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6.1 MODELOS COMPARADOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

6.1.1 O MODELO AUSTRALIANO

Ao comparar os dois métodos de revisão em três jurisdições: Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, Cane266 alerta para o conceito de revisão de mérito que tem um sentido técnico extremamente complexo, desenvolvido no direito australiano, e que, fora da Austrália, existe pouca literatura sobre a natureza da revisão não-judicial.

Na Austrália, entretanto, os tribunais administrativos são instituições essencialmente distintas dos tribunais de justiça, além de executarem funções fundamentalmente diferenciadas267, o que não ocorre no Reino Unido e nos EUA.

O direito constitucional australiano é uma combinação complexa de elementos britânicos e americanos. No entanto, os tribunais administrativos e as cortes de justiças australianas não pertencem ao mesmo gênero da justiça administrativa, tal como ocorre no Reino Unido e nos EUA. Nestes países, os modelos de tribunais administrativos são instituições diferentes, porém do mesmo gênero268. Tal ocorre porque há uma distinta interpretação da separação de poderes.

O Executivo e o Legislativo australianos estão integrados da mesma forma como ocorre no Reino Unido. No entanto, a Constituição Federal australiana estabelece um sistema de governo responsável, em que os ministros de Estado têm de ser membros do Parlamento, como se vê no § 64 da Constitution of Commonwealth of Australia. Por esta razão, a Suprema Corte australiana firmou entendimento de que a delegação do poder legislativo, para o executivo, é coerente com a Constituição.

Todavia, o Supremo Tribunal australiano também decidiu que deve haver uma separação estrita do Poder Judiciário, não apenas para proteger os direitos individuais, mas também para preservação dos Estados que compõem a Federação. Segundo Cane269, muito mais do que no Reino Unido e EUA, a separação e independência do Poder Judiciário são considerados essenciais para o Estado de Direito na Austrália.

266 Cane, 2012, op. cit. p. 426. 267

ibid., p. 427.

268 Cane, 2009, op. cit. p. 82-83. 269 ibid., p. 58.

Pelo princípio dominante de demarcação , apenas os tribunais de justiça podem exercer o Poder Judiciário. Além do mais, os tribunais de justiça não podem exercer funções não-judiciais, com exceção daquelas que lhe são próprias.

O modelo de tribunal administrativo australiano é de um órgão de jurisdição independente, que faz a revisão das decisões tomadas pelo Executivo que tenham limitado ou subtraído direitos dos cidadãos271.

Essa independência foi conquistada após diversos casos de disputas entre contribuintes e Fazenda Federal, em matéria de direito tributário, nos anos 20. De início, os contribuintes poderiam escolher entre questionar as determinações do Commissioner of Taxation (Comissãrio de Impostos) perante o Tribunal de Justiça ou perante o Taxation Board of

Appeal (Conselho de Recurso de Tributação), que não era um tribunal de justiça, mas sim

uma corte administrativa272.

Por diversas vezes, o Supremo Tribunal australiano decidiu que seria inconstitucional conceder poder judicial à Comissão de Recurso, órgão não-judicial. Porém, a legislação sofreu modificações para substituir a Comissão de Recurso pela nova Comissão de Revisão, que passou a ter todos os poderes e funções de um órgão judicial, embora estivesse exercendo poderes não-judiciais273.

Com isso, as disputas em matéria de direito tributário possibilitaram a utilização de tribunais não-judiciais, devidamente investidos de validade, para julgar esses casos. O grande envolvimento do Governo na vida econômica e social, no início do século XX, aliado a uma falta de disposição em aumentar a estrutura do Judiciário, com a criação de novos tribunais, fez com que o reconhecimento da constitucionalidade de regimes para a justiça administrativa não judicial se tornasse uma realidade274.

O Comitê Kerr de 1971 foi estabelecido para considerar a proposta de um novo tribunal federal que avaliasse as decisões administrativas. Suas recomendações levaram à criação do Tribunal Federal da Austrália e aprovação da Lei das Decisões Administrativas (revisão judicial), ambos em 1976. O Comitê também concluiu que, se a revisão judicial se preocupava apenas com a legalidade das decisões administrativas, havia necessidade de ser complementada com disposições para a revisão de decisões baseada no mérito275.

270

Expressão cunhada no julgamento do Caso New South Wales vs. The Commonwealth (the ‘Wheat case’) (1915) 20 CLR 54, 90 (Isaacs J), como anota Cane, 2012, op. cit. p. 427.

271 Cane, 2012, op. cit. p. 427. 272 ibid., p. 428.

273

Cane, 2009, op. cit. p. 58. 274 Cane, 2012, op. cit. p. 428. 275 ibid., p. 428.

Para o Comitê, a revisão de mérito das decisões administrativas iria envolver o poder não-judicial. Ademais, a função da revisão de mérito não poderia ser conferida a um órgão judicial. Por isso, o Comitê recomendou a criação de um tribunal de recursos geral não- judicial, que teria o poder de revisão de mérito de uma variedade de decisões administrativas276.

Assim, nasceu uma nova função decisória: a revisão de mérito que, por ser uma função não-judicial, deveria ser entendida como uma categoria diferente da revisão judicial277.

O modelo adotado para o tribunal administrativo geral, nomeado de Administrative

Appeals Tribunal (AAT), Tribunal de Recursos Administrativos, foi o mesmo do Conselho

Tributário de Revisão, aprovado pela Suprema Corte australiana e pelo English Privy

Conuncil278 cinquenta anos antes279.

Em revisão, o AAT poderia homologar, modificar uma decisão ou desprezá-la. Na hipótese de desprezá-la, o AAT poderia tomar uma decisão substituta ou devolvê-la a quem havia decidido anteriormente para que a reconsiderasse280.

A partir desse entendimento, o AAT e o Tribunal Federal desenvolveram um conceito complexo de revisão de mérito, com discriminação das funções principais do AAT e de outros tribunais administrativos federais que, por exemplo, julgassem matéria de imigração e seguridade social281.

Segundo Cane282, o AAT exerce uma mistura de jurisdição de primeira e de segunda instância, em relação às revisões de mérito. A primeira envolve a revisão de decisões burocráticas e a segunda, a revisão do mérito das decisões dos tribunais de primeira instância. Assim, as decisões do AAT podem sofrer recurso para o Tribunal Federal sobre uma questão de lei federal e o AAT está sujeito à revisão judicial pelo Tribunal Federal.

Na Austrália283, a autoridade administrativa profere a decisão inicial. A reconsideração é feita por um tribunal284 administrativo independente, que promove uma audiência adversarial, como se fosse um julgamento, em que prevalece o contraditório.

276

Cane, 2012, op. cit., p. 428-429. 277 ibid., p. 429.

278 Corpo de Conselheiros do Monarca britânico. 279

Cane, 2012, op. cit. p. 429. 280

ibid., p. 429. 281 ibid., p. 429. 282 ibid., p. 429. 283

Asimow, op. cit. p. 8-10.

284 Asimow usa o termo “tribunal” para se referir a um órgão administrativo, independente da agência que proferiu a decisão inicial, mas que não é uma corte judicial.

Com relação ao Judiciário, não há especialização, ou seja, não trata somente de casos de Direito Administrativo. A revisão judicial é limitada (closed judicial review), pois o juiz tem amplo poder de decisão sobre questões de direito, mas poder limitado no que diz respeito à revisão dos fatos. No sistema de closed review, as partes não podem introduzir novas evidências, nem novas razões ou novos argumentos, após a decisão inicial. Os elementos considerados se estabilizam na decisão inicial ou na fase de reconsideração285.