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MÍMICA E MODERNIDADE: DESCONTINUIDADE E MOBILIDADE

3. DO DECROUXIANO E DO DRAMÁTICO

3.5 MÍMICA E MODERNIDADE: DESCONTINUIDADE E MOBILIDADE

Faz-se necessário chamar atenção para outro aspecto relativo à forma de organização da narrativa decrouxiana e às origens do desenvolvimento da mímica corporal, no contexto do Modernismo.

Coelho Neto, em sua obra Moderno Pós-Moderno (2001), descreve que a sociedade moderna, constituída do início até meados do século XX, desenvolveu formas de interação, conceitos e dispositivos que estão refletidos, como princípios, em todos os campos do conhecimento e expressão da época. O autor descreve cinco princípios: a mobilidade, a descontinuidade, o cientificismo, o esteticismo e a predominância da representação sobre o real. Dentre eles, os princípios da mobilidade e da descontinuidade parecem destacar-se, especialmente na disposição interna da mímica decrouxiana, com repercussão na forma de ordenação de sua narrativa.

O princípio da mobilidade, referido por Coelho Neto (2001), descreve a mutabilidade das coisas, a constante alteração dos instrumentos utilizados no jogo social e as mudanças de posição, as alterações de papéis presentes em diversas instâncias da modernidade. O tempo moderno e as relações tecidas nos espaços por ele circunscritos suscitam a rápida alteração e uma constante mutação. A mobilidade como princípio transposto para a narrativa artística parece implicar na construção da arte moderna e também contemporânea, com obras que favorecem a exploração de focos diversos para a condução das ações e tramas artísticas.

O desenvolvimento desse princípio remete, consequentemente, ao segundo, o da descontinuidade, cujo nome designa o seu modo de organização, algo interrompido, irregular, salteado. A descontinuidade indica o fracionamento das

partes, a quebra da unidade, a inserção de espaços em branco, de pontos descontínuos no curso da narrativa que a encaminham para uma multiplicidade de direções e para possibilidades de contar histórias distintas.

Os princípios modernistas citados trazem para a narrativa textual e imagética das obras artísticas uma mudança de paradigma que irá imperar até hoje na contemporaneidade: o abandono da linearidade, da totalidade e da estabilidade. Desenvolvem-se, assim, narrativas artísticas que se instalam na incompletude, no lugar da reticência e do que está para ser dito, mas que o faz muito particularmente a cada espectador, a depender de sua leitura. A mímica decrouxiana, como sistema artístico desenvolvido na esteira da modernidade, absorve tais características e tece também uma narrativa tanto textual quanto física, vazada, descontinuada, com aptidão ao movimento e à fragmentação.

Podem-se observar esses princípios nas diversas linguagens artísticas modernas. Como exemplo, tomemos a obra cubista modernista Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso. Em tal obra, os princípios da mobilidade e da descontinuidade, descritos acima, são vistos na forma de desenvolvimento da situação delineada: mulheres oferecendo seu corpo. Todas as faces dessa imagem- narrativa nos são mostradas ao mesmo tempo. Sem um momento anterior ou posterior para a organização causal, os fatos são enovelados, apresentando-se todos ao mesmo tempo, de modo descontínuo e móvel.

O tema ou a situação apresentada na obra pode ser definido de modo quase unânime por diversos apreciadores. No entanto, as impressões e mesmo a história suscitada serão muito particulares e variáveis para cada espectador. Assim, a obra contará algo diferente para cada pessoa que a vê ou viu.

Exemplos de mobilidade e descontinuidade, na forma de organização da narrativa decrouxiana, podem ser observados em quase todo o seu repertório de figuras e peças. A Carícia nas Costas de Vênus é um dos estudos nos quais é possível observar a atuação de tais procedimentos para a elaboração da narrativa.

A figura aborda o tema do contato com o impalpável metaforizado pela ação de tocar as costas da deusa Vênus. Cada carícia desdobra-se, contudo, na ação de tocar Vênus e também sentir-se tocado por ela. Para compor tal efeito há no trajeto de desenvolvimento da figura, momentos de fusão e momentos de justaposição das

ações de acariciar e de sentir-se acariciado. Com isso, a composição procede a um jogo que foca na contínua mudança de posição do agente que executa a ação e daquele que sofre os seus efeitos, o que faz o foco da ação deslocar-se continuadamente.

Ao lado dessa construção, a figura opera ainda deslocamentos espaciais, abruptos, sem transição ou qualquer indicação de mudança o que implica no desenvolvimento da ação central e, portanto, da narrativa, de modo fragmentado. Assim, em cada momento da figura, Vênus está em um ponto distinto do espaço e as ações de acariciar seguem um fluxo irregular, como veremos a seguir.

A primeira grande carícia é feita na direção horizontal, como se Vênus estivesse deitada em frente ao sujeito que executa a ação. Em seguida a carícia é feita verticalmente na diagonal direita, como se ela estivesse em pé. A terceira carícia é feita, novamente, em frente ao sujeito que a executa, porém, em posição vertical. A quarta carícia é feita na diagonal direita frente, também na vertical. A última carícia retoma ao ponto inicial da deusa deitada em frente àquele que executa a ação, na horizontal. Em todas as etapas, o intérprete realiza com a mão o movimento de acariciar e expressa através de sua coluna vertebral, com um movimento intenso, a sensação de ser acariciado. Vê-se, assim, uma ordenação da narrativa de modo salteado, irregular e, portanto, descontínuo.

O deslocamento espacial de Vênus e a relação com as carícias associam-se de modo a compor ora a fusão, ora a justaposição das ações distintas de acariciar e de ser também acariciado. Tal modo de desenvolvimento favorece a exposição de momentos distintos da narrativa, reunidos conjuntamente diante do espectador, e instiga a produção de leituras que, embora possam ter pontos em comum, constituirão histórias diferentes para aqueles que a lêem, efeito similar ao produzido pela obra de Picasso.

A narrativa decrouxiana se utiliza de expedientes causais, rítmicos e procedimentais diversos para criar a mobilidade e a descontinuidade referidas, como veremos minuciosamente no capítulo quatro. Tais princípios têm importância capital para o desenvolvimento da narrativa mímica, de caráter eminentemente fragmentado e multifocal, com o objetivo de ordenar ações e compor histórias que, em função de seu modo de articulação descontinuado e móvel, estimularão a produção de sentidos polissêmicos e subjetivados, tão diversas quanto a diversidade

de seus interlocutores.

O princípio da descontinuidade, como construção da narrativa textual, é muito visto também nas práticas cênicas contemporâneas, sobretudo as que valorizam o movimento corporal. Observa-se, nesses casos, a entrada do texto dramatúrgico como uma colagem, muitas vezes, excessivamente fragmentada, chegando ao sem sentido ou sem sustentação dramatúrgica. O resultado é um texto muitas vezes desarticulado que, apesar de frequentemente funcionar muito bem em cena – na associação com o movimento – não se sustenta como obra dramática autônoma e depende da encenação para ganhar sentido.

Não se trata, aqui, de investigar a estruturação e criação de um texto em rubricas, descrevendo indicações cênicas, a exemplo do Ato sem Palavras, de Beckett, ou de O Menor quer ser Tutor, de Peter Handke. A intenção é pesquisar a construção de uma estrutura textual dramatúrgica na qual o ator não seja amordaçado pelo texto e nem o texto seja esfacelado pelo ator ou encenador, mas, ao contrário, investigar possibilidades nas quais haja uma estrutura dramatúrgica dirigida ao movimento.

Um exemplo de texto que se aproxima do interesse analítico desta pesquisa é Acrobatas, de Israel Horowitz, escrita em 1970, no qualpodemos observar a relação entre a ação e o texto, em uma situação construída de modo que a corporalidade é vital para o desenvolvimento das réplicas e da narrativa. A peça mostra um casal de acrobatas num dia comum de treinamento. Entretanto, em meio à sequência acrobática vemos ser despejado, alternadamente, por um e outro personagem, um texto ácido e cada vez mais agressivo que revela um casamento em crise. O autor condiciona a ação física justamente para amparar a força e tensão de sua metáfora cênica, numa relação desgastada e desequilibrada. Contudo, essas tensões são instaladas, justamente, no terreno de uma rotina acrobática estável, precisa e que requer equilíbrio total. Não há como fugir desse jogo entre as ações acrobáticas e o discurso das personagens. De outro modo, a metáfora seria aniquilada, bem como a situação dramática construída. A força do texto, todavia, reside justamente na relação entre o que é dito e o que é feito. Porém, observa-se uma fragilidade na construção das réplicas que, por ancorarem-se no uso de clichês, não investem na exploração da linguagem e tornam o diálogo superficial.

nascer daí uma metodologia possível de escrita dramática dirigida ao ator mímico, que mantenha em perspectiva a força das imagens construídas pelo corpo, fala e presença do ator, em um enredo multifocal, não-linear e dinâmico, tal qual o mundo contemporâneo. A intenção, como dito anteriormente, é produzir “textos corporais dramáticos”, ou seja, concebidos pela lógica do pensamento e sistema teatral decrouxiano.

Para compreender de que modo é possível constituir um drama decrouxiano, é preciso observar quais são os elementos constitutivos do drama e o jogo estabelecido entre eles, a partir dos vetores de ação e das linhas de força que o sustentam e impulsionam, ao longo do trajeto de composição da narrativa dramática.