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A VISÃO MODERNA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Embora a Administração Pública esteja submetida à legalidade e ao sentido de segurança e limitação do poder, o princípio da legalidade evoluiu. Não se admite mais uma legalidade formal ou um legalismo infrene, manifestado através do excessivo formalismo dos decretos, circulares e portarias, com exigências de pormenores irrelevantes, como ressalta Medauar116.

As mudanças implementadas no princípio da legalidade decorreram das transformações advindas da nova conformação do Estado Democrático de Direito117. A ideia moderna de constitucionalização do Direito Administrativo, o levou à adoção do “sistema de direitos fundamentais” e do “sistema democrático”118, que passaram a orientar a atuação da Administração Pública.

O despontar do Estado Constitucional de Direito superou o “Estado legal de Direito”, em que os poderes públicos estavam submetidos somente ao império da lei, no sentido material e formal, e que invocava o princípio da legalidade ou a presunção de legalidade dos atos administrativos, segundo Jinesta119.

O Estado Constitucional de Direito surgiu com a queda do mito rousseauniano de infalibilidade do legislador ordinário120. Se a lei, por sua superioridade moral, era tida como expressão da justiça na Revolução Francesa121, as falhas do legislador ordinário foram atestadas pelos Tribunais Constitucionais, ao exerceram o controle de constitucionalidade das leis122. A crise da lei formal se deu pela observância apenas do procedimento prescrito para sua edição, sem se importar com seu conteúdo, sua politização e sua proliferação desmedida123.

116 Medauar, op. cit. p. 139. 117

Binenbojm, op. cit. p. 6. 118

ibid., p. 7.

119 Jinesta, op. cit. p. 103. 120 ibid., op. cit. p. 104. 121

Baptista, op. cit. p. 98-99. 122 Jinesta, op. cit. p. 104. 123 Baptista, op. cit. p. 98-99.

O princípio da supremacia da Constituição e a necessidade de que as atuações administrativas se conformem substancialmente ao parâmetro de constitucionalidade serviram de alicerce ao Estado Constitucional de Direito124.

Assim, a obrigação da Administração Pública de se submeter ao Direito Constitucional produziu uma mudança positiva no princípio da legalidade, que, modernamente, deve ser entendido num sentido mais amplo. Deve-se falar agora em “bloco de legitimidade” da atuação administrativa, que inclui as dimensões de legalidade e de constitucionalidade. As possibilidades de defesa e garantia dos administrados cresceram imensamente com o surgimento do Estado Constitucional de Direito e do enriquecimento do bloco de legitimidade da atuação administrativa125.

Essa constitucionalização do Direito Administrativo releva a dignidade da pessoa humana como centro do sistema do Direito Administrativo126; e sobreleva o princípio da legalidade para acima e para além da lei. Por conseguinte, desmantela o “arcabouço dogmático do velho direito administrativo”127

.

Nessa linha de raciocínio, Baptista128 afirma que:

Da condição de súdito, de mero sujeito subordinado à Administração, o administrado foi elevado à condição de cidadão. Essa nova posição do indivíduo, amparada no desenvolvimento do discurso dos direitos fundamentais, demandou a alteração do papel tradicional da Administração Pública. Direcionada para o respeito à dignidade da pessoa humana, a Administração, constitucionalizada, vê-se compelida a abandonar o modelo autoritário de gestão da coisa pública para se transformar em um centro de captação e ordenação dos múltiplos interesses existentes no substrato social.

Deste modo, propõe-se a desconstrução dos velhos paradigmas e a proposição de novos, tendo a tessitura constitucional129 como diretriz normativa legitimadora da nova categoria. É indispensável entender que as atuações da Administração Pública estão alicerçadas na Constituição, que é o estatuto básico do sistema de direitos fundamentais e da democracia130.

O próprio princípio da separação de poderes, no Estado Democrático, deve ser visto, modernamente, como uma divisão de funções especializadas, reciprocamente controladas,

124

Jinesta, op. cit. p. 104. 125

ibid., p.104. 126 ibid., p. 106.

127 Binebjom, op. cit. p. 7. 128

Baptista, op. cit. p. 129-130. 129 Binenbojm, op. cit. p. 8. 130 Binenbojm, op. cit., p. 7.

fiscalizadas e coordenadas entre os Poderes Públicos . Portanto, é indispensável a especialização técnico-funcional de cada um deles, com distribuição adequada de tarefas e responsabilidades entre a Administração, o Judiciário e o Legislativo132.

Isso evitaria uma inconveniente “judicialização administrativa”133, que apenas redireciona os processos do Judiciário para a Administração Pública, sem, no entanto, diminuir o número de processos em andamento.

A Administração Pública não é mais uma mera executora de normas heterônomas, como originariamente se tinha na separação de poderes, mas fonte de normas autônomas, que têm origem nela própria134. A desmedida edição de normas acabou por suplantar a tradicional proeminência da lei135. Esse enfraquecimento da lei formal, que foi privada de várias características que justificassem a subordinação estrita da Administração à sua execução, impôs a necessidade de revisão do princípio da legalidade administrativa, quanto à vinculação positiva à lei136. Demais disso, evidenciou o fracasso do liberalismo, que via na Administração Pública uma simples cumpridora da lei. A clássica visão do princípio da legalidade, em que administrar é só fazer o que a lei autoriza, não mais se adequa à realidade atual137.

Por outro lado, a adoção da teoria de vinculação negativa da Administração à lei, em que se pode fazer tudo o que a lei não vede, não resolve o problema. Quando a lei passa a ser apenas o limite externo da atuação administrativa, abre para o administrador um campo muito largo de liberdade, à margem da legalidade138.

Em razão disso, a visão moderna do princípio da legalidade não é atrelada à vinculação positiva à lei, mas à vinculação da Administração Pública ao Direito, com submissão plena à lei e ao Direito, como dispõe o art. 103.1 da Constituição espanhola139. O

131 Binenbojm, op. cit. p. 17. 132 ibdi., p. 49.

133 ibdi., p. 18. 134

Enterría, op.cit. p. 444. 135 Binenbojm, op. cit. p. 14. 136 Baptista, op. cit. p. 100 137

ibdi., p. 107. 138

ibid., p. 107.

139 “Artículo 103.1 - La Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la ley y al Derecho.”

Disponível em <https://www.boe.es/legislacion/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf> . Acesso em 09 abr 2017.

princípio da legalidade adquire, assim, conteúdo de juridicidade . Por esta razão, não mais a lei, mas a Constituição passa a ser a essência da vinculação administrativa à juridicidade141.

A Corte Suprema de Justiça da Costa Rica, no Voto nº 3410-92, indicou o seguinte, a respeito do princípio da legalidade142:

El principio de legalidad (...) significa que los actos y comportamientos de la Administración deben estar regulados por norma escrita, lo que significa, desde luego, el sometimiento a la Constitución y a la ley, preferentemente, y en general a todas las normas del ordenamiento jurídico – reglamentos ejecutivos y autónomos, especialmente -; o sea, en última instancia, a lo que se conoce como el “principio de juridicidad de la Administración” (...).

É certo que a legalidade, como vinculação positiva à lei, não pode ser totalmente descartada. Há matérias que, constitucionalmente, estão submetidas ao princípio da reserva da lei143. Exemplo disso, na Constituição brasileira, é o inciso X do art. 37, quando dispõe que a remuneração dos servidores públicos só pode ser alterada por lei específica. Outros indicativos seriam o inciso XIX do art. 37, quanto à criação de autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista e fundação, e as limitações ao poder de tributar do Estado, constantes do art. 150.

Nesta nova visão do princípio da legalidade, o regime jurídico administrativo é composto pela Constituição, pelos princípios constitucionais e pelos direitos fundamentais. O afastamento do princípio da legalidade administrativa só pode ocorrer com o deslocamento da lei pela Constituição, essência da vinculação administrativa à juridicidade144.

Esse entendimento suplantou o outro de imprescindibilidade da lei para mediação entre a Constituição e a Administração Pública. O administrador não necessita mais de uma lei para efetivar as normas constitucionais, pois a Constituição é o primeiro fundamento de sua atuação administrativa. A juridicidade administrativa é a vinculação direta da Administração Pública à Constituição145. “A reserva vertical da lei foi substituída por uma reserva vertical da Constituição”146

.

140 Baptista, op. cit. p. 108.

141 Binenbojm, op. cit. p. 7. 142

Disponível em:

<http://www.asamblea.go.cr/sd/Reglamento_Asamblea/RAL%202014/Resoluciones%20Sala/3410-92.pdf>. Acesso em: 01 mai 2017.

143 Baptista, op. cit. p. 110. 144

Binenbojm, op. cit. p. 14. 145 Binenbojm, op. cit. p. 14-16. 146 Canotilho, 2003, p. 836.

Destarte, surge a “Constituição administrativa” que, emancipada da lei, consagra princípios e regras capazes de vincular diretamente a Administração Pública a ela, com dispensa da formulação de leis para tanto. A Constituição deixa de ser um “programa político genérico”, à espera de efetivação pelo legislador, e passa a ser compreendida como “norma diretamente habilitadora da competência administrativa e como critério imediato de fundamentação e legitimação da decisão administrativa”147

.

A juridicidade administrativa, que surge em virtude da interpretação dos princípios e regras constitucionais, incorpora a legalidade como um de seus princípios internos, mas sem a supremacia que tinha no passado148.

No entanto, Binenbojm149 aponta que a atividade administrativa continua a se realizar i) segundo a lei, se esta for constitucional (atividade secundum legem); ii) com fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem); ou, eventualmente, iii) legitima-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém fundada na ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento na Constituição).

Os poderes e deveres da Administração passam a serem traçados a partir dos contornos constitucionais apropriados, com especial ênfase nos direitos fundamentais e no regime democrático, valores centrais do Estado Democrático de Direito. Supera-se a onipotência da lei administrativa que é substituída pelos princípios, expressa ou implicitamente, consagrados na Constituição150, a fim de se evitar os riscos da normatização burocrática.

A constitucionalização do Direito Administrativo, ao converter a legalidade em juridicidade administrativa, não tem mais somente a lei como fundamento da Administração Pública. A lei passa a ser um dos aspectos da juridicidade, juntamente com a Constituição e o sistema dos direitos fundamentais. Além disso, a juridicidade administrativa, delimitada pela Constituição e pela lei, é conjugada com a interpretação e ponderação dos administradores públicos e dos juízes151.

As atuações da Administração Pública, apoiadas e limitadas em regras e princípios constitucionais, dispensam a mediação do legislador. Princípios constitucionais ponderados com a legalidade validam as atuações da Administração em matéria não sujeita à reserva da

147 Binenbojm, op. cit. p. 15. 148 ibid., p. 15.

149

ibid., p. 15. 150 ibid., p. 15. 151 ibid., p. 24-30.

lei e quando esta for o fundamento básico do ato administrativo. A Administração Pública, assim, poderá atuar sem prévia autorização legislativa, como defende Binenbojm152.

A concepção moderna do princípio da legalidade não submete as atividades da Administração Pública apenas à lei votada pelo Legislativo, mas também aos preceitos fundamentais, à observância dos direitos fundamentais e aos princípios constitucionais, que orientam todo o ordenamento de um Estado Democrático de Direito153.

O princípio da legalidade, associado à preponderância dos direitos fundamentais e ao princípio de subordinação hierárquica, sujeita as funções administrativas ao controle de legalidade154. Por sua vez, as decisões administrativas estão sujeitas ao controle judicial, no que se refere ao princípio da proporcionalidade e à observância dos direitos fundamentais. Deste modo, o juiz pode e deve interferir no poder discricionário da autoridade, para verificar se os direitos fundamentais foram respeitados e se há legalidade e proporcionalidade na decisão administrativa, eximindo-se do controle do conteúdo da decisão155.

É bem verdade que, nas questões técnicas em que o juiz não está qualificado, não há como exercer o controle. No entanto, o só exame da conformidade da decisão administrativa com os direitos fundamentais é o bastante para justificar a interferência judicial.

A discricionariedade, portanto, sob o ponto de vista da juridicidade administrativa, não é mais um campo de escolhas subjetivas do administrador, mas sim de escolhas fundamentadas na lei e na Constituição. O Direito Administrativo Constitucional ocasionou a incidência direta dos princípios constitucionais sobre os atos administrativos que não estão diretamente vinculados à lei. A autoridade administrativa, em vista disso, só pode atuar com fundamento no Direito. Não há mais nenhuma margem discricionária imune à incidência dos princípios constitucionais156.