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A RELAÇÃO DA MÍMICA COM O TEXTO DRAMÁTICO

3. DO DECROUXIANO E DO DRAMÁTICO

3.4 A RELAÇÃO DA MÍMICA COM O TEXTO DRAMÁTICO

Para Decroux, na mímica corporal dramática, o texto deve estar submetido ao movimento. Em seu livro Palabras sobre el Mimo (2000), explica que, nos momentos de maior movimentação, é melhor optar pela inclusão de menos texto, assim como

nos momentos de menor movimentação, pode-se esbanjar no uso do texto. Deste modo, estes dois elementos não entrariam em choque, nem competiriam entre si pelo lugar de proeminência na atenção do espectador, o que poderia desviar o foco do que está sendo comunicado.

Tal recomendação faz constatar que não está em questão, nesse estilo de mímica, a eliminação do texto. Tampouco deseja-se substituir esse elemento pela entrada de gestos codificados que seriam decodificados pelo espectador, de forma unívoca, à maneira da cena pantomima ou do mimodrama.

A relação da cena decrouxiana, cuja ênfase é a construção psicofísica, com o texto parece retomar um laço com as origens do desenvolvimento deste gênero teatral: a tradição do antigo mimus da Antiguidade clássica, em cujo formato pré- dramático cabia todo tipo de peripécias físicas, associadas a chistes verbais. Os mimos primitivos que circulavam pela Grécia e Oriente, desde antes do século IV a.C., seguindo até o Império Romano, onde obtiveram importante destaque e popularidade, eram treinados em façanhas acrobáticas, mas eram também reconhecidos por seus textos, escritos ou improvisados, que criticavam e ridicularizavam as sociedades por onde passavam.

Há registros de textos mímicos desde 430 a.C., na Sicília, onde Sófron parece ter dado, pela primeira vez, forma literária às farsas rústicas burlescas praticadas desde tempos imemoriais pelos mimos que perambulavam pela Europa (BERTHOLD, 2001). Sabe-se também que, na Grécia antiga, a maioria dos textos mímicos era em prosa, mas havia também os mimeidoi, que eram cantados (segundo Berthold, seriam os precursores do music-hall). Havia ainda os mimiambos, do poeta Herondas De Cós (em torno de 250 a.C.), breves textos mímicos e espécie de variante poética dos mimos gregos escritos em iambos – forma de versificação grega utilizada nas peças clássicas. A temática destes textos era, em geral, satírica e, como afirma Berthold, “Seu alvo era a imitação „fiel à natureza‟ de tipos autenticamente vivos, ou, num sentido mais amplo, a arte da autotransformação da mímesis.” (BERTHOLD, 2001, p.136).

A mímica decrouxiana afasta-se do traço satírico e jocoso de seus ancestrais gregos, e, tal como a mímica primitiva, investe na força da mimese. Contudo, este outro que a mímica corporal torna manifesto por meio do corpo de seu ator não é mais o tipo farsesco, mas sim as diversas forças, relações e imagens que

condicionam a sua ação no mundo, denunciando, assim, a lógica de funcionamento do mundo moderno, cujas disposições acentuam-se e desdobram-se no contemporâneo. Segundo Decroux:

Lo que caracteriza a nuestro mundo es que está sentado. La mima corpórea se levanta, se divierte representando al mundo, estar en la mima es ser militante, un militante del movimiento en un mundo que está sentado. (DECROUX, 2000, p. 07)

Neste sentido, a mímica decrouxiana, assim como o mimo primitivo, não necessita de nada mais além do próprio ator, sua corporeidade e sua capacidade de mimetizar. Ou, como indica Aristóteles, na Poética (2004), o que é necessário é o ato de produzir semelhanças criativas e, com isso, definir metáforas que imbriquem ação e imagem, compondo linhas de força tais que delineiem o humano, suas condições e o sentido de suas relações no mundo.

Segundo Corinne Soum2 (apud MASCARENHAS, 2008, p. 83), ao retirar o caráter satírico e jocoso da mímica e dar-lhe um tom “sério, Etienne Decroux,” trouxe para esta arte um traço distintivo. Ele conduziu a sua mímica corporal à categoria de arte teatral, em cuja organização discutem-se as grandes questões humanas tal como propõem a tragédia ática, o drama sério e mesmo o drama moderno, - em crise, porém reformando-se para melhor discutir o estado e as situações do homem de sua época. Decroux, segundo Soum, teria, com isso, retirado a mímica das ruas, “[...] para dar-lhe um tratamento de um drama sério com influência épica, eliminando sua natureza de comicidade a priori.” (MASCARENHAS, 2008, p.83).

Tal orientação assemelha-se, em certa medida, à operação produzida por Molière com a comédia, ao retirá-la das ruas e levá-la aos salões da corte de Luís XIV, o Roi Soleil. Molière desenvolveu a haute comédie, a comédia clássica francesa, tornando-a objeto de deleite da nobreza, ao não apenas reproduzir os tipos cômicos e farsescos oriundos da Commedia dell’arte e suas situações burlescas, mas ao inseri-los em formas literárias que apontam e denunciam as desigualdades e desmedidas presentes na sociedade de seu tempo. Para tanto, Molière usou os mesmos moldes e elementos dramáticos presentes na tragédia

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Última assistente de Etienne Decroux, ao lado de Steven Wasson, tendo estudado com ele no período entre 1979 e 1985 na escola de Boulogne-Billancourt fundada pelo mestre em 1962 nos arredores da cidade de Paris.

clássica.

Na cena decrouxiana, o texto, por sua vez, tem a função de dialogar com os seus intérpretes e espectadores, abrindo espaço para a emersão de imagens, idéias, atmosferas, de modo a ora manter o sentido referencial evocado, ora perfazer trajetos diversos do discurso de referência, perseguindo sentidos não figurados. Assim, o texto mímico muitas vezes abandona a função de descrever estados, narrar atividades e eventos, provocar ações ligadas ao referencial concreto da cena na qual se insere, para apresentar-se como discurso poético, sem sentido fixável, extrapolando a situação dramática da qual emerge. Abre espaço, com isso, para um jogo textual onde procedimentos como falas em fragmentos, diálogos entrelaçados, fazendo as réplicas se entrechocarem, apresentação de uma linguagem inversa à função da personagem que fala, ou à ação e situação esboçadas, dentre outros, possam ser elaborados, de modo a favorecer a precipitação do corpo do ator na cena. Um corpo que, ao agir, expressa as informações, idéias, imagens não ditas pelo texto.

Observa-se que a cena decrouxiana traz em si uma lógica própria e, portanto, uma narrativa específica que requer, do texto, um reposicionamento, de forma a dialogar colaborativamente com a representação para a qual se destina. Tal lógica instala-se no movediço, num espaço marcado pelo desejo de tornar vísivel o invísivel. Ao fisicalizar o pensamento, o imaginário, materializa o inefável, o que está presente e, ainda assim, não está. O corpo decrouxiano é composto por frestas por onde ventila e se entrevê o impálpável; desse mesmo modo, a proposição textual também deve refletir tal fluxo para estabelecer um diálogo colaborativo capaz de trazer potência e renovação para a cena teatral e para a forma dramática. Desse modo, Decroux se questiona: “¿Qué nombre, no tan peyorativo, se le puede dar al escrito que parcialmente vacío – voluntariamente, repitámoslo – le abre un lugar a quien lo dice?” (DECROUX, 2000, p.98).

Na mímica, o lugar de “quem diz” é, de fato, o lugar de quem se move com um corpo e atenção dilatados, para deixar buracos por entre os quais o imaginário abra espaço para novas e velhas experiências circularem: as ali produzidas e as que estiveram presentes e, virtualmente, poderão voltar a estar. Tal característica nem sempre implica numa relação harmoniosa entre o texto dramático e a cena teatral. Contudo, a recomendação decrouxiana, no que concerne ao uso do texto na cena,

acaba agindo como um alerta que chama a atenção para a compreensão da especificidade do sistema, propondo uma relação entre texto e fisicalidade que enfoque a potencialização da comunicação entre palco e platéia. Em última instância, este procedimento amplia a força mimética e a possibilidade de renovação da cena, ou, no mínimo, oportuniza a descoberta de novos caminhos dramatúrgicos e cênicos a serem trilhados.