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Sem alterar a estrutura fundiária, econômica, social e ideológica de colonização e exploração das riquezas e da população pobre, a oligarquia-burguesa agrária brasileira, fruto direto e sempre dependente dos países centrais do capitalismo global (que passa a contar com o prolongamento cultural dominador da Europa Ocidental na América, os Estados Unidos38), oficializa, a partir da proclamação da República em 1889, seu domínio direto sobre o aparato de Estado no Brasil24,32. Os elementos de colonialidade do poder capitalista mundial – ideia de raça, controle do trabalho e controle do conhecimento – permaneceram, assim, estruturando as operações de dominação das terras e trabalhadores para a exportação de mercadorias primárias para o mercado mundial e para a importação de produtos industrializados para atender o consumo ostentoso desta elite oligárquica24.

No entanto, como vimos, tal dominação, apesar de eficiente e violenta, nunca chegou a ser total. Diferentes “brechas históricas” de vinculação à terra e de posterior resistência, manutenção e/ou retorno à vida e produção familiar no campo – por indígenas, negros, mestiços e brancos pobres – permitiram o desenvolvimento dos modos de vida e economia natural e camponesa no Brasil. E a contra-hegemonia do campesinato brasileiro em relação ao capitalismo não vem apenas desta persistência de viver autonomamente na e da terra, tirando deste bem natural básico, por meio do trabalho familiar autorregulado, o que é necessário e satisfatório para a vida. Esta simultaneidade também é contra-hegemônica pois, obviamente (quase redundantemente), para serem simultâneos à um padrão de poder hegemônico que se

utiliza de elementos de colonialidade para impossibilitar a existência simultânea de sociedades e organizações humanas que não são dependentes e submissas ao capital, os modos de vida e economia natural e camponesa desfazem, nas localidades onde coexistem, os elementos-pilares de colonialidade do padrão de poder capitalista.

Nesse sentido, em especial a partir da formação da pequena propriedade legal e do camponês branco (imigrante europeu, herdeiro geracional de latifúndios fracionados sucessivamente e alguns poucos posseiros que conseguiram legalizar suas terras apossadas), como classificar socialmente o camponês como “naturalmente inferior” (passível de ser dominado sob qualquer forma de desumanidade) sendo que diferentes cores de pele, com diferentes origens e papéis sociais pré-definidos – inclusive o branco europeu – conformavam o mesmo, porém diverso, campesinato?; como controlar e explorar o trabalho camponês, articulando inteiramente sua produção e seu consumo ao mercado capitalista, uma vez que a autoexploração do trabalho familiar para o abastecimento interno, sem prescindir da categoria salário e com alto nível de autonomia produtiva, permitia ao campesinato tanto uma existência desvinculada quanto uma inserção autorregulada (controlada e não dependente) à este mercado?; como dominar sob uma ordem subjetiva totalizante externa – ainda que autointitulada moderna e mais avançada – a produção, utilização e disseminação da cultura própria nestas localidades camponesas, sendo que, em seu modo de vida e economia as experiências e sabedorias familiares e comunitárias intergeracionais, que produzem conhecimentos, crenças, técnicas e tecnologias consolidadas por anos de experimentações e melhoramentos, eram adequadas às características e contextos locais e supriam as necessidades produtivas e sociais?

Buscando, então, evitar qualquer ameaça que essa existência simultânea poderia trazer aos privilégios que o domínio trazia tanto à burguesia-oligarquia dependente brasileira quanto à burguesia central europeia-estadunidense, o poder capitalista lançou mão de um processo de readequação dos elementos de colonialidade para garantir e aprofundar o controle da terra e do trabalho rural e para tentar, enfim, atingir a submissão completa do persistente campesinato. Assim, esta readequação

para “recolonizar” o campesinato passa a utilizar e a potencializar o discurso, a construção ideológica e a ação para a necessidade de modernização da vida e do trabalho no campo já não atrelando a modernidade e o desenvolvimento de maneira mais acentuada apenas ao elemento de colonialidade de controle da subjetividade, mas também à classificação social e ao controle do trabalho.

Como todo processo, a modernização dos modos de vida e economia natural e camponesa nos moldes e interesses coloniais oligárquicos/burgueses-capitalistas teve, antes de estar plenamente estruturada e com ações e rumos totalmente definidos, etapas precedentes de construção. Desta forma, o que foi chamada Revolução Verde, a partir do final da década de 1960, e que consistiu (e ainda consiste) num processo estruturado de transferência de pacotes tecnológicos das indústrias químicas e mecânicas dos países dominantes para os campos agrícolas dos países dominados39,40, teve como antecedentes constitutivos no Brasil: a construção do camponês (em toda sua diversidade) como “ser inferior” (Jeca Tatu, bicho do mato, capiau, caipira da roça, etc.) por intelectuais pertencentes às oligarquias/burguesias agrárias e à nascente burguesia urbana; e também a construção do controle “por dentro”, por meio da intrusão direta da ciência e técnica agrária capitalista, do modo de produção camponês, do trabalho familiar não-assalariado e do conhecimento local e intergeracional.

A readequação do principal elemento estrutural da dominação colonial capitalista – a ideia de existência de povos/populações “naturalmente inferiores” aos europeus ocidentais – começou a ser trabalhada, já a partir dos primeiros anos do século XX, para unificar todas as diferenças e, principalmente, todas as semelhanças que envolviam a autonomia de vida e produção da diversa população camponesa sob uma única “caricatura”30. Os principais responsáveis por esta construção ideológica do campesinato autônomo como atrasado e inferior aos europeus, estadunidenses e brasileiros “desenvolvidos” (com capital-dinheiro); como responsável pelos problemas sociais e sanitários do País; e como parasita da terra e do Estado – visão que fundamentou, a partir de então, tanto as ações práticas dos elementos de colonialidade

de controle do trabalho e da subjetividade quanto as políticas e ações públicas – foram os intelectuais e escritores brasileiros de origem oligárquica e burguesa, educados na ou sob as bases de conhecimento da Europa Ocidental capitalista30,41. Naxara42, citada por Klanovicz41, aponta que

A discussão sobre a “capacidade civilizadora” do Estado brasileiro, alimentada desde o final dos oitocentos, ganhou forma por meio de escritores como Sílvio Romero, Euclydes da Cunha, Monteiro Lobato, Manoel Bonfim e Paulo Prado. São escritores que descreveram um Brasil caótico e produziram representações sociais para as elites [Grifos do autor].

Tanto Klanovicz41 quanto Darcy Ribeiro30 descrevem o “intelectual-

fazendeiro”30

Monteiro Lobato como peça-chave para a construção do camponês como “ser inferior”. Segundo Klanovicz41

, para Lobato

o atraso da nação se devia aos parasitas caboclos, aos lavradores ignorantes, pobres, infelizes e, principalmente, doentes. Lobato, membro da elite paulista do início do século XX e articulista d´O Estado de São Paulo, criou em 1914 o personagem Jeca Tatu com o intuito de representar a população lavradora nacional sob a ótica da doença. Jeca era um caboclo que morava numa palhoça de chão-batido, convivendo com animais domésticos (galinhas, um galo índio e um cachorro sarnento). Ele vivia a maior parte do tempo de cócoras, “sem disposição para o trabalho”; era ignorante e sua mulher não passava de uma “sarcopta [sic] fêmea cheia de filhos.” A rigor, Jeca Tatu era a elaboração patronal do brasileiro pobre do início do século XX e nessa perspectiva, figura detestável, horrível, repugnante, porém necessária para a manutenção das próprias elites.

[...] Talvez seja por isso que Lobato afirmava que o Jeca Tatu, no meio de tanta vida, não vivia, não sabia dançar, nem cantar, nem comer; era um urupê de pau podre e sua vida resumia-se ao convívio com poucos animais domésticos numa propriedade rural de alguns alqueires de terra mal-aproveitados economicamente41 [Grifos do autor].

Essa imagem caricata e depreciativa do camponês e seus modos de vida e produção, construídos, então, como arcaicos, improdutivos e negativos tanto para o desenvolvimento do País quanto para sua própria saúde, se disseminou por diversos meios de comunicação e entretenimento ao longo do século XX e consolidou a interpretação latifundiária de Lobato sobre o campesinato (abarcando pequenos proprietários, trabalhadores rurais sem posse de terra – empregados temporários,

parceiros, meeiros, posseiros, etc. – indígenas aldeões e quilombolas) como inferiorizado, passível e até necessitado de ações e intervenções do Estado e da ciência para modernizar seu modo de vida atrasado.

Paralelamente, vinha sendo construída, desde o final do século XIX, as primeiras estruturas de (re)produção de conhecimentos e práticas das ciências agrícolas no Brasil, que, alguns anos mais tarde, fundamentariam as teorias e as práticas do processo “modernizador” do campesinato. Esta ciência, oriunda e baseada nas formas de produção que atendiam e representavam os interesses mercantis dos países centrais do capitalismo e da elite brasileira, teve como primeira experiência concreta a fundação do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Segundo Coelho43

Os trabalhos de [Franz Wilhelm] Dafert [1863-1933] no IAC, no final do século XIX, são emblemáticos para entender como a agricultura foi se transformando em Agronomia. Dafert, austríaco, aos 24 anos já era doutor em Química Agrícola pela Universidade de Giessen e foi contratado pelos Barões do Café para dirigir o IAC, com vistas a sugerir formas de recuperação dos solos e melhoria dos cafezais de São Paulo.

[...] A investigação de Dafert [...] daria início às pesquisas baseadas na química agrícola, modificando os procedimentos de simples observação dos cultivos e tratos culturais. Sempre que possível, buscou sistematizar os resultados econômicos e valores numéricos mais precisos, de maneia a corresponder às expectativas dos financiadores do Instituto, os Barões do Café paulista.

Apesar de fundamentar os primeiros passos da ciência agronômica capitalista no Brasil, os resultados iniciais apresentados pelo IAC desagradaram em grande parte seus mantenedores. Dafert, que tinha os países e as propriedades europeias mais fragmentadas como referência produtiva, apontou como resultados para os problemas de produtividade e de impactos à capacidade de regeneração e manutenção do solo o uso predatório da terra nos extensos latifúndios, o trabalho escravo e o distanciamento dos donos em relação à produção, já que estes viviam nas cidades43.

Tais críticas e questionamentos inconvenientes às bases da ordem econômica, social e política da oligarquia-burguesia latifundiária que comandava o País não foram repetidos nas escolas agrícolas com raízes e inspirações estadunidenses

(fundadores, pesquisadores e professores) fundadas no início do século XX em Minas Gerais. Tanto a Escola Agrícola de Lavras (atual Universidade Federal de Lavras – UFLA), fundada em 1908 por missionários-professores da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos44, quanto a Escola Superior de Agricultura e Veterinária (atual Universidade Federal de Viçosa – UFV), “criada por um americano apaixonado pelas

possibilidades civilizatórias de uma escola científico-técnica para o melhoramento da agricultura no Brasil”43

, em 1922, não apresentavam em seus programas curriculares e

em seus projetos de pesquisa temas que questionassem e buscassem formar profissionais com pensamento crítico em relação às estruturas latifundiárias e monocultoras43,44. Analisando a trajetória inicial da Escola Superior de Agricultura e Veterinária, Coelho43 aponta que

À medida que o mundo social não era questionado, o conhecimento técnico comprometia-se com o aprimoramento da ordem existente sem tocar nas bases estruturais latifundistas, ou seja, esse conhecimento técnico comprometia-se com a “manutenção modificada” da dinâmica econômica e social de uma ordem política oligárquica. As possibilidades abertas pelas mudanças técnicas eram interessantes, desde que não tocassem na capacidade de controle político das oligarquias sobre a terra e o trabalho no campo. Por isso, pode-se dizer que esse arranjo institucional permitiu a construção de forte identidade de propósitos entre a escola e as elites agrárias43 [Grifos do autor].

Nesse mesmo sentido, além de (re)produzir ciência-técnica para o desenvolvimento produtivo e econômico dos cultivos das elites latifundiárias, as principais escolas agrícolas do Brasil existiam para que os filhos desta mesma elite, além de outros poucos que haviam ascendido socialmente por meio da escolaridade num País majoritariamente analfabeto, se formassem agrônomos para aplicar os conhecimentos técnicos adquiridos nas terras de seus pais e/ou patrões43,44. Desta forma, até a década de 1940 a ciência agrária “nacional” e a construção ideológica e social do camponês brasileiro como um ser/povo inferior vinham fortalecendo a estrutura e a economia capitalista dos grandes concentradores de terra do País, mas ainda não haviam, de maneira substancial, permitido a modernização-conversão capitalista das economias natural e camponesa não-capitalistas (crescentes em

número, levando em consideração às constantes subdivisões geracionais de terras por meio de heranças).

É possível, então, que nessas mesmas primeiras décadas do século XX, quando Chayanov apresentava os conceitos teórico-práticos que permitiam a autonomia e a resiliência da economia camponesa frente ao capitalismo18, representantes e promotores deste poder hegemônico – neste ponto muito bem caracterizados pela família estadunidense Rockefeller e sua Fundação difusionista dos interesses capitalistas em escala global – tenham apreendido o que bem descreve Martins45:

A propriedade familiar não é propriedade de quem explora o trabalho de outrem; é propriedade direta de instrumentos de trabalho por parte de quem trabalha. Não é propriedade capitalista; é propriedade do trabalhador. Seus resultados sociais são completamente distintos porque nesse caso a produção e reprodução das condições de vida dos trabalhadores não é regulada pela necessidade de lucro do capital, porque não se trata de capital no sentido capitalista da palavra. O trabalhador e lavrador não recebe lucro. Os seus ganhos são ganhos do seu trabalho e do trabalho de sua família e não ganhos de capital, exatamente porque esses ganhos não provêm da exploração de um capitalista sobre um trabalhador expropriado dos instrumentos de trabalho. Apenas quando o capital subordina o pequeno lavrador, controlando os mecanismos de financiamento e comercialização [...] é que sub-repticiamente as condições de existência do lavrador e sua família, suas necessidades e possibilidades econômicas e sociais começam a ser reguladas e controladas pelo capital, como se o próprio lavrador não fosse o proprietário da terra, como se fosse um assalariado do capitalista45.

Dessa maneira, uma solução efetiva para desestruturar e dominar a simultaneidade da vida e economia natural e camponesa, fazendo com que estas fossem atreladas e submetidas à economia capitalista, precisava ser colocada em prática de modo a corromper e alterar “por dentro” a autonomia do trabalho familiar em relação ao mercado e ao capital e produtos externos. Tal solução prática, que permitiria à ciência agrária capitalista desenvolver efetivamente seu papel colonial, ao passar a controlar e subjugar o trabalho e os conhecimentos camponeses, já vinha sendo realizada nos Estados Unidos. De lá, então, foi trazida e adaptada ao Brasil por Nelson Rockefeller, através da Associação Internacional Americana (AIA), a Extensão Rural46.

Sobre os primórdios em seu país de origem e sobre a importação da Extensão Rural para o Brasil, Fonseca46 relata que

Em 1914 o Governo Federal [dos Estados Unidos] encampou todas essas experiências, instituindo e oficializando o Trabalho Cooperativo de Extensão Rural, cuja finalidade era veicular, entre a população rural americana ausente dos Colégios Agrícolas, conhecimentos úteis e práticos relacionados à agricultura, pecuária e economia doméstica, para a adoção de modos mais eficientes na administração da propriedade rural e do lar.

[...] [A Extensão Rural] fornecia uma proposta teórico-metodológica para se conseguir, em menor prazo, que os habitantes de “áreas tradicionais ou subdesenvolvidas” modificassem seus comportamentos pela adoção de práticas consideradas cientificamente válidas para a solução de seus problemas e consequentemente o alcance do desenvolvimento econômico-social.

Convém lembrar mais uma vez que, nesta perspectiva, o desenvolvimento econômico-social é entendido como uma passagem da sociedade do tipo tradicional [...] para um tipo de sociedade onde predominam padrões de lucro, neutralidade afetiva, universalismo, especialização e soluções técnico- científicas para os problemas comuns.

[...] em 6 de dezembro de 1948 foi assinado um convênio entre o Governo do Estado de Minas Gerais e a Associação Internacional Americana, fundando a Associação de Crédito e Assistência Rural46[Grifos do autor].

Não por coincidência Nelson Rockefeller escolheu Minas Gerais para ser a experiência e a referência brasileira em extensão dos conhecimentos acadêmicos- científicos para o meio rural. As Escolas Agrícolas de Lavras e de Viçosa, após algumas décadas de existência, vinham não apenas (re)produzindo conhecimentos e técnicas alinhadas aos interesses do mercado e das empresas capitalistas, em especial as estadunidenses, como também vinham realizando experiências prévias de disseminação dessa ciência, por meio de exposições nacionais e da publicação e distribuição de revistas, livros e cartilhas agropecuárias43,44. Com o estabelecimento, então, neste Estado, da tríade pesquisa-ensino-extensão rural, a Associação de Crédito e Assistência Rural (ACAR – MG) pôde – sendo “uma instituição cuja prática tinha em

vista a difusão de produtos e métodos de cultivos exigidos pela chamada, na época, de “agricultura moderna”‟43

e contando, para isto, com todo aparato Estatal e empresarial capitalistas – dar início ao processo de introjeção, no modo de produção camponês, de artifícios de “melhoria e desenvolvimento” que desconsideravam e subjugavam suas técnicas e conhecimentos tradicionais e sua autoexploração equilibrada do trabalho

familiar. Assim, a extensão rural logrou atrelar, enfim, em grande parte, o trabalho e a economia camponesa à economia capitalista por meio do círculo vicioso da compra de tecnologia externa-crédito para pagar seus custos.

O desenrolar histórico da Extensão Rural no Brasil, apontado por Coelho43 e Klanovicz41, clareia como este componente prático de intrusão das teorias e técnicas da ciência capitalista, sob o discurso da modernização do inferiorizado camponês, completou a readequação das ferramentas de colonialidade, permitindo, para desenvolver sua desestruturação e submissão, o acesso do poder capitalista ao trabalho autorregulado e autônomo da produção camponesa familiar e também à seus conhecimentos:

...novas relações de mercado se estabeleceram, ligando os setores agrícola, financeiro e empresarial/industrial. O chamado Serviço de Extensão Rural tem na Acar uma referência institucional original e na Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (Abcar) de 1956, uma organização de abrangência nacional.

Em 1974, os militares transformaram essa estrutura organizacional, criando a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) e suas filiadas nos Estados (as Emateres). Como empresa estatal, essas organizações configuravam uma estrutura que viabilizou a criação de uma rede nacional com a qual as políticas públicas do regime militar intensificaram a modernização tecnológica no Brasil. Nesse contexto de modernização intensiva, ou seja, de busca de conexão do setor agrícola com o industrial e o financeiro, merece destaque também o surgimento da rede de lojas para venda de insumos, as chamadas “Casas da Lavoura” ou “Casa do Fazendeiro”.

[...] Em todos esses momentos, a ação dos profissionais das ciências agrárias pautou-se nos princípios da persuasão difusora da necessidade de consumo tecnológico. Essa perspectiva modernizante da base produtiva da agricultura alterou as relações de trabalho no campo, mas sem remover o latifúndio. Não fazia parte da formação desses profissionais a prática da análise crítica das condições políticas em disputa. Com o tempo, muitos extensionistas foram sendo contratados por grandes cooperativas ou abriram suas próprias lojas comerciais para venda de produtos agro-pecuários43.

Os “jecas” sucessivamente redefinidos por instituições de assistência técnica e extensão rural não passavam de agricultores coagidos pelo Estado a inserir suas propriedades na economia capitalista, transformar técnicas de produção e éticas de trabalho. Sua cultura com relação à natureza e à paisagem sofreriam interferências desse mesmo processo modernizador. Nesse processo, a ciência tinha papel fundamental como articuladora e unificadora do conhecimento técnico agropecuário e procedimentos rurais dos lavradores antigos. A ciência revestia-se de importância social na medida em que incorporava preocupações relativas ao analfabetismo, à saúde, à higiene [...]. Tais preocupações sociais

faziam com que a literatura burocrática fosse imbuída da missão de transformar hábitos individuais e comportamentos sociais “atrasados” em modernos41

. Dessa forma, a construção precedente e interconectada da “inferioridade camponesa” e do controle de seu trabalho e de sua subjetividade por meio da ciência- extensão rural capitalista formaram a estrutura (re)colonizadora em que se fundamentou uma nova revolução burguesa, comparável em potencial de dominação e alcance de ação global às Revoluções Francesa e Industrial. Neste sentido, esteve diretamente envolvida neste processo, desde o lançamento-nomeação oficial da Revolução Verde, em 196839, até sua difusão e concretização, nas décadas de 1960 e 70, a Fundação Rockfeller (uma vez mais não por coincidência) juntamente com outras instituições estadunidenses de disseminação dos interesses e estruturas capitalistas em escala global, como a Fundação Ford, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e o Banco Mundial39,47.

Autores e publicações propagadoras deste processo não mediram palavras para descrever e definir os componentes e a totalidade dessa revolução capitalista colonial contra o campesinato, inclusive, e em especial, para quem ainda não havia “se modernizado” ou para quem persistisse em manter sua forma tradicional de trabalho e relação com a terra e os demais elementos naturais que envolvem o cultivo de alimentos:

Four universal measures that revolutionized traditional agriculture and turned it