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UMA REFLEXÃO SOBRE A MORTE DO DRAMA

3. DO DECROUXIANO E DO DRAMÁTICO

3.8 UMA REFLEXÃO SOBRE A MORTE DO DRAMA

Jean-Pierre Sarrazac, no artigo A reprise (resposta ao pós-dramático), publicado como introdução ao livro Études Théatrales 38-39/2007 – La Reinvention du drame (sous l’influence de la scène) (2010), analisa o drama e sua potência interna levando adiante a discussão aberta por Lehmann. Para tanto, parte do princípio de que se existe uma categoria pós-dramática, ela baseia-se na afirmação de uma suposta morte ou, no mínimo, ineficiência e inadequação do drama. Contudo, longe de admitir a extinção de tal forma, Sarrazac se põe a examinar o que, de fato, caracteriza o drama e quais são suas possibilidades de atuação.

Sarrazac, em sua reflexão analítica, toma a palavra ação e observa o termo como utilizado por Aristóteles, em grego, assim como a definição grega que a conceitua. Em grego, ação é designada pelo termo práxis e, segundo Sarrazac, cobre um campo muito mais amplo incluindo também os estados do humano. Se observarmos a Poética, de fato, Aristóteles (2004) não se põe a definir ação, mas faz sugestões de como ela deveria ser articulada na tragédia, de modo a afetar com mais eficiência a platéia à qual se destina. Aristóteles fala da fábula como imitação da ação de homens bons ou maus, articulada para causar prazer na audiência, na comédia, e no caso da tragédia, terror e piedade, contudo, não designa o que entende por ação dramática.

Ao trazer tal concepção estendida para o termo ação, Sarrazac amplia a compreensão sobre o conceito de drama, sua potência e possibilidades. O drama teria, assim, em sua forma potencial, a capacidade de abarcar uma ampla gama de expressões dramáticas e as diferentes formas históricas seriam exemplos de configurações para dar vazão a visões de mundo e desejos sociais e estéticos de períodos distintos. Sarrazac afirma que o que estaria implicado no dramático

rigoroso não seria a ação, mas a possibilidade de decisão do humano ou, ao contrário, a sua incapacidade de fazê-lo e, ao colocar em curso sua intencionalidade, agir. Segundo ele, a incapacidade de decisão é o que está em foco nas dramaturgias modernas e contemporâneas e tais formas dramáticas revelam não uma crise do drama, mas do sujeito - incapaz de desejar e mover-se decididamente em direção ao que deseja.

Para Sarrazac, portanto, as formas dramáticas iniciadas a partir de 1880 constituem-se em síncopes da ação, o que não significa ausência de ação. De acordo com a definição de práxis, a ação está presente e afirma vivamente a maleabilidade da forma do drama – quer ele se aproxime do gênero ao qual pertence, o dramático, apresentando, de forma precisa, suas características, quer esboce traços do lírico ou do épico.

Além disso, apresentam-se em tais formas não apenas estados humanos, mas também homens em colisão – senão com outro personagem ao menos consigo mesmo e com o mundo. Sarrazac os inclui, portanto, na esfera do drama, mas admite que tal campo e seus limites foram, inegavelmente, ampliados desde o drama moderno.

Assim, ainda segundo Sarrazac, o drama se organiza e reorganiza a cada momento a partir de mutações paradigmáticas que acontecem de tempos em tempos, como uma reprise, uma repetição do evento gerador de mudança. Contudo, apesar deste movimento ser algo que sempre retorna, ele não tem resultado estático, mas, ao contrário, reinventa, a cada vez que surge, o drama. Desse modo, revela a sua complexidade, assim como a dinâmica de sua forma e constituição. Tais reinvenções permanentes revelam ainda uma outra força que age sobre o drama, internamente, e que expõem sua natureza desterritorializante. A força a qual Sarrazac se refere é uma “pulsão rapsódica” que, segundo ele, trabalha a forma dramática e define-se como:

Pulsão permanente de irregularidade, que se manifesta de forma mais forte no período barroco, das luzes, do Sturm und Drang, na virada do século XX e, indiscutivelmente, na época atual. Pulsão rumo ao heterogêneo, rumo à assimilação de elementos díspares que também concernem aos grandes modos de expressão como o dramático, o épico, o lírico, o argumentativo e, além disso, a combinação do cômico, do trágico, do patético. Ou ainda a inclusão da oralidade na escritura. [...] Victor Hugo já havia constatado que a cada criação dramática ele deveria repensar a forma dramática –

cada peça sendo ao mesmo tempo modelo, protótipo e obra única. (SARRAZAC, 2010, p.08)

O drama parece, assim, ser movido por uma dinâmica interna que o impulsiona à permanente instabilidade e desterritorialização, fazendo-o tomar formas tão diversas quanto contraditórias.

Esta pulsão rapsódica, identificada por Sarrazac, atravessa o drama, fazendo-o escapar ao longo do tempo de certezas formais, receitas testadas e intrigas gastas para, como Hegel e seu método histórico também afirmam, assumir um colorido histórico que permita “ser possível em qualquer tempo e poder ser invocado na poética de qualquer lugar.” (SZONDI, 2001, p. 24).

Há ainda outra força, talvez motora, que condiciona o movimento do drama e que é gerada fora de sua materialidade, embora se mantenha sempre vinculada a ele, assim como um desenho que, ao ser esboçado no papel não segue apenas os impulsos físicos da mão, mas os contornos da imagem mental. Se por um lado o drama tem autonomia e independência, por outro está vinculado a junções paradoxais que o constituem e caracterizam. Talvez por isso seja impossível isolá-lo e defini-lo de modo estável e fixo e talvez também por isso a melhor forma de compreender a sua dinâmica seja aceitar as dialéticas e tensões que o definem e o paradoxo que o funda: é drama e é também teatro - na medida em que carrega em si o espírito pulsante de vitalidade de renovação. Desse modo, recebe os impulsos do movimento teatral – que por sua vez é impactado pela esfera social – condicionando, com isso, o jogo entre seus elementos e a materialidade provisória de sua formatação. O teatro estimula continuamente o deslocamento e a renovação do drama e de suas formas históricas.

A reflexão conduzida a partir da observação do drama e seu comportamento, em formações estéticas historicamente conformadas, nos leva a acreditar que o drama e seus elementos não saíram ou sairão de cena de modo definitivo. O que nos parece é que cada época, cultura, estilo e poética recriam um formato a partir da definição de um paradigma, o qual favorece a expressão da dinâmica de forças internas que movem a sua organização.

Assim como “o teatro é uma obra de arte social e comunal” (BERTHOLD, 2001, p.103), o drama também o é e precisa reordenar-se e dialogar com outros gêneros e

estéticas para favorecer a sua comunicação social, sem, contudo, perder o seu propósito e potência. Para tanto, acreditamos, precisa definir modos de funcionamento e estruturar formatos nos quais poderá funcionar.

Desse modo, para erigir uma forma dramática com características decrouxianas é necessário, uma vez identificados os elementos e a dinâmica de funcionamento do drama, levantar os elementos responsáveis pelo desenvolvimento da narrativa decrouxiana e investigar como tais elementos podem ser cruzados com o dramático, de modo a criar o drama decrouxiano.

Ao identificar recursos decrouxianos pretendemos levantar procedimentos que explorem a força dramática e imagética presentes em tal sistema e utilizá-los em associação com os elementos do dramático, de modo a compor o tipo de narrativa dramática mímica pretendida.

Além disso, o levantamento de tal instrumental procedimental favorecerá o desenvolvimento de uma prática dramatúrgica imbuída da mesma força, dinâmica e intensidade presentes na construção física e cênica da mímica decrouxiana. As possíveis aproximações a serem geradas a partir do cruzamento de elementos de um sistema e do outro certamente trarão tensões a serem recebidas, contudo, como trilhos a nortear o caminho na descoberta de pontos de interseção.

No capítulo a seguir serão identificados procedimentos decrouxianos, que associam o dramático e o imagético, favorecendo a construção de uma narrtaiva dramática onde o corpo, com base nas premissas decrouxiano, pode emergir.