• Nenhum resultado encontrado

Ao propor o Método Analético como filosofia e prática científica para a estruturação de caminhos para a libertação (ou a descolonialidade) do povo latino- americano, Enrique Dussel38 não põe em dúvida a importância e a necessidade do Método Dialético de Marx17 para a superação – pelos trabalhadores organizados da cidade e do campo – das relações e formas de dominação e exploração impostos pela burguesia capitalista. No entanto, ele afirma ser necessário o desenvolvimento de um momento anterior (o momento analético), onde os que vivem e trabalham sob a

colonialidade do poder capitalista24 – ou seja, aqueles que são subjugados e explorados tanto pela burguesia local dependente (periférica) quanto pelos países e corporações dominantes (que negam, desde sua posição central no capitalismo, a cultura e o modo de vida “inferior e atrasado” da periferia do mundo, impondo a sua “modernidade”) – precisam se autorreconhecer (ou se afirmar) como exterioridade à totalidade da sociedade capitalista, para, a partir daí, negar a negação imposta (momento dialético) pelo capitalismo burguês38.

Para o desenvolvimento desse processo analético, a categorização dos trabalhadores – sejam urbanos ou rurais, sem terra ou com pequena propriedade, etc. – como uma classe proletária única é, segundo Dussel38, insuficiente, pois esta nos permite apenas a interpretação da oposição conflituosa entre proletariado-burguesia ou classe operária-classe detentora do capital. Para o autor, a principal insuficiência desta categorização generalizante (muitas vezes seguida de forma acrítica por marxistas mesmo de países colonizados38) é que, para que esta oposição exista – a oposição que surge a partir do momento em que a burguesia, detentora dos meios de produção/especulação, tanto nega (expropria) o direito de parte da população de também os deter para utilidade própria, quanto nega (explora) o devido pagamento e dignidade pelo emprego-venda do trabalho dos que não possuem meios próprios; e, consequentemente, a oposição que surge da luta destes trabalhadores contra esta exploração e expropriação (enfrentamento ou contra-negação de quem lhe nega seus direitos, buscando obter o que lhe foi injustamente negado) – é necessário que as duas classes opostas façam parte da mesma totalidade capitalista. Como se esta luta de classes, onde uma classe quer manter e aumentar seus privilégios e a outra quer acabar com esses privilégios e aceder de forma mais justa e equitativa aos meios de produção e de vida, acontecesse dentro de um único círculo, “o único existente”: a totalidade da sociedade capitalista38.

No entanto, a leitura contextual de Marx – a da sociedade europeia ocidental do século XIX em crescente processo de industrialização da cidade e do campo – não abarcou a existência e a interpretação de formas de trabalho e economia que se

localizavam fora da totalidade capitalista (ainda que afetadas por ela)38. O camponês, sob a interpretação de Chayanov18,19 (a mesma que utilizamos para a realização deste estudo), aquele que manteve (ou conquistou) sua pequena propriedade de terra – e não por isso passou a ser burguês – e que seguiu sendo trabalhador em sua terra – autoexplorando e autorregulando o trabalho familiar e o atendimento de suas necessidades –, é, talvez, o maior exemplo de outros modos de vida e economia fora da totalidade capitalista. Nesse sentido, o “encaixe” do camponês pequeno proprietário de terra (inclusive indígenas e quilombolas) diretamente como proletário, ainda que este também seja historicamente explorado e tenha seus direitos e modo de vida constantemente ameaçados pelo capitalismo, pode ser um caminho de luta forçoso e instável, se não ineficaz. Isto porque, sendo proletários “de fato” os trabalhadores urbanos e rurais sem terra (sem meios de produção/especulação próprios, explorados por empregadores donos do capital), o “encaixamento” direto dos camponeses pequenos proprietários como classe proletária pode tornar as lutas por terra, aumento de salário, jornada reduzida, descanso semanal, férias, posse dos meios de produção, etc., inicialmente estranhas, fora de contexto e desmotivadoras para os mesmos38.

Assim, no caso e exemplo do camponês brasileiro, o momento analético, como proposto por Dussel38, deve trabalhar inicialmente o autoentendimento do camponês como tal (sua cultura; seu modo de vida e economia; seu modo de produção próprio e seus conhecimentos tradicionais/geracionais; seus direitos e desejos; as explorações que sofrem; e as suas pautas para a mudança do contexto de exploração), a partir de sua própria palavra e percepção. Uma vez estabelecido o processo de autorreconhecimento e de autoafirmação de sua identidade e de sua exterioridade ao modelo capitalista (ambos fortemente mascarados pelos violentos métodos e anos de atuação coorporativa-Estatal da Revolução Verde), o camponês teria as condições para também se identificar e se integrar às lutas do povo trabalhador frente à totalidade capitalista. Desta forma, como um segundo momento, o camponês não apenas passaria a encaixar seus pontos de luta junto à luta proletária, mas também identificaria a luta do povo a que faz parte como sua própria luta, desenvolvendo uma verdadeira dialética latino-americana (externa e contra a

totalidade capitalista, e não interna e como parte constitutiva da mesma). É, então, sob a necessidade de se descobrir metodicamente essa exterioridade do povo latino-americano, para que cada parte da multiculturalidade que o compõe possa de fato se auto definir e, a partir daí, definir os rumos de sua ampla descolonialidade, que Enrique Dussel propõe o Método Analético para uma Filosofia da Libertação Latino-Americana38.

E sendo esse, portanto, um método que intenciona mudanças práticas, reais e profundas, que permitam uma interpretação filosófica/científica que promova e dissemine esta autêntica descolonialiade; e, também, sendo esse o caminho escolhido para fundamentar, implementar e analisar um processo de pesquisa e ação de Promoção da Saúde de populações camponesas dominadas e impactadas pelo modelo capitalista do agronegócio (e, consequentemente, afetadas pelo uso de agrotóxicos), se faz necessária a estruturação de um processo que se utilize de metodologias camponesas, paradigmas sanitários e desenhos de estudo que viabilizem a operacionalização do que é cientificamente definido por Dussel38 como “saber situar-se

para que, das condições de possibilidade da revelação, pudéssemos aceder a uma reta interpretação da palavra do outro...”38

, sendo que, “o tema a ser pensado, a palavra reveladora a ser interpretada ser-lhe-ão dados na história do processo concreto da própria libertação”38

.