimento de massa a construções artísticas seculares, num

circuito econômico-cultural-estético que modela percepções e gostos e termina por constituir hábitos de recepção. Em tal contexto, opera-se uma reconfiguração da compreensão e produção do que seja a arte, seus mecanismos de ficcionalização, suas áreas de atuação.

A arte, na contemporaneidade, extrapola seus suportes materiais e ganha espaço de desenvolvimento e expressão na vida cotidiana. Não importa aqui, porém, descobrir se o movimento que se estabelece tem sua origem no campo da arte em direção ao social ou vice-versa, já que o foco se encontra na relação simbiótica criada entre o artístico e o social. Deste quadro, resulta a constituição de pontos de tensão sobre o que seja realidade, ficção e os modos de articulação entre estas instâncias, bem como o desenvolvimento de laços cada vez mais estreitos entre a realidade - as produções materiais do cotidiano - e a ficção - os mecanismos produtores de fabulações artísticas.

Constitui-se, a partir de tal perspectiva, uma fusão entre real e ficcional gerando narrativas mistas. Os efeitos dessa associação são vistos na radical transformação dos modos de expressão e organização tanto no campo das artes, como no campo social. Nesse contexto, surge o que chamamos aqui de sobrecampo aurático – um espaço virtual que envolve as relações forjadas no contexto do mundo atual implicando em modos de ver e de interagir no âmbito social e artístico – que paira sobre nossas cabeças e condiciona a reconstituição da arte e sua organização fabular.

A partir de tal perspectiva, vemos realizar-se, no âmbito artístico, a absorção de inovações midiáticas e tecnológicas, seja por meio da partilha de princípios ou pelo uso deexpedientes procedimentais em diversas obras.

Podemos observar, por exemplo, na obra Ascention (2003) do artista plástico indiano-britânico Anish Kapoor, o uso de recursos tecnológicos para expressar as noções de impermanência, de materialidade e imaterialidade, do vazio, do preenchimento e dos diversos efeitos sensório-cognitivos advindos da interação com a obra. A escultura, exposta no CCBB do Rio de Janeiro, em 2006, caracterizava-se por uma coluna de fumaça de 36 metros elevando-se, em espiral, até a cúpula da galeria. Para criar tal sustentação, o artista usou um exaustor em cima para sugar a coluna de fumaça e embaixo uma hélice de avião, à velocidade de 120 km/h, para manter a coluna em movimento ascendente do chão ao teto.

Operações como esta se desdobram em tantas direções e procedimentos quantos são os desejos, as intenções e os objetivos artísticos. Contudo, não ocorrem de modo pacífico e natural, é muito frequente o entrechoque entre as diversas percepções acerca do fazer artístico.

Além da incorporação da tecnologia, as artes ancoram sua força e interesse na possibilidade de oferecer experiências imediatas, supostamente não mediadas, a um público nem sempre preparado ou desejoso de interagir diretamente em tais experimentos.

No campo da performance art, por exemplo, alguns experimentos colocam em cena seres humanos em situações limite. A atuação do espectador, muitas vezes, definirá a duração e o caminho a ser desenvolvido pela performance. Podemos observar, por exemplo, o efeito produzido na relação entre o público e a obra na performance Lips of Thomas (1975), de Marina Abramovic. Neste trabalho, a artista, após executar ações como ingerir mel, beber vinho e quebrar o copo em sua mão, desenha uma estrela de cinco pontas em seu ventre, utilizando-se de um instrumento cortante. Em seguida, deita-se sobre uma espécie de mesa feita de blocos de gelo e sangra até que todos os espectadores deixem a sala ou intervenham de modo a interromper, de algum modo, a apresentação. Quanto tempo ela ficará deitada, quanto mais durará a apresentação e como irá se desenvolver a partir daquele ponto, tudo isso será definido pela relação e atitude do público em relação à obra.

A experiência ficcional, em Lips of Thomas, implica diretamente o real, tornando a experiência artística não apenas um local de apresentação da ficção mas, também, de um fato concretamente executado que atinge diretamente as vidas dos participantes inseridos naquele evento. Podemos observar, portanto, nesse tipo de procedimento, a necessidade de realizar o ficcional, de fazer com que algo concretamente aconteça, como se a ficção artística extrapolasse a sua moldura para completar-se com a materialidade concreta de atos cotidianos produzindo, desse modo, experiências preenchidas de realidade.

Neste panorama, questões como valor da obra, qualidade da composição, critérios para concepção, modos originais de abordagem, articulam-se a exigências de massa, tais como necessidade de visibilidade, novidade, fama, reprodutibilidade, lucro em grande quantidade, etc. - fazendo a balança artística oscilar entre uma

extremidade e outra e construir proposições múltiplas que tangenciam todos os pontos desse trajeto.

Outros exemplos que trazem a necessidade do real na ficção podem ser observados na consolidação de uma indústria cultural que avança, progressivamente, ao investir em produtos artísticos que inventam e reinventam, cada vez com mais veracidade, procedimentos artístico-dramáticos que retornem para o sujeito uma certa dose de concretude possivelmente perdida nos enfrentamentos cotidianos. Como se a experiência factual – e todas as perdas cognitivas e sensoriais que isto implica – não pudesse ser alcançada apenas por meio dos atos cotidianos. Parece necessária a construção de obras que funcionem como reembolso ficcional dessas vivências não adquiridas, perdidas por entre os trilhos de um dia a dia veloz e entrecortado. Observamos, por exemplo, procedimentos ficcionais conhecidos como “acontecimento em tempo real” e “tridimensionalidade” presentes em produções dramáticas para TV e cinema, sobretudo, norte-americano.

O procedimento “acontecimento em tempo real”, por exemplo, é a mola central de desenvolvimento da série dramática americana 24 Horas (SURNOW e COCHRAN, 2001), na qual cada episódio, com duração de uma hora, representa uma hora do dia do personagem central, Jack Bauer. Esse tipo de construção cria uma conexão entre uma hora de vida do personagem (mote de cada episódio) e uma hora vivida pelo espectador, de modo a associar o tempo da ficção ao tempo no qual vivemos. A série cria, assim, uma inter-relação entre a vida e a ficção por meio da associação entre os tempos cronometrados de cada instância – real e ficcional -, além de explorar a tensão dramática pela identificação das rotinas temporais do personagem e da nossa vida cotidiana.

O segundo procedimento, o uso da tridimensionalidade, é observado, por exemplo, na produção cinematográfica Avatar (CAMERON, 2009). Neste caso, no entanto, não se trata de um procedimento dramatúrgico, mas de um elemento técnico e material - o apoio dos óculos 3D12 - trazido para reconfigurar a medida de realidade e ficção apresentada na tela.

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As lentes 3D foram criadas na década de 1950, por dois franceses, Joseph D'Almeida e Louis Du Hauron, com o propósito de fazer o cérebro ler uma imagem tridimensional a partir de um suporte bidimensional produzindo, desse modo, formas estereoscópicas. (ZONE, Ray. 2007)

A partir deste jogo são colocadas também em questão as percepções do que é realidade e do que é ficção ao, momentaneamente, confundir o ambiente estético (ficcional) com a ambiência factual da audiência. Tal recurso faz refletir, dentre outras coisas, sobre os modos como percebemos e nos relacionamos com o mundo que habitamos, em relevo e com dimensões concretas, e o que é ou como definimos os limites entre realidade e ficção, além de possibilitar o mergulho em experiências lúdicas que de outro modo não seria possível.

Aliado à realidade ficcionalizada, a necessidade de mudança de perspectiva na arte pela extrema concretude de suas construções e pelo uso de procedimentos tecnológicos em sua constituição, surge um outro aspecto que pode ser definido como o princípio da fusão: áreas artísticas antes marcadamente distintas e acostumadas a interagir por meio da contribuição dialógica, realizam agora um estreito intercâmbio que põe em curso uma hibridização de linguagens. Por meio da troca de materiais e da absorção de princípios e procedimentos umas das outras, compõem-se obras que instituem um quase desaparecimento de fronteiras entre as diferentes disciplinas artísticas.

Vemos uma infinidade de experimentações serem executadas, tendo como objetivo a fusão de elementos diversos no interior de cada composição. Associado a isso, vemos ainda as obras trazerem em sua constituição paradigmas artísticos forjados eminentemente na esteira da contemporaneidade. Tal fato traz, sem dúvida, aquisições incomparáveis, mas, por outro lado, implica na necessidade quase obrigatória, em muitos casos, de inserir nas obras procedimentos ou dispositivos recém formatados. Desse modo, assistimos a uma busca artística por modos de criação “recém-descobertos”, expressões artísticas “frescas”, procedimentos “novos”, sendo muitas vezes imperiosa a ruptura com idéias, fazeres, tradições.

Mais ainda, vemos tal necessidade sair do uso artístico e projetar-se na vida cotidiana e nas relações interpessoais, de modo a criar um ciclo incessante de produtos destinados a satisfazerem apetites e necessidades imaginais movendo, com isso, a roda-viva do consumo.

Observa-se, portanto, a constituição de um ambiente sócio-cultural no qual imperam termos e práticas que enfatizam a saturação incessante seguida de reinvenção constante, a obsessão pelo novo, a busca pelo prazer imediato, as aparições-relâmpago, a superficialidade, dentre outros aspectos que fortalecem um circuito que constantemente dá sinais de devorar a si mesmo.