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A TRANSPOSIÇÃO DA SITUAÇÃO DRAMÁTICA PARA O CORPO

3. DO DECROUXIANO E DO DRAMÁTICO

3.3. A TRANSPOSIÇÃO DA SITUAÇÃO DRAMÁTICA PARA O CORPO

Um exemplo de transposição do dramático para o corporal decrouxiano é a relação com o peso, base do sistema psicofísico decrouxiano, que representa o conflito, a luta contra a gravidade terrestre para manter-se de pé. Decroux cria uma série de exercícios com o peso para instalar o ator em uma base de equilíbrio instável, a partir da qual a estabilidade está sempre em risco impulsionando o jogo dramático para frente. Importante ponto de sustentação da mímica, os estudos com o peso carregam a força do pensamento filosófico dessa arte diante do mundo. Para Decroux, “tudo pesa”, seja do ponto de vista concreto ou subjetivo. O peso é, assim, emblema do conflito dramático e humano.

No caminho de transposição do dramático para o corporal e de construção das situações dramáticas desejadas, Decroux articula imagem mental e ação física para a criação de situações e metáforas cênicas, estimulando, desse modo, o desenvolvimento de uma atenção ambivalente focada no corporal e no imagético. Para tanto, apoia-se em improvisações corporais dramáticas e na criação e estudo de peças e figuras que capturam o homem em situações diversas.

É importante salientar que, para tal elaboração avançar, tanto na construção da cena quanto na comunicação com o espectador, a ação física tem função chave: a de alinhar corporalidade e imagética para que as metáforas surjam, expressando idéias, sentimentos, relações, situações carregadas de sentidos abertos a serem completados pela subjetividade de cada espectador.

A constituição da metáfora é, aliás, fundamental no sistema decrouxiano. Em grego, metáfora é designada pela palavra metaphorá, que indica transporte, translação e é da Grécia antiga que vem a primeira definição para o termo. Aristóteles, em sua Poética, conceitua-a como “a transposição do nome de uma coisa para outra, a transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para a outra, por via de analogia.” (ARISTOTÉLES, 2004, p.74). De lá até aqui outras compreensões foram sendo atribuídas ao termo, ampliando a sua definição, porém, o sentido de analogia de um campo para outro persiste. Acrescenta-se a isso, o movimento de expansão e síntese, operadas no ato de pensar, como afirma Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários:

A metáfora demoraria pois no próprio ato de pensar e de conferir nome às coisas: ao deflagrar a palavra que denomina o objeto ou o pensamento que organiza a sucessão de palavras, a nossa mente cria e desenvolve metáforas. (MOISÉS, 1992, p. 326-327)

Compreendida nesse sentido, a metáfora teria o poder de produzir formações linguísticas que poderiam tanto restringir a compreensão de um objeto, atribuindo- lhe um sentido concreto e referencial, quanto ampliá-lo, trazendo um caráter polissêmico à idéia materializada. Exemplos destas diferenças podem ser vistos em metáforas científicas que objetivam fechar o sentido de uma idéia, assim como em metáforas literárias que intencionam abrir o sentido. Em função desta dupla possibilidade de sentido e compreensão do termo, a metáfora tomou direções e definições diversas, às vezes antagônicas. Gaston Bachelard, por exemplo, estudioso do campo da fenomenologia do imaginário, faz uma distinção entre metáfora e imagem, priorizando a segunda em detrimento da primeira por acreditar que a metáfora reduz e fecha o sentido, enquanto a imagem traz em si a possibilidade de fazer a imaginação abrir e devanear por caminhos ainda a serem explorados. Desse modo, Bachelard afirma que:

A metáfora vem dar um corpo concreto a uma impressão difícil de exprimir. A metáfora é relativa a um ser psíquico diferente dela. Ao contrário, a imagem, obra da Imaginação absoluta, extrai todo o seu ser da imaginação. É, quando muito, uma imagem fabricada, sem raízes profundas, verdadeiras, reais. É uma expressão efêmera ou que deveria ser efêmera, empregada de passagem” (BACHELARD, 1993, p. 87-88)

Etienne Decroux, por sua vez, utiliza a metáfora como potência poética libertadora, tal como a imagem bachelardiana, conceituando-a a partir do que chama de métaphore à l’envers (metáfora às avessas). A metáfora mímica caracteriza-se, portanto, pela possibilidade de provocar um vórtice de sentidos múltiplos, liberando o imaginário para devanear sobre possíveis entendimentos da cena a que assiste. O elemento gerador de tal movimento reflexivo e ativador é a ação não codificada e elaborada a partir de camadas superpostas de expressão e, por isso, portadora de amplas possibilidades de comunicação.

Nesse circuito, a ação age como força propulsora capaz de estabelecer o casamento entre corporeidade e imaginário capaz de configurar a metáfora artística desejada. Por meio das ações, revela-se a vida interior dos seres, assim como o

estado de espírito que os move a agir. Desse modo, as narrativas a serem construídas serão tão distintas quanto serão as relações de interlocução estabelecidas com cada espectador.

À ação acrescentam-se, no espetáculo teatral, elementos teatrais como a iluminação, o figurino, o texto, dentre outros, que têm a função de contribuir para a elaboração de uma composição não figurativa e plural. Assim, a ação coloca-se no centro do trajeto de construção da metáfora ao avesso, cujo objetivo é produzir imagens dotadas de força de ativação de percepção nos espectadores, capacitando- os a fazer livres associações que sigam os caminhos e direções oferecidos pelo imaginário. Percebe-se, portanto, que o trajeto de construção da metáfora decrouxiana parte do concreto e encaminha-se para o abstrato, realizando-se na individualidade de cada interlocutor, e não o contrário, como afirma George Mascarenhas:

No avesso do processo de construção da metáfora na poesia, em que se tem uma idéia e se procura descobrir uma analogia através de elementos que serão traduzidos em palavras, a mímica corporal dramática trabalha a partir de ações concretas com o propósito de atingir idéias ou emoções que estão em um plano abstrato e que sempre poderão ser interpretadas de diferentes maneiras. (MASCARENHAS, 2007, p. 77)

À medida que ações físicas como empurrar, puxar, atirar, saltar, cortar, tecer, pisar, olhar, acariciar, dentre outras, vão sendo exploradas, o mundo imaterial das imagens mentais e o mundo material da corporeidade encontram-se para fisicalizar o cinema mental, a construção da metáfora ao avesso e a possibilidade de leitura polissêmica por parte do espectador. Nesse trajeto de construção da metáfora decrouxiana, constitui-se o que ele chama de corpo pensante, que parte de uma ação cotidiana e a amplia, diminui ou distorce, utilizando-se de um jogo corporal com texturas, intensidades, dinâmicas, geometrias e dilatações para adentrar na esfera da cena, compondo metáforas e tecendo narrativas.

A partir daí, Decroux descreve relações de força, de oposição, submissão, contemplação, etc., nas quais a fisicalidade do ator ganha em presença e expressão, em possibilidade de criação de discursividade artística e em polissemia. A mímica decrouxiana deseja compor, por exemplo, ações que retratem o peso das idéias e dos sentimentos, em suas diversas intensidades, modos e ritmos para

representar a aventura humana. Para tanto, inscreve, no corpo do intérprete, por meio do jogo com as ações, o peso do imaginário e das relações.

Para compor tais narrativas, o sistema decrouxiano perfaz um trajeto oposto ao exercício de decodificação da pantomima em cuja ordenação objetos invisíveis e gestos codificados compõem o jogo de sentido único para o qual o espectador é convocado a decodificar o enredo metalinguístico.

Como indica George Mascarenhas:

Para a decodificação de um enredo [pantomímico], a narrativa é gerada a partir de uma espécie de sub-vocalização, na qual as palavras vão sendo formadas na mente do espectador, traduzindo as informações gestuais em informação semântica única: uma porta que não abre, um copo, o passeio com o cachorro. Todos os espectadores vêem (ou devem ver) a porta, o copo, o cachorro. Não há espaço para a interpretação pessoal da ação ou do gesto. (MASCARENHAS, 2007, p.73)

Ao contrário, o enredo desenvolvido na cena decrouxiana ampara-se na exploração de ações que são construídas, inicialmente, num trajeto delineado pela investigação de um tema de interesse ou de um movimento corporal qualquer. Segue-se, a isso, a constituição de uma narrativa que esfacela o tema investigado, fragmentando a fábula (se houver). Por fim, procede-se à criação de uma ordenação orientada por critérios ligados à causalidade física. Perfaz-se, assim, um caminho quase cíclico ou talvez espiralar, pois a cada vez que se retoma o ponto motor de desenvolvimento da ação dramática, desdobra-a, ampliando os caminhos e perspectivas de exploração temática.

Contudo, embora partindo da ação e da experimentação no corpo, a mímica decrouxiana não descarta a palavra como forma de expressão, mas oferece algumas diretrizes para o uso do texto falado em cena.