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Entendendo o Método Analético e a Salutogênese como referenciais para a edificação de processos sociais de emancipação/libertação por meio do autorreconhecimento e disponibilização de experiências, saberes e práticas (recursos) de camponeses e de suas comunidades e, consequentemente, por meio da autoconstrução de possibilidades e estruturas locais de tomada autônoma de decisão, fica claro que uma transição agroecológica não pode acontecer pela simples transmissão hierarquizada de práticas e tecnologias através das “vias clássicas” de assistência técnica e extensão rural, pesquisa e ações públicas que desvalorizam saberes tradicionais e não permitem o protagonismo camponês no processo. Nesse sentido, uma agroecologia organizada e potencialmente disseminável a “uma escala em

que muitas famílias mudem sua maneira de cultivar depende não tanto das práticas e tecnologias, mas sim da metodologia social e do processo social”76

. Neste sentido, não é, então, a transmissão de conhecimento técnico o fator limitante para a massificação de seu aspecto sanitário e descolonizador, mas sim a construção destes processos sociais horizontais76.

Torna-se fundamental, portanto, a busca e utilização de uma metodologia social, genuinamente camponesa, conformada por ferramentas que promovam a visibilização das experiências/recursos disponíveis e a disseminação horizontal de conhecimentos e inovações agroecológicas entre os próprios camponeses. Neste sentido, a Metodologia CaC apresenta instrumentos e tecnologias sociais necessários para desenvolver esse processo de transição agroecológica horizontal e autônomo e, consequentemente, promover a organização social, a saúde, e a descolonialidade do povo camponês10,11,77,78.

Tendo seus primeiros passos na América Latina sido dados, a partir de 1972, na Guatemala, a metodologia social CaC percorreu, entre as décadas de 1970 e 1990, diferentes caminhos, organizações e escalas nos campos do México, Honduras e Nicarágua11,78. Todavia, é em Cuba onde a CaC, desde sua implementação em 1997, vem obtendo seus resultados mais expressivos na conversão agroecológica e na sua disseminação. Em apenas 20 anos desde a implementação pela Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (ANAP), a CaC possibilitou que mais de 50,0% dos camponeses e camponesas cubanas passassem a produzir os alimentos que consomem e comercializam de maneira equilibrada com o ecossistema local e sem a necessidade de utilização de insumos externos, caros e nocivos à saúde e ao ambiente10,78. Por sua efetividade em disseminar a agroecologia comprovada, então, em comunidades e regiões rurais de diferentes países da América Latina e do mundo, a CaC é hoje identificada pela Via Campesina como “a melhor forma das famílias

camponesas desenvolverem e compartilharem suas próprias tecnologias e seus próprios sistemas de agricultura ecológica”68

.

Segundo a sistematização e as adaptações desenvolvidas pelo Movimento Agroecológico Camponês a Camponês (MACaC) promovido pela ANAP de Cuba, cinco princípios fundamentais guiam esse processo horizontal e participativo de implementação/transição e disseminação da agroecologia camponesa10 (Quadro 1):

Quadro 1. Princípios que guiam a metodologia CaC, segundo o MACaC da ANAP de Cuba10. Princípio 1 Começar devagar e em pequena escala

Este princípio facilita a avaliação, a reflexão e a retificação de erros, assim como diminui a magnitude dos possíveis riscos

Princípio 2 Limitar a introdução de tecnologias

Não é necessário introduzir muitas técnicas agroecológicas ao mesmo tempo. É mais rápido dominar uma a uma as inovações, consolidando-as e integrando-as pouco a pouco. Deve-se começar por aquelas técnicas que enfrentam e resolvem os maiores

problemas produtivos e que, ao mesmo tempo, têm os menores custos iniciais, são fáceis de realizar e levam de maneira mais rápida a um resultado

Princípio 3 Obter êxito rápido e identificável

O entusiasmo é gerador de novas ideias, e as vitórias obtidas são o estímulo mais eficaz. Este princípio busca ser o motor moral na construção e reconhecimento dos progressos do trabalho cotidiano

Princípio 4 Experimentar em pequena escala

Experimentar não é outra coisa senão pôr à prova, comprovar, adaptar e adotar, a partir das necessidades, uma nova técnica ou solução. Graças a este princípio, o camponês transforma-se em um ativo experimentador e inovador; e a propriedade, em permanente e rico laboratório. Permite comprovar as

tecnologias que servem ou não. Este princípio nos afasta, definitivamente, das receitas genéricas e dos pacotes tecnológicos planejados para todos e para todos os lugares. Proporciona segurança e confiança na tecnologia

Princípio 5 Desenvolver um efeito multiplicador

A multiplicação entre e pelos próprios camponeses dos resultados e experiências obtidas é a única forma de poder chegar à extensão e massificação deste sistema de produção. [...] Na medida em que os camponeses se transformam em

multiplicadores, adquirem mais destreza na produção e na comunicação. O ensino permite conhecer um tema em profundidade; grande parte deste ensino reside no exemplo vivo, comunicado de camponês a camponês

Já para seu desenvolvimento prático, a CaC dispõe de um arcabouço de métodos, composto por passos, atores, atividades e ferramentas/instrumentos10 (Quadros 2 e 3):

Quadro 2. Passos estruturantes da metodologia CaC, segundo o MACaC da ANAP de Cuba10.

Passo 1 Iniciando o caminho

Começa-se a metodologia nas roças com o diagnóstico rápido dos problemas-chave, para em seguida estabelecer prioridades e

identificar as melhorias que possam ser chaves para iniciar as mudanças

Passo 2 Intercâmbio de experiências

Realiza-se o intercâmbio de conhecimentos entre um grupo de camponeses e um promotor que, provavelmente, já tinha soluções para o problema daqueles, porque as experimentou em sua roça. Aqueles que estão com o problema começam a

experimentação em pequena escala, para comprovar se a técnica do promotor funciona também em suas próprias roças. Observam êxitos e estabelecem compromissos. São importantes a reciprocidade e a continuidade depois do intercâmbio

Passo 3 Ferramentas metodológicas

Capacitação para facilitadores e promotores. O conhecimento destas ferramentas permitirá utilizá-los em diferentes atividades: oficinas, intercâmbios, jornadas de capacitação e/ou visitas a roças de outros agricultores

Passo 4 Oficina sobre técnicas agroecológicas

Além das técnicas-chave, é necessário experimentar outras tecnologias para garantir que funcionem e deem bons resultados, até dispor de um maior espectro de tecnologias. Há alguns promotores que se animam a experimentar e inovar

Passo 5 Encontro para reforço geral

Faz-se uma revisão de todo o processo, a fim de analisar conquistas e dificuldades,

identificando as prioridades seguintes. Todos estes passos têm como eixos transversais a equidade de gênero, a agricultura sustentável e a segurança alimentar

Quadro 3. Atores, atividades e ferramentas da metodologia CaC, segundo o MACaC da ANAP de Cuba10.

Atores Atividades Ferramentas/Instrumentos

Camponeses e Camponesas

Assembleia de integrantes da organização camponesa

Demonstrações didáticas

(presenciais em roças ou por meios audiovisuais)

Promotor(a) agroecológico Oficinas de socialização de experiências e construção de novos conhecimentos

Exibição de produtos, sementes, matérias e inovações

Facilitador(a) da promoção e multiplicação agroecológica

Diagnóstico Rápido Participativo

Dinâmicas de apresentação, animação e avaliação

Coordenadores(as) locais,

municipais, estaduais e nacionais (dependendo a escala e estrutura de organização camponesa existente)

Visitas de trocas de saberes

Experiência de Banes

(identificação participativa de práticas agroecológicas existentes e

desejadas/necessárias) Parceiros

(instituições ou profissionais) Intercâmbios de vivências

Outras (representações teatrais, poesias, canções, desenhos, mapas, fotografias, audiovisuais etc.)

A construção de processos sociais agroecológicos por meio da CaC – que tem como origem e base conceitual-prática as concepções e métodos da educação popular de Paulo Freire11,79,80 – se dá, então, mediante a identificação e compartilhamento de saberes, conhecimentos e técnicas agroecológicas entre os próprios camponeses, sendo esta identificação e este compartilhamento viabilizados pela organização social entre as famílias das comunidades rurais de um território. Assim, a metodologia social CaC é capaz de promover a implementação e disseminação da agroecologia em pequenas e grandes escalas, através de princípios, passos e métodos que permitem o desenvolvimento do intercâmbio e do apoio mútuo entre camponeses.

Com relação ao seu potencial sanitário, a coerência da CaC com o conceito geral de Promoção da Saúde apresentado pela Carta de Ottawa53 e com os conceitos do paradigma Salutogênico de Promoção da Saúde pode ser claramente identificada

por meio da descrição desta metodologia apresentada pela Organização Não Governamental Pan Para el Mundo77:

A metodologia Camponês a Camponês é uma forma participativa de promoção e melhoramento dos sistemas produtivos camponeses, partindo do princípio de que a participação e o empoderamento são elementos intrínsecos no desenvolvimento sustentável, que se centra na iniciativa própria e no protagonismo das agricultoras e agricultores.

Dessa forma, podemos apontar a possibilidade de estruturação de uma metodologia analética de autorreconhecimento que se utilize dos métodos práticos disponibilizados pela CaC10 para desenvolver uma Promoção da Saúde Salutogênica com populações camponesas submetidas ao modelo tóxico de produção moderno/colonizador do agronegócio. Neste sentido, o potencial de descolonialidade do modo de vida e economia camponesa poderá ser desenvolvido, escutado, sistematizado e analisado por meio de métodos/instrumentos que operacionalizem: o entendimento do contexto de subjugação do modo de produção dos camponeses pela lógica colonial da Revolução Verde e, também, o entendimento das possibilidades, viabilidades e benefícios gerais (incluindo os sanitários) da agroecologia (Capacidade de Compreensão); a identificação dos recursos agroecológicos e demais experiências positivas existentes em suas propriedades e comunidades e a crença de que eles estão disponíveis para a realização da transição de modelos de produção (Capacidade de Manejo); e a motivação em querer utilizar e compartilhar seus próprios conhecimentos e práticas e em se organizar para a mudança e melhoria do contexto de vida, economia, produção e saúde de sua família e sua comunidade (Capacidade de Significação).