• Nenhum resultado encontrado

A FLEXIBILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

No Canadá, o princípio da legalidade não está escrito textualmente na Constituição. No entanto, o Estado de Direito (rule of law), previsto na Part I da Constituição canadense

152 Binenbojm, op. cit., p. 25. 153 Medauar, op. cit. p. 139-140. 154

Perlingeiro, 2016, op. cit. p. 23. 155 ibid., p. 27-28

(Act, 1982 ), é o fundamento dos tribunais superiores para exercerem o controle e a supervisão da Administração Pública. O Poder Executivo no Canadá não está acima do direito, e seus poderes são necessariamente limitados, como informa Braën158.

Tanto no direito britânico quanto no canadense, o monarca e o Estado não possuem nenhum poder arbitrário e só podem exercer aqueles que a lei ou a common law lhes atribui. Nestes países, o princípio da legalidade submete o monarca e sua administração aos tribunais ordinários de direito comum, cujo papel é aplicar o direito. O princípio da legalidade cria uma hierarquia entre os três poderes tradicionais exercidos pelo Estado Democrático, sujeitando, primeiro, o Poder Executivo ao Legislativo, que lhe delega os poderes, e, depois, aos tribunais ordinários encarregados de aplicar o direito159.

Dessa maneira, conclui Braën, o objeto do princípio da legalidade visa proteger melhor os direitos e as liberdades do indivíduo. A sujeição do Governo ao Estado de Direito o coloca livre de arbitrariedades e caprichos do monarca. No entanto, esse princípio sofre atenuações significativas, em razão do abandono do objeto do Estado de Direito pelo legislador, ao conferir ao Estado, ou à sua administração, poderes verdadeiramente exorbitantes160.

A modificação do Código Penal161 canadense é um exemplo disso. Sob pretexto de lutar contra a criminalidade, o Parlamento canadense alterou o Código para permitir que os policiais, por motivos razoáveis e justificáveis, usem a força necessária para combater o crime organizado162:

Protection of persons acting under authority

25 (1) Everyone who is required or authorized by law to do anything in the administration or enforcement of the law

(a) as a private person,

(b) as a peace officer or public officer,

(c) in aid of a peace officer or public officer, or (d) by virtue of his office,

is, if he acts on reasonable grounds, justified in doing what he is required or authorized to do and in using as much force as is necessary for that purpose.

157

Disponível em: < http://laws-lois.justice.gc.ca/PDF/CONST_E.pdf>. Acesso em: 10 fev 2017.

158BRAËN, André. L’exercice du pouvoir judiciaire au Canada et le gouvernement des juges. In: BREWER- CARÍAS, Allan R.; ALFONSO, Luciano Parejo; RODRÍGUEZ, Libardo Rodríguez (Coords.). La protección de

los derechos frente ao poder de la administración: libro homenaje al profesor Eduardo García de Enterría.

Caracas: Editorial Jurídica Venezolana, 2014. p. 517-531. 880 p. p. 525. 159 Braën, op. cit. p. 525.

160 ibid., p. 525. 161

Code Criminel, L.R.C., 1985, c.C-46, art. 25.1. Disponível em: <http://canlii.ca/t/69t06>. Acesso em: 10 fev 2017.

Outro exemplo foi a alteração da legislação sobre imigração . Depois dos atentados terroristas de 2001, nos EUA, a legislação sobre imigração no Canadá foi alterada para autorizar o Ministro da Cidadania e Imigração a emitir certificados de segurança.

Estes certificados permitiam às autoridades deter e prender, sem mandado e, portanto, sem processo, indivíduos julgados perigosos pela Segurança Nacional, que não fossem cidadãos canadenses, mas que se achassem em solo canadense. Eles eram detidos e presos ao bel prazer das autoridades, sem que sequer tivessem sido informados sobre os motivos da prisão.

Os residentes permanentes poderiam ser detidos e essa detenção deveria ser revista no prazo de quarenta e oito horas. No entanto, os estrangeiros seriam detidos automaticamente, sem direito a pedir qualquer revisão durante cento e vinte dias, após um juiz determinar que o certificado era razoável. Demais disso, esta decisão não era suscetível de recurso e o certificado tornava-se uma ordem de remoção a ser executada imediatamente.

Seria isso modernidade ou simples evolução do princípio?

Em 2007, a Suprema Corte do Canadá, ao julgar o caso Charkaoui v. Canada

(Citizenship and Immigration)164 relativo a estrangeiros nestas circunstâncias, analisou: i) o

procedimento para determinar a razoabilidade do certificado e da detenção; ii) a prisão de estrangeiros; iii) os períodos prolongados de detenção; iv) o tratamento diferenciado entre os cidadãos e não-cidadãos; v) o Estado de Direito; e vi) a constitucionalidade da lei de imigração.

Sobre o procedimento para determinar a razoabilidade do certificado e a revisão da detenção, a Suprema Corte decidiu que a legislação violava o direito à vida, à liberdade e à segurança do indivíduo. Entendeu que os procedimentos de exame de razoabilidade do certificado e de controle da detenção não garantiam uma audiência justa, como estabelecida pelo art. 7º da Constituição do Canadá de 1982165. Portanto, o Estado violava o direito do indivíduo a um processo justo.

Quanto à detenção de estrangeiros, a Suprema Corte decidiu que a detenção sem mandado não violava a garantia contra detenção arbitrária. No entanto, a falta de revisão da detenção por até cento e vinte dias, após a confirmação judicial da razoabilidade do certificado, infringia a garantia contra a detenção arbitrária, prevista no art. 9º da Constituição

163 Disponível em: <http://laws.justice.gc.ca/fra/lois/i-2.5/page-13.html#h-35>. Acesso em: 10 fev 2017.

164 Charkaoui v. Canada (Citizenship and Immigration), (2007) 1 R.C.S. 350. Disponível em: < https://scc- csc.lexum.com/scc-csc/scc-csc/en/item/2345/index.do>. Acesso em: 10 fev 2017.

165 Art. 7º , The Constitution Act, 1982: “Everyone has the right to life, liberty and security of the person and the right not to be deprived thereof except in accordance with the principles of fundamental justice.”

canadense . Essa garantia abrange o direito à rápida revisão da prisão, nos termos do art. 10 da Constituição167. A Corte considerou, ainda, que, embora pudesse haver uma certa flexibilidade quanto ao tempo de detenção, isso não poderia justificar a negação completa de uma revisão oportuna da detenção.

No que tange aos períodos prolongados de detenção, a Corte reputou que a prisão indefinida, sem esperança de libertação ou sem recurso num processo legal, poderia causar estresse psicológico e, portanto, violar a garantia de ausência de tratamento cruel e incomum. A pessoa deveria ter oportunidades significativas de se insurgir contra sua contínua detenção ou sobre as condições de sua liberdade.

Os longos períodos de prisão com vistas à expulsão, de acordo com as disposições do certificado de segurança, não violariam os arts. 7º e 12 da Constituição canadense, desde que acompanhado por um processo que proporcionasse oportunidades para revisão da detenção, levando em conta todos os fatores relevantes desta. Isso também não excluiria a possibilidade de um juiz concluir, em determinado momento, que a detenção era incompatível com os princípios da justiça fundamental, decidiu a Suprema Corte canadense.

Quanto ao tratamento diferenciado dispensado aos cidadãos e não-cidadãos, a Corte decidiu que o art. 6º da Constituição canadense168 prevê essa distinção, e que o regime de deportação existente no país não viola o art. 15 da Constituição169.

Por último, a Corte inferiu que o Estado de Direito não foi violado pela ausência de um recurso de revisão da decisão judicial que considerou o certificado de segurança razoável, nem pela expedição de mandado de prisão pelo Executivo, no caso de residente permanente, ou a ausência de mandado de prisão de um estrangeiro. Isso porque a Suprema Corte reputou não existir um Direito Constitucional a um recurso. Destarte, o Estado de Direito não proíbe a prisão automática, nem a prisão por ordem do Executivo.

Ante essas análises, a Corte Suprema considerou a lei de imigração incompatível com a Constituição do Canadá e a declarou sem efeito. Suspendeu a lei por um ano, até que o Legislativo elaborasse uma nova, com base nesta decisão.

166

“Art. 9º - Everyone has the right not to be arbitrarily detained or imprisoned.” 167 “Art. 10: Everyone has the right on arrest or detention

(a) to be informed promptly of the reasons therefor;

(b) to retain and instruct counsel without delay and to be informed of that right; and

(c) to have the validity of the detention determined by way of habeas corpus and to be released if the detention is not lawful.”

168 “Art. 6: (1) Every citizen of Canada has the right to enter, remain in and leave Canada.” 169

“Art. 15: (1) Every individual is equal before and under the law and has the right to the equal protection and equal benefit of the law without discrimination and, in particular, without discrimination based on race, national or ethnic origin, colour, religion, sex, age or mental or physical disability.”

O controle de legalidade de um ato ou de uma decisão administrativa no Canadá permite, à Corte Suprema, verificar se a Administração tem o poder de tomar aquela decisão ou de cumprir um ato. Em caso de resposta afirmativa, a Corte verifica se este poder da Administração Pública foi exercido de acordo com a lei e o direito.

Depois das alterações pelo Parlamento e considerando as exigências da segurança nacional, a Suprema Corte validou o processo atual de prisão e detenção no Canadá170.

Não é difícil concluir que o princípio da legalidade, atualmente, sofre mudanças consideráveis para permitir que o Executivo tenha poderes exorbitantes, ao argumento de segurança nacional e segredo de Estado entre outros.

Apesar das normas serem duras, prescritas por uma lei aprovada pelo Parlamento, os tribunais não têm outra escolha senão aplicá-las. Obviamente, é uma visão que vai contra as reais garantias que o Estado de Direito proporciona aos cidadãos. Na verdade, um Estado democrático deve garantir que a lei da maioria não impeça os direitos fundamentais das minorias171.

Conclui-se observando que a supremacia da Constituição é a característica mais importante do Estado Constitucional de Direito e o controle de constitucionalidade das leis, uma de suas expressões mais destacadas. Porém, com o advento do Direito Internacional dos direitos humanos, a partir da Segunda Grande Guerra, apareceram repercussões transcendentais nos Estados nacionais, que implicaram novas e completas relações motivadas, no âmbito interamericano, no surgimento da doutrina do controle de convencionalidade172. Abre-se agora uma nova perspectiva: o princípio da convencionalidade, como se verá adiante.

170 Braën, op. cit. p. 526. 171 ibid., p. 526.

172

MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. El control difuso de convencionalidade en el Estado constitucional. p. 158- 159. Disponível em < https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/6/2873/9.pdf>. Acesso em 21 abr 2017.

5 O PRINCÍPIO DA CONVENCIONALIDADE

O princípio da convencionalidade é uma revolução na teoria das fontes do Direito. Para sua compreensão, é necessário despir-se das bases dogmáticas arraigadas na ciência jurídica e derrubar mitos, como a supremacia exclusiva da Constituição, conforme aconselha Jinesta173. O autor esclarece ainda que o princípio da convencionalidade faz parte dos desafios da dogmática do Direito Administrativo constitucional moderno, que compreende o estudo da supremacia não só da lei, mas do princípio da legalidade e do princípio da convencionalidade contido nos convênios, declarações e protocolos em matéria de direitos humanos174.

Se constitucionalidade pode ser definida como a qualidade ou estado do que é constitucional175, convencionalidade é a qualidade do que é convencional176. Enquanto o controle de constitucionalidade permite verificar se a lei está em conformidade ou não com as normas da Constituição, o controle de convencionalidade examina se a lei está de acordo com os tratados e as convenções internacionais de países signatários. A convencionalidade é a manifestação da denominada constitucionalização do Direito Internacional177.

Convencionalidade é, portanto, um mecanismo para aplicação de leis internacionais de direitos humanos, a nível mundial. Por isso, as autoridades e órgãos de um país signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH possuem a obrigação de exercer o

173 Jinestra, 2016, op. cit. p. 2.

174 JINESTA, Ernesto. Principio general de la justiciabilidad plenária y universal de la conducta administrativa. In: BREWER-CARÍAS, Allan R.; ALFONSO, Luciano Parejo; RODRÍGUEZ, Libardo Rodríguez (Coords.). La

protección de los derechos frente ao poder de la administración: libro homenaje al profesor Eduardo García de

Enterría. Caracas: Editorial Jurídica Venezolana, 2014. p. 607-634. 880 p. p. 634.

175 Houaiss Dicionário. Disponível em https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-0/html/index.htm#1. Acesso em 15 abr 2017.

176

Houaiss Dicionário. Disponível em https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-0/html/index.htm#2. Acesso em 15 abr 2017.

177 GAMBOA, Jaime Orlando Santofimio. Convencionalidad y responsabilidade del Estado. In: BREWER- CARÍAS, Allan R.; ALFONSO, Luciano Parejo; RODRÍGUEZ, Libardo Rodríguez (Coords.). La protección de

los derechos frente ao poder de la administración: libro homenaje al profesor Eduardo García de Enterría.

controle de convencionalidade . É uma técnica tanto de integração como de concretização da garantia dos direitos dos administrados. A integração implica o desenvolvimento da responsabilidade da Administração Pública, que encontra suas bases no respeito às garantias e direitos reconhecidos no ordenamento jurídico internacional, na proteção do Direito Internacional humanitário e no próprio direito das pessoas, com vistas à proteção dos direitos humanos. Assim, há interação entre as construções normativas e jurisprudenciais de cada um desses órgãos179.

Esta nova doutrina é o segredo para o cumprimento do dever que as autoridades administrativas têm de proteção dos direitos fundamentais, ainda que seja necessário superar leis inconstitucionais180.

O Estado Constitucional de Direito é uma fase superior do Estado Legal de Direito, surgido após a Segunda Grande Guerra. Jinesta181 põe em relevo o Estado Convencional de Direito, por ser aceito pacificamente por aplicação do princípio da cláusula mais favorável ou do princípio pro libertate ou pro homine, em que prevalece um limiar de tutela superior aos administrados.

É interessante examinar o princípio da convencionalidade pelo seu controle, ou seja, pela observação da compatibilidade das normas internas às normas constantes dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo país membro182.