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Princípios norteadores da administração pública: uma visão moderna

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO JUSTIÇA ADMINISTRATIVA – PPGJA. MÔNICA VENTURA ROSA. PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA VISÃO MODERNA. Niterói 2017.

(2) MÔNICA VENTURA ROSA. PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA VISÃO MODERNA. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Justiça Administrativa da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Justiça Administrativa.. Orientador: Prof. Dr. RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA. Niterói 2017.

(3) MÔNICA VENTURA ROSA. PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA VISÃO MODERNA. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Justiça Administrativa da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Justiça Administrativa.. Aprovada em maio de 2017.. BANCA EXAMINADORA. Prof. Dr. RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA – Orientador UFF Prof. Dr. FÁBIO SOUZA SILVA UFRJ. Prof. Dr. MARCUS ABRAHAM UERJ. Niterói 2017.

(4) AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Ricardo Perlingeiro por ter me ajudado na compreensão de que o Direito Administrativo é uma ciência de afirmação da cidadania e de preservação dos direitos humanos. Aos Professores Doutores Fábio Souza e Marcus Abraham que dispuseram de precioso tempo e dedicação para integrarem a banca examinadora. A todos os professores do PPGJA da UFF que demonstraram que o mundo pode ser bem melhor. À Leoná Rodrigues, servidora do PPGJA, pelas prontas respostas às minhas indagações administrativas, sempre com um sorriso no rosto. Aos meus colegas de turma que se tornaram verdadeiros amigos ao longo da jornada. À Professora Doutora Maria Luiza de Castro da Silva pelas incansáveis horas de leitura, crítica e debate que levaram ao aprimoramento deste trabalho. Luz que me guiou pelas veredas trilhadas..

(5) La historia del derecho administrativo se resume en la lucha dialéctica entre autoridade y liberdad, entre poder y derechos. - Massimo Severo Giannini.

(6) RESUMO. A Administração Pública precisa ser reestruturada para aplicar os princípios que a norteiam na resolução dos conflitos com os cidadãos, o que levará à diminuição da quantidade excessiva de processos judiciais que a envolvem. A nova concepção do princípio da legalidade, no sentido de juridicidade administrativa, é, sem dúvida, uma tendência atual que precisa ser atendida pela Administração Pública, ao exercer a função executiva típica. Por outro lado, o princípio da convencionalidade, baseado na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é de substancial importância para resguardar os direitos fundamentais. Ambos, analisados sob uma visão hodierna, podem apontar caminhos seguros para a reestruturação e legítima independência da Administração Pública. A implementação desses princípios acontecerá, efetivamente, quando a Administração Pública atingir um grau de liberdade tal que lhe garanta a autonomia de ação. Assim, o cidadão ao procurar a autoridade administrativa para reivindicar seus direitos terá, de pronto, a solução de seus questionamentos. Uma das formas de se pensar a reestruturação da Administração Pública é analisar a configuração do modelo nacional, tendo como ponto de partida o cotejo com modelos internacionais de jurisdição administrativa.. Palavras-chave: Administração Pública. Legalidade. Juridicidade. Convencionalidade. Modelos. Jurisdição administrativa. Direitos fundamentais. Direitos humanos..

(7) ABSTRACT. Administrative authorities need to be restructured to apply the principles that guide it in resolving conflicts with citizens, which will lead to a reduction in the excessive number of lawsuits involving it. The new conception of the principle of legality, in the sense of administrative juridicity, is undoubtedly a current trend that needs to be addressed by the administrative authority, when exercising the typical executive function. On the other hand, the principle of conventionality, based on the jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights, is of substantial importance in safeguarding fundamental rights. Both, analyzed under a modern vision, can point out safe routes for the restructuring and legitimate independence of the administrative authority. The implementation of these principles will happen, effectively, when the administrative authority reaches a degree of freedom that guarantees the autonomy of action. Thus, the citizen, in seeking the administrative authority to claim his rights, will, obtain at once, the solution for his questions. One way to think about the restructuring of administrative authorities is to analyze the configuration of the national model, in contrast with other international models of administrative jurisdiction.. Keywords: Administrative authorities. Legality. Juridicity. Conventionality. Models. Administrative adjudication. Fundamental rights. Human rights..

(8) SUMÁRIO. 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SEUS PERCALÇOS ....................... 3 A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS...................................................... 4 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ........................................................... 4.1 A VISÃO MODERNA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ............... 4.2 A FLEXIBILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ................ 5 O PRINCÍPIO DA CONVENCIONALIDADE ......................................... 5.1 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ..................................... 5.1.1 EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ........ 5.1.2 EFETIVAÇÃO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ..... 5.1.2.1 A importância da jurisprudência da Corte Interamericana ................ 5.1.2.2 Obrigação de toda autoridade pública ............................................... 5.1.2.3 Efetivação ex officio .......................................................................... 5.1.2.4 Controle difuso de convencionalidade ............................................... 5.1.2.5 Controle de supraconstitucionalidade ................................................ 5.2 TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL .... 6 OS PRINCÍPIOS E A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ........................... 6.1 MODELOS COMPARADOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS...... 6.1.1 O MODELO AUSTRALIANO ............................................................ 6.1.2 O MODELO AMERICANO ................................................................ 6.1.3 O MODELO DA UNIÃO EUROPEIA ................................................ 6.1.4 O MODELO BRITÂNICO .................................................................. 6.1.5 O MODELO FRANCÊS ...................................................................... 6.1.6 O MODELO BRASILEIRO ................................................................. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 8 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 9 ANEXOS ..................................................................................................... 8 15 19 24 35 40 45 46 49 50 52 54 57 57 65 67 70 71 73 76 77 78 82 86 94 98 104.

(9) 1 INTRODUÇÃO. Atualmente, contam-se no Brasil 206 milhões de habitantes1 e 74 milhões de processos judiciais em andamento2, o que indica que para cada grupo de cem habitantes, há trinta e seis processos pendentes. No primeiro semestre de 20163, a pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) que deu origem ao Relatório ICJBrasil (Índice de Confiança na Justiça no Brasil), considerou que, com o surgimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2005, houve alguns avanços na produção e publicação de dados sobre o Judiciário brasileiro, sendo exemplo disso o anuário Justiça em Números do CNJ. No entanto, este Relatório ressalta que as informações disponibilizadas não mostram dados objetivos sobre a confiança da população no Judiciário em termos de eficiência, imparcialidade e honestidade, nem são adequadas para indicar os motivos pelos quais o cidadão utiliza o Judiciário para solucionar os conflitos. Contudo, a FGV, a partir desses dados, criou o Índice de Confiança na Justiça no Brasil – ICJBrasil e o aplicou na pesquisa feita entre maio e junho de 2016, com fins de retratar a confiança da população no Poder Judiciário4. O resultado dessa pesquisa apontou o seguinte5: a instituição mais confiável para os cidadãos são as Forças Armadas, com 59% dos entrevistados. A segunda é a Igreja Católica, com 57%, seguida pela Imprensa Escrita (37%), Ministério Público (36%), Grandes Empresas 1. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2016/estimativa_dou_2016_20160913.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2016. 2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2016: ano-base 2015/Conselho Nacional de Justiça Brasília: CNJ, 2016. Disponível em < http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>. Acesso em 27 nov. 2016. 3 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Escola de Direito de São Paulo. Disponível em: <http://direitosp.fgv.br/publicacoes/icj-brasil>. Acesso em: 27 nov. 2016. 4 Retratar a confiança, segundo o Relatório ICJBrasil, é identificar se o cidadão acredita que o Judiciário cumpre sua função com qualidade, de modo que os benefícios de sua atuação sejam maiores que os custos e se a instituição é considerada no dia-a-dia da população4. Relatório ICJBrasil, op. cit. p. 3. 5 FGV, op. cit. p. 15..

(10) 9 (34%) e Emissoras de TV (33%). Quanto ao Judiciário, 29% dos entrevistados o consideraram uma instituição confiável. Embora o Judiciário tenha ficado em sétimo lugar na pesquisa, atrás até mesmo das Emissoras de TV, superou a Presidência da República (11%), o Congresso Nacional (10%) e os Partidos Políticos (7%). Em outra pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil, em junho de 20156, para avaliar o grau de credibilidade de catorze instituições, o Judiciário ficou em quarto lugar, com 55% de entrevistados que afirmaram confiar na instituição. A Presidência da República e os Ministérios ficaram em décimo segundo lugar, com 19% de entrevistados, na frente apenas, e mais uma vez, do Congresso Nacional (15%) e dos Partidos Políticos (7%). Pelos resultados apontados, vislumbra-se que, dos três Poderes da República, o Judiciário é o que mais desfruta da confiança do cidadão, embora não seja a instituição mais confiável dentre todas. Goza de maior confiabilidade do que a Administração Pública que, no que lhe diz respeito, só supera o Legislativo e os Partidos Políticos. Essa, talvez, seja uma das razões pelas quais o Poder Judiciário está tão assoberbado de processos. O Estado Democrático Contemporâneo, proclamado pela Constituição Federal de 1988, tem, dentre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana como ícone maior. Esta nova ordem jurídico-social assegurou o acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), o contraditório e a ampla defesa, (art. 5º, LV, CF), e a razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF). Tais garantias foram conferidas tanto ao processo judicial quanto ao processo administrativo. No entanto, apesar de terem passado vinte e oito anos da promulgação da nova Carta Política, ainda estamos consolidando o Estado de Direito. O número de processos em tramitação no Poder Judiciário cresce a cada ano: em 2013, havia 66,7 milhões7 de processos pendentes e, em 2015, 74 milhões8. Por sua vez, o Poder Público é um dos grandes responsáveis pela exorbitante quantidade de processos em. 6. DATAFOLHA Instituto de Pesquisas. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wpcontent/uploads/sites/41/2015/07/Apresenta%C3%A7%C3%A3o1-ref-e-conf.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2016. 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números: 2014 (ano base 2013). Brasília: CNJ, 2014. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros>. Acesso em: 27 nov. 2016. 8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2016: ano base 2015. Brasília, CNJ, 2016. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros>. Acesso em: 27 nov. 2016..

(11) 10 andamento. Só de execuções fiscais, há 28,9 milhões de processos em andamento, que representam 39% do total de casos pendentes9. Por esses números, percebe-se que o maior problema são as execuções fiscais10, que chegam ao Judiciário depois de tentativas fracassadas de recuperação do crédito tributário pela via administrativa. Na fase judicial, chegam dívidas antigas e de difícil recuperação, em que se repetem as tentativas de localização do devedor, já realizadas pela autoridade administrativa. O resultado é apenas o acúmulo de processos judiciais sem solução. Na verdade, embora os atos administrativos sejam dotados de autoexecutoriedade e dispensem a busca do Judiciário para execução das decisões administrativas, o que se vê diariamente é o contrário, com o aforamento das execuções fiscais. As decisões administrativas são executadas pelo Judiciário, que deveria ser instado apenas para proteger os abusos cometidos nas execuções11. Essa é uma das razões que fazem a Administração Pública ser a maior litigante judicial, com 39% dos casos pendentes, como apontado no relatório do CNJ12. Conquanto, no Judiciário como um todo, tenha ocorrido um aumento no total de processos pendentes, o mesmo não se pode dizer em relação à Justiça Federal, que apresentou, no período de 2012 a 2015, uma queda de 21% de execuções fiscais novas. No entanto, a Justiça Federal continua assoberbada, devido ao total de processos baixados, cujo percentual de queda foi de apenas 6,1%13. A alta taxa de congestionamento impossibilita dados mais confortáveis. Medidas anteriores foram tomadas, mas não surtiram o efeito esperado. Exemplo disso foi a reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, que alterou o Código de Processo Civil de 1973 para incluir recursos repetitivos, repercussão geral e julgamento por amostragem, nas instâncias especial e extraordinária. Tudo com vistas a aliviar a sobrecarga de processos em andamento no Poder Judiciário e cumprir o princípio constitucional da razoável duração do processo14. Constatou-se, ainda, que dispêndios com infraestrutura e recursos humanos, que somaram R$ 79,2 bilhões em 2015, não solucionaram esta sobrecarga. No quinquênio de 2011 a 2015 houve um aumento médio de 3,8% ao ano nas despesas, equivalentes a 1,3% do 9. CNJ, op. cit., 2016. Justiça em números, 2016, op. cit.. 11 PERLINGEIRO, Ricardo. O devido processo legal administrativo e a tutela judicial efetiva: um novo olhar? In: Revista de Processo, vol. 239/2015, p. 293-331, jan. 2015. p. 3 12 Justiça em números, 2016, op. cit. 13 ibid., 2016. 14 Perlingeiro, op. cit., p. 2. 10.

(12) 11 Produto Interno Bruto (PIB) do país15, mas nem assim houve diminuição de processos em andamento. Em 2011, havia 64,4 milhões de processos pendentes e em 2015, 74 milhões16. A explosão de processos judiciais tem uma razão de ser, principalmente quando se trata da Administração Pública. Há um momento em que o conflito se estabelece e, por não ser adequadamente encaminhado, gera um processo judicial. Este nó górdio surge exatamente quando o particular se dirige à autoridade administrativa para resolver seu problema e, ao invés de lhe ser oferecida uma solução adequada, o servidor o encaminha ao Judiciário, seja por medo de sofrer ação de improbidade administrativa, seja por incompetência para solucioná-lo17. A bem da verdade, o primeiro contato que o particular tem com a Administração Pública é no balcão da repartição. De lá, ele pode sair convencido de que seu direito está resguardado ou foi violado. Este primeiro contato é o mais importante de todos, porque dele dependerá a instauração ou não de um processo administrativo ou judicial18. É neste momento que a incompreensão e a indignação tomam conta do particular, que paga seus impostos em dia ou contribui durante anos para a Previdência Social, mas ainda assim terá que procurar o Judiciário para solucionar, às vezes, uma questão muito simples. A Administração Pública, ao encaminhar os cidadãos ao Judiciário, por não aplicar a moderna concepção do princípio da legalidade, contribui para o excessivo número de processos judiciais19. Ademais, aumenta as demandas contra ela própria. Se a autoridade administrativa resolver os conflitos tão logo chegue ao seu conhecimento, não haverá tantos processos judiciais em andamento. Ou seja, não se estará sobrecarregando nem a Administração Pública de processos nem o Judiciário, além de o conflito ser decidido em prazo razoável. De nada adiantará o redirecionamento de processos do Judiciário para a Administração Pública, se não houver diminuição considerável deles, ainda que haja condições e infraestrutura compatíveis para que os processos passem a ser exclusivamente administrativos (extrajudiciais). Corre-se o risco de esvaziarmos o Judiciário e assoberbarmos a Administração Pública de processos administrativos, sem, no entanto, resolvermos a questão da alta litigiosidade.. 15. CNJ, op. cit., 2016. ibid., 2016. 17 Perlingeiro, op. cit., p. 3. 18 ibid., 2015, p. 3. 19 Perlingeiro, op. cit. p. 3. 16.

(13) 12 O quadro é desanimador para quem pretende resolver, com a rapidez necessária, o conflito que lhe angustia. O que precisa ser implementado? O que leva a autoridade administrativa à inércia na solução adequada dos conflitos, a partir do momento que tem conhecimento dela? Como tornar a Administração Pública autônoma e eficiente para solucionar os conflitos com os interessados? O que falta e o que há em excesso na autoridade administrativa para que remeta a questão ao Judiciário? A bem da verdade, o cidadão tem suas expectativas frustradas por perceber que a solução adequada a seus conflitos só vai acontecer (ou não) depois de longo tempo dos fatos consolidados. Desta forma, o princípio maior de dignidade da pessoa humana é atingido em cheio. Importa ressaltar que não estamos nos referindo ao mero requerimento administrativo, com vistas a obter a documentação necessária à aposentadoria, por exemplo, em que a disputa só se inaugura depois de uma decisão denegatória que cause prejuízo ao administrado. Estamos nos referindo à etapa posterior, quando o benefício ou serviço é negado pela autoridade administrativa, sem maiores esclarecimentos ou fundamentos20. O exercício da função primária, da atividade executiva pela Administração Pública pode ditar os caminhos seguintes a serem trilhados: se o particular irá aceitar as justificativas dadas ou se irá demandar em face da autoridade pública. A ausência de uniformidade das decisões administrativas, a excessiva legalidade estrita e formal são alguns exemplos do que precisa ser modificado para solução adequada do conflito, ainda na fase da função primária da autoridade21. Mas, como isso se daria? Não se pode relegar a segundo plano ou omitir o fato de que a Constituição Federal de 88 impôs um processo administrativo não judicial, com as mesmas garantias do processo judicial, na conformidade dos incisos LIV e LV do art. 5º. Ou seja, estabeleceu uma jurisdição administrativa, num sistema de jurisdição judicial única, seguindo o modelo norteamericano22. É, portanto, indispensável que se implemente um novo modelo de solução de conflitos para a Administração Pública. Ressalta-se, assim, a necessidade de se refletir sobre os obstáculos que impossibilitam a solução do conflito entre cidadão e Administração Pública, sem a instauração de processo, 20. Perlingeiro, op. cit. p. 4. PERLINGEIRO, Ricardo. Contemporary challenges in Latin American administrative justice. In: BRICS law jornal, v. III, 2016, Issue 2. 56 p. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2836912>. Acesso em: 15 set. 2016. p. 44. 22 id., 2015, p. 3-4. 21.

(14) 13 seja administrativo ou judicial. O objetivo é contribuir com investigações que permitam o alcance de uma Administração Pública independente, capaz de fortalecer o Estado de Direito e de aliviar a sobrecarga de processos do Judiciário. A investigação deste trabalho está alicerçada no estudo de dois princípios que norteiam a Administração Pública e dos modelos de jurisdição administrativa mundiais já existentes. Urge refletir sobre os fatores que poderão evitar a distribuição de processos novos na instância administrativa, pois é nesta etapa que o particular decide se litigará ou não. Apesar de apresentarmos os conceitos e descrevermos as diferenças terminológicas de algumas expressões ao longo do trabalho, gostaríamos de esclarecer alguns significados de antemão. O “processo” aqui mencionado é aquele instaurado de ofício pela autoridade administrativa, no intento de limitar um direito individual. Por sua vez, “justiça administrativa” designa o órgão jurisdicional destinado ao julgamento dos litígios de direito público ou de interesse da Administração Pública23. “Função administrativa primária” se refere à atividade executiva exercida pela autoridade administrativa e, “função secundária”, àquela de resolução de conflitos entre os particulares e a Administração Pública. A análise proposta neste trabalho é pensar sobre questões que apontem para a eficiência da Administração Pública, no exercício de suas funções primárias ou nas decisões dos processos administrativos, quando exercem suas funções secundárias, com vistas a alcançar uma justiça administrativa que fortaleça o Estado de Direito, além de reordenar os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente com a realidade. Dentre os princípios que informam o direito administrativo, analisaremos neste trabalho tão somente os princípios da legalidade e da convencionalidade, com um leve pincelar sobre a necessidade de independência da Administração Pública para efetivação deles. Sem desprezarmos os demais, consideramos que estes são essenciais para nortearem a boa administração pública e, se bem aplicados, podem evitam o surgimento de processos. Para tanto, recorreremos a estudos realizados por Eduardo Garcia de Enterría24, Hartmut Maurer25, Michel Fromont26, Ernesto Jinesta27 e André Braën28 para uma abordagem. 23. Esta definição foi utilizada no Edital para o Programa de Mestrado em Justiça Administrativa da UFF – PPGJA/UFF, 2015. 24 ENTERRÍA, Eduardo García de. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de direito administrativo I; revisor técnico Carlos Ari Sundfeld; tradutor José Alberto Froes Cal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 815 p. 25 MAURER, Hartmut. Derecho administrativo alemán. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2012. 537 p. 26 FROMONT, Michel. Droit administratif des États européens. Paris: Presses Universitaires de France, 2006. 362 p..

(15) 14 moderna desses princípios, alicerce da construção deste trabalho, além da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A comparação entre os modelos de jurisdição administrativa e seus sistemas judiciais (único ou dualista) será auxiliar para que se possa refletir sobre um modelo que atenda às especificidades do Brasil. Nesse sentido, recorreremos aos estudos de Peter Cane29 e Michael Asimow30. Objetivando ter uma amplitude de visão, recorreremos às pesquisas de Ada Pellegrini Grinover, Ricardo Perlingeiro e Odete Medauar na elaboração do Código Modelo de Processos Administrativos – Judicial e Extrajudicial – para a Ibero-América, por reconhecermos que seus estudos são fundamentais para a análise proposta31.. 27. JINESTA, Ernesto. Control de convencionalidad difuso ejercido por las jurisdicciones constitucional y contencioso-administrativa. In: Revista Peruana de Derecho Público, 2016, No. 31, julio-diciembre, 2015, pp. 47 y ss. Disponível em < http://www.ernestojinesta.com>. Acesso em 02 nov. 2016. 44 p. 28 BRAËN, André. L’exercice du pouvoir judiciaire au Canada et le gouvernement des juges. In: BREWERCARÍAS, Allan R.; ALFONSO, Luciano Parejo; RODRÍGUEZ, Libardo Rodríguez (Coords.) La protección de los derechos frente al poder de la administración: libro homenaje al profesor Eduardo García de Enterría. Caracas: Editorial Jurídica Venezolana, 2014, p. 517-531. 880 p. 29 CANE, Peter. Administrative tribunals and adjudication. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2009. EBook. ISBN 978-1-84731-752-0. Disponível em < https://ler.amazon.com.br/?asin=B00U3RJ3BM>. Acesso em 9 nov. 2016. 285 p. 30 ASIMOW, Michael. Five Models of Administrative Adjudication. American Journal of Comparative Law, 2015. v. 63. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2502210>. Acesso em 02 nov. 2016. 32 p. 31 GRINOVER, Ada Pellegrini; Perlingeiro, Ricardo e Medauar, Odete. O Código Modelo de Processos Administrativos (judicial e extrajudicial) para Ibero-América. São Paulo: Revista de Processo, vol. 221, p. 177, 2013. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=2286225>. Acesso em 19 jun. 2016. 28 p..

(16) 2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SEUS PERCALÇOS. Antes de ingressarmos na pragmática da linguagem do Direito, propomos o diálogo com outras áreas do saber, a fim de utilizar os recursos da interdisciplinaridade para por em foco o verdadeiro objetivo de nossa análise: o homem frente aos impasses com a Administração Pública. Franz Kafka, autor de O Processo, lido por quem ingressa no campo do Direito, apresenta um conto e uma parábola muito sugestivos para o desenrolar das reflexões a serem desenvolvidas. O conto O Abutre32 narra a estória de um abutre que dava grandes bicadas nos pés do personagem, a ponto de dilacerar-lhe os sapatos, as meias e penetrar em sua carne. Volta e meia, o abutre esvoaçava à volta do protagonista e regressava ao trabalho de tortura. Um senhor que passava viu a cena e perguntou ao homem como ele podia aguentar tamanha violência, ao que o protagonista lhe respondeu que estava sem defesa; que apesar de tentar lutar, estrangular o abutre, ele era forte; que para evitar que o bicho lhe saltasse à cara, preferiu sacrificar os pés, que, naquela altura, já estavam despedaçados. O senhor propôs-lhe dar um tiro no abutre e terminar com o sofrimento. O protagonista inicialmente titubeou, mas, depois de tanta dor, acabou por concordar e o senhor saiu às pressas para buscar a espingarda. No entanto, o abutre havia escutado toda conversa e, sem mais reservas, bateu suas asas, tomou impulso e enfiou o bico pela boca do protagonista até o profundo de seu ser. Ao cair ao chão, o homem ficou aliviado em sentir que o abutre se engolfava impiedosamente em seu sangue. Se fizermos a leitura da parábola como se o abutre fosse a Administração Pública, não ficaríamos muito longe da realidade vivida hoje no Brasil. Furiosa na arrecadação, na dilaceração dos “pés” do cidadão, membro do corpo que dá autonomia e permite a locomoção, a Administração Pública brasileira ainda submete o particular a situações de indignidade, de arbitrariedade e à violação de seus direitos e garantias: seja por não prezar a 32. KAFKA, Franz. O abutre. In: Essencial Franz Kafka. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2011. 297 p. p. 141-146..

(17) 16. juridicidade administrativa, seja por não resolver em tempo razoável as ansiedades postas em seu balcão. Na resolução de conflitos, muitas vezes nega o direito ao cidadão, através de uma interpretação literal da lei. A dignidade da pessoa humana é um elemento que limita e direciona a atuação da Administração Pública. Assim, o “Estado de Direitos e Justiça”33 conclama, definitivamente, os bens e valores próprios da natureza da pessoa e que devem se apresentar como lei essencial do Estado. Manifesta, de modo singular, que os princípios e valores declarados na Constituição têm qualidade de norma jurídica34. Guerrón35 lembra que a expressão “Estado de Direitos e Justiça” não se limita somente a um enunciado de direitos, mas invoca os princípios que devem guiar a conduta da autoridade pública, precisamente porque a justiça é uma virtude. Portanto, reconhecer a dignidade da pessoa humana é saber que o dever máximo do Estado consiste em respeitar os direitos fundamentais, que se traduz num conceito marcadamente humanista: o bem da pessoa é o fim do Estado, de tal modo que desaparece a nebulosa ideia de “interesse geral” baseada na conveniência política, para dar lugar à noção de interesse geral assentada nas exigências da pessoa e da boa vida humana. É o que se vê ilustrado na parábola Diante da Lei36, também de Kafka, em que o sujeito está diante da porta e não consegue ter acesso à Lei. Ou seja, tem a garantia formal estabelecida no regramento jurídico, mas não consegue alcançar os direitos que lhe são concedidos pela própria Lei. Esta parábola narra a estória de um homem do campo que busca a Lei e se defronta com um guarda no portão de entrada, que não lhe autoriza a passagem, dizendo-lhe que o acesso só poderá acontecer mais tarde. No entanto, o homem insiste e se curva para ver o que há lá dentro. Nota que o trajeto é muito difícil. Pensa que a Lei deveria ser acessível a toda gente. Mas, ao olhar o forte guarda, nem ao menos consegue atravessar o primeiro portão. Decide se sujeitar às determinações do guarda e esperar. Senta-se numa banqueta perto da. 33. Expressão que consta do art. 1º da Constituição da República do Equador, de 2008: “Art. 1.- El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada.” 34 GUERRÓN, Juan Carlos Benalcázar. Principios constitucionales que gobiernan la administración pública. In: BREWER-CARÍAS, Allan R.; ALFONSO, Luciano Parejo; RODRÍGUEZ, Libardo Rodríguez (Coords.). La protección de los derechos frente ao poder de la administración: libro homenaje al profesor Eduardo García de Enterría. Caracas: Editorial Jurídica Venezolana, 2014. p. 235-251. 880 p. p. 237. 35 ibid., 236-237. 36 KAFKA, Franz. Diante da lei. In: Essencial Franz Kafka. Trad.Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2011. 297 p. p. 101-108..

(18) 17. porta e ali fica dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e as suas súplicas acabam cansando o guarda. Por sua vez, o guarda lhe faz pequenos interrogatórios, perguntando-lhe sobre a pátria e outras coisas, perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, e mantém o homem do campo do lado de fora. Quando já está prestes a morrer, dirige-se ao guarda, colocando-lhe uma questão intrigante: “Se todos aspiram à Lei (...) como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar? ” A resposta é evidentemente constrangedora: “Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”. Além de o conto apontar para a impenetrabilidade do significado da Lei para o homem simples, percebe-se também que demonstra o acesso formal à Lei, ou seja, os direitos e garantias lhe estão assegurados, mas são impossíveis de serem alcançados. Nem mesmo o interrogatório o leva a conhecer a Lei. Nem mesmo o guarda tem noção do que seja a Lei, porque ele se apresenta como um mero cumpridor de ordens. A parábola reflete a burocracia e o tempo de espera do homem diante da busca de seus direitos, daquilo que já existe no papel, mas não foi incorporado à sua realidade. Reflete a espera infinita por uma solução que, provavelmente, significa toda sua vida. Os direitos não constituem uma concessão graciosa da Constituição Federal, mas tem seu fundamento na natureza humana. A dignidade da pessoa humana é o critério infalível para definir, reconhecer e descobrir direitos. Os direitos obrigam toda autoridade pública porque a pessoa é a causa material e eficiente do Estado37. É o que está previsto no art. 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH:. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.. Assim sendo, a leitura dos textos de Kafka leva-nos à reflexão da importância de repensarmos a atuação da Administração Pública, diante dos entraves que ela própria apresenta para o cidadão. As opções feitas por este trabalho foram encaminhadas no sentido de ponderar sobre os princípios norteadores e os seus instrumentos de aplicação, visando abrir brechas para o entendimento dos nós que impedem um poder administrativo justo e eficaz.. 37. Guerrón, op. cit. p. 237..

(19) 18. Nos capítulos que se seguem, analisaremos dois princípios essenciais da Administração Pública que poderão auxiliar em sua autonomia e eficiência, sob a ótica do moderno Direito Administrativo..

(20) 3 A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS. Princípios do direito são técnicas do mundo jurídico e não apenas parâmetros morais ou boas intenções ou vagas ou imprecisas orientações, como afirma García de Enterría. Somente um sistema de princípios pode estabelecer os conteúdos necessários à justiça38. Segundo Ávila39,. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.. No Direito Administrativo, os princípios são fundamentais porque, além de ser um direito de elaboração recente, não codificado, os princípios auxiliam na compreensão e na consolidação de seus institutos40. Ademais, possibilitam a solução de casos não previstos, por permitir um melhor entendimento das normas existentes e que não estão agrupadas sistematicamente, pois, muitas vezes, foram editadas devido a circunstâncias momentâneas. Com isso, confere-se certa segurança aos cidadãos, no que diz respeito à dimensão de seus direitos e deveres41. Se a Administração Pública está, em grande parte, alicerçada nas competências discricionárias, que pressupõem uma liberdade em relação à lei, o sistema de princípios é inevitável para que essa liberdade não se traduza em arbitrariedade42. O Direito Administrativo, como sistema, surgiu da obra jurisprudencial do Conselho de Estado francês, que aplicou, com aperfeiçoamentos constantes, técnicas principiológicas para. 38. Enterría, op. cit. p. 99-101. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11. ed. revista. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. 195 p. p. 78-79. 40 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 17. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 489 p. p. 138. 41 ibid., p. 138. 42 Enterría, op. cit. p.102. 39.

(21) 20. solucionar questões de justiça apresentadas pelos inevitáveis conflitos entre a Administração e os cidadãos. Assim, o Direito Administrativo foi, desde o início, na França, uma exposição dos critérios jurisprudenciais do Conselho de Estado, e não uma sistematização das leis administrativas43. Atualmente, está superada a crença em uma legalização completa e fechada do Direito, que provém do Iluminismo e das técnicas legislativas da Revolução Francesa44. Nos países onde não havia um tribunal com a qualidade do francês, o Direito Administrativo foi consolidado pelas obras dos juristas, que adotaram o modelo francês inicialmente. Depois, os juristas persuadiram o legislador a definir uma justiça administrativa, que não estava prevista no nascedouro da Revolução Francesa45. O Direito Administrativo foi, portanto, erigido necessariamente sobre um sistema de princípios gerais de Direito, que não só supria as fontes escritas, como também dava a elas um sentido e está à frente de toda interpretação. O sistema, ainda hoje, constitui-se de princípios técnicos, que se desenvolvem e se aperfeiçoam através de casos concretos, e é obra da jurisprudência e da doutrina, que atua em recíproca inter-relação. A Administração está submetida não somente à lei, mas também ao direito, e o seu poder deve ser exercido de acordo com as exigências dos princípios46. Diante dos riscos do enfraquecimento da lei formal e da multiplicação dos ordenamentos administrativos setoriais, propôs-se a constitucionalização do Direito Administrativo47. Não o constitucionalismo do modelo positivista da jurisprudência dos conceitos, nem daquele oriundo da jurisprudência dos valores. Mas, sim, o novo constitucionalismo com seu fundamento de validade nos princípios48. No que se refere aos conceitos, Esser já afirmava em 1961, que49: (...) el petrificado sistema doctrinal con su lógica de conceptos, se revela cada vez con mayor claridad como un obstáculo para la moderna jurisprudencia, enfrentada con la discusión de problemas éticojurídicos y con la necesidad de formular princípios.. 43. Enterría, op. cit., p. 103. ibid., p. 103. 45 ibid., p. 103. 46 ibid., p. 104. 47 BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador: Instituto Brasileiro de Ireito Público, n. 13, março/abril/maio, 2008. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 07 mar. 2017. p. 14. 48 BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 388 p. p. 84. 49 ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad. Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961. 498 p. p. 9. 44.

(22) 21. Os princípios constitucionais têm um caráter mais efetivo que os valores constitucionais. Os princípios completam, concretizam e desenvolvem progressivamente os valores constitucionais. Por esta razão, os princípios gerais do Direito Constitucional têm uma maior densidade ou maior intensidade normativa que os valores constitucionais, facilitando sua aplicação para resolver os conflitos entre a Administração Pública e os cidadãos50. São verdadeiros postulados obrigatórios que regulam a atividade da autoridade pública, que racionalizam e moralizam o exercício do poder51. Uma das funções dos princípios gerais é evitar lacunas no sistema jurídico, ao complementá-lo e integrá-lo, a fim de impedir a denegação da justiça em certos casos52. A Ley General de la Administración Pública da Costa Rica53 prescreve, em seu art. 7º, § 1º, que os princípios gerais servem para integrar o ordenamento jurídico escrito, ante uma lacuna, obscuridade ou insuficiência normativa. Os princípios são ferramentas úteis para garantir e tutelar os direitos humanos e os direitos fundamentais das pessoas ou suas situações jurídicas substanciais, inclusive de configuração infraconstitucional54. As constituições concebidas depois da Segunda Grande Guerra, em 1945, reinseriram o discurso de valores no Direito, sem, no entanto, promover um retorno puro e simples ao jusnaturalismo clássico. Na verdade, o Direito, quando pautado unicamente sobre valores, apresenta tantas dificuldades de fundamentação e legitimação quanto as teses puramente positivistas55 . Habermas criticou a concepção da Constituição como ordem de valores, ao afirmar que o Tribunal Constitucional Federal alemão havia se deixado conduzir pela ideia de realização de valores materiais, transformando-se numa instância autoritária.56 Em razão disso, o novo constitucionalismo afastou-se do modelo positivista dos conceitos e do modelo de valores, e foi buscar seu fundamento de validade nos princípios57. 50. JINESTA, Ernesto. Principios constitucionales que rigen a las Administraciones Públicas. In: El Derecho Administrativo en Iberoamérica (En Homenaje al profesor Mariano Brito), Tomo I, México, EspressUniversidad Panamericana, 2015. Disponível em: <www.ernestojinesta.com>. Acesso em: 05 abr. 2017. 51 Guerrón, op. cit. p. 235. 52 Jinesta, op. cit. p. 6. 53 PERLINGEIRO, Ricardo et al. Procedimento administrativo e processo administrativo latino-americanos: compilação de leis nacionais. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Escola da Magistratura Regional Federal. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro: EMARF, 2017. 1822 p. p. 684. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2911697>. Acesso em: 09 abr. 2017. 54 Jinesta, op. cit. p. 6. 55 Baptista, op. cit. p. 83. 56 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. vol. I, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 356 p. 2 v. v. 1. p. 321. 57 Baptista, op. cit. p. 84..

(23) 22. Os princípios são “núcleos de condensação de valores” 58, que somente incorporam aqueles eleitos através de processos históricos ou racionais, encontrados, explícita ou implicitamente, dentro do próprio ordenamento.. Assim, os princípios permitem a introdução de um. fundamento ético-moral no Direito, o elemento jusnaturalista, sem comprometer seu sistema positivista59. O Direito Administrativo não deixou de ser atingido por esse novo constitucionalismo de princípios. A Administração Pública foi submetida aos princípios e, por conseguinte, aos valores, incorporados à Constituição. Além dos princípios contemplados no art. 37 da Constituição Federal de 1988, a Administração está sujeita a outros princípios, como o da razoabilidade e da motivação dos atos administrativos60. A supremacia da Constituição, portanto, influencia profundamente a atividade administrativa por seus princípios e regras. O bloco de constitucionalidade - e, em particular, os princípios constitucionais - se erigiu como um vigoroso limite de atuação da Administração Pública61. A constitucionalização do Direito Administrativo supõe a convergência entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, de modo que se fala, atualmente, em “Direito Administrativo Constitucional” ou de um “Direito Administrativo de inspiração constitucional”, no sentido de um “Direito Administrativo como Direito Constitucional concretizado”, no dizer de Jinesta62. A Lei Fundamental de Bonn, promulgada em 23 de maio de 1949, adotou esse conceito em seu art. 20.3: “O Poder Legislativo está submetido à ordem constitucional; os poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei e ao Direito”. Com esta vinculação ao Direito não contido na lei, García de Enterría entende que se exteriorizou o abandono do positivismo legalista, deixando transparecer a vinculação geral da Administração às normas63. O estudo do impacto do parâmetro de constitucionalidade - e, mais especificamente, dos princípios gerais do Direito Constitucional sobre as atuações administrativas - foi uma das tarefas dogmáticas indispensável na construção do Direito Administrativo Constitucional64.. 58. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Almedina, 1991. 310 p. p. 84. 59 Baptista, op. cit. p. 84-85. 60 ibid., p. 90. 61 Jinesta, op. cit. p. 105. 62 ibid., p. 105. 63 Enterría, op. cit. p. 449. 64 Jinesta, op. cit. p. 105..

(24) 23. A breve exposição anterior pretendeu realizar uma síntese do processo de construção dos princípios, com objetivo de ressaltar a importância destes para o Direito Administrativo. Dentre tantos princípios constitucionais que permeiam a Administração Pública, neste trabalho analisaremos tão somente o princípio da legalidade e o princípio da convencionalidade, através de uma visão moderna. Pretendemos, com isso, verificar o quanto eles podem auxiliar a construir um modelo de resolução de conflitos entre a Administração e o cidadão para o Brasil..

(25) 4 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE O princípio da legalidade é a pedra angular do Direito Administrativo65. Na Constituição Federal de 1988, esse princípio está inserido no preceito geral de Estado Democrático de Direito (art. 1º), figura entre as garantias fundamentais (inciso II do art., 5º) e consta do capítulo que trata da Administração Pública (art. 37). Sua aparição se deu no Bill of Rights de 1689, formulado em decorrência da Revolução Gloriosa, ocorrida no Reino Unido entre 1688 e 1689. Naquela Declaração de Direitos, o império da lei foi estabelecido, ao se excluir a possibilidade de o rei suspender as leis ou seu cumprimento, e afirmou-se a supremacia do Parlamento66. Em consequência, tanto o monarca quanto os tribunais se tornaram simples órgãos de aplicação da lei. O Parlamento britânico foi consolidado como suprema instituição política e a lei alçada à primeira fonte do ordenamento jurídico67. O princípio da legalidade surgiu, então, como resultado da luta política que revelou o triunfo do Parlamento britânico sobre as demais instituições políticas, que não foram suprimidas, mas tão somente sobrepostas. Este processo foi totalmente diferente daquele que se desenrolou na Europa após a Revolução Francesa68. O modelo político britânico e a noção jurídica do equilíbrio institucional, formulada por Montesquieu no seu L’Esprit des Lois, difundiram-se na Europa como principal base inspiradora do pensamento político liberal. Em decorrência, Montesquieu identificou três modelos de governo: i) o despotismo, em que somente um governa com ausência de lei ou regras e tudo depende de sua vontade e de seus caprichos; ii) a monarquia, cujo governo é de apenas um, mas sujeito às leis; e iii) a república, em que o povo tem o poder soberano. A base do despotismo é o arbítrio, e o fundamento tanto da monarquia quanto da república é a 65. Baptista, op. cit. p. 94. Otero, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. 2a reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2003, 1192 p. p. 45-46. 67 ibid., p. 46. 68 ibid., p. 46. 66.

(26) 25. legalidade. O Estado despótico, portanto, embora tenha conhecimento das leis, se caracteriza pela ausência de um verdadeiro princípio da legalidade69. Montesquieu adotou um conceito material de lei e generalizou-a como um instrumento de certeza e de liberdade. Segundo Otero, Montesquieu partiu do entendimento de que a liberdade consiste no direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem. Logo, a liberdade só existe dentro da lei e por via da lei. Em consequência, a associação entre liberdade e legalidade configuraria uma verdadeira liberdade normativa70. Demais disso, Otero aponta que Montesquieu considerou que a liberdade política existe apenas nos governos moderados, sendo necessário, no entanto, a existência de limites aos titulares do poder. Por conseguinte, a única forma de impedir o abuso de poder seria através da criação de um modelo, em que o poder limitasse ou travasse o próprio poder. Desse modo, tomando por base a Constituição Inglesa, Montesquieu formulou o dogma da separação de poderes: i) o Poder Legislativo faz, corrige e ab-roga as leis; ii) o Poder Executivo do Estado executa as leis; e iii) o Poder Judiciário detém o poder de julgar71. Em L’Esprit des Lois, Montesquieu apontou para o fato de que seria nulo o poder judicial para efeitos políticos, não obstante a separação dos poderes e a aplicação da ideia de que só o poder pode limitar o poder. Montesquieu entendia que os juízes se limitavam a ser “a boca que pronuncia as palavras da lei”72. A bem da verdade, a doutrina do princípio monárquico, em que o monarca era o chefe do Executivo, pretendeu legitimar uma liberdade autônoma na organização e no funcionamento da Administração Pública. Assim, a Administração seria liberada da dependência da lei, exigida pelo princípio democrático e pela doutrina da separação dos poderes73. Entretanto, a exigência de separação dos poderes serviria de garantia à aplicação prática do princípio da legalidade, tornando-se uma condição essencial para a defesa da liberdade. Se numa mesma pessoa, ou num mesmo órgão, se reunisse o Poder Legislativo e o Poder Executivo, a liberdade estaria perdida. O mesmo ocorreria se o Poder Judiciário não estivesse separado do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Portanto, a limitação do poder. 69. Otero, op. cit. p. 46-47. ibid., p. 47 71 ibid., p. 48. 72 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondant, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis – Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B7SkIzUpoEx4MDBNd1RNY0ZTQWM/view>. Acesso em: 08 abr. 2017. 315 p. p. 78. 73 Enterría, op. cit. p. 448. 70.

(27) 26. e a própria separação dos poderes surgem como instrumentos de garantia da liberdade dos cidadãos74. Nesta linha de pensamento, Ivanega75 afirma que o princípio da legalidade administrativa se converteu num importante instrumento para a luta contra a estrutura política do Estado absolutista. Diante de um poder pessoal e arbitrário, havia um ideal de governo sob as leis. Assim, sua aplicação garantiu que a ação dos poderes se desenvolvesse de acordo com o sistema desenhado pela Norma Fundamental, especialmente no que se refere à repartição de competências. estabelecidas. entre. o. Poder. Legislativo. e. o. Poder. Executivo.. Consequentemente, o princípio da legalidade teve estreito vínculo com o princípio da separação de poderes. Processos importantes para o princípio da legalidade administrativa - tais como formalizar na lei, através do Parlamento, a expressão da vontade popular e limitar o Poder Executivo protagonizado pelo monarca - só foram possíveis, segundo Otero76, devido à afirmação de três postulados:. (i) Supremacia da legitimidade democrática sobre a legitimidade monárquica e, por esta via, da instituição parlamentar relativamente ao executivo, conduzindo à prevalência do poder legislativo relativamente aos demais poderes do Estado; (ii) Absolutização do valor da lei, enquanto expressão da vontade do parlamento e da legitimidade democrática, dotada de uma omnipotência decisória relativamente a todas as demais fontes de Direito, surgindo mesmo o entendimento de que só o legislativo poderia criar Direito, e conduzindo a uma exacerbação radical do positivismo; (iii) Subordinação integral da Administração Pública à vontade do poder legislativo manifestada através da lei, verificando-se encontrar-se aquela destituída de qualquer poder autônomo de normação e impossibilitada de contrariar os limites resultantes da lei ou até, segundo uma formulação mais exigente, proibida de agir sempre que não existisse uma norma legal especificamente habilitadora da atividade.. Nesse sentido, o clássico entendimento do princípio da legalidade era de que a Administração só poderia fazer o que a lei autorizasse. Os órgãos administrativos apenas agiriam de acordo com o que a lei rigidamente prescrevesse ou facultasse77. Essa compreensão primitiva do princípio da legalidade impedia que a Administração Pública atuasse por conta própria, só podendo fazê-lo sob a égide da lei. Deste modo, nas. 74. Otero, op. cit. p. 48. IVANEGA, Miriam Mabel. Instituciones de derecho administrativo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2013. 612 p. Serie 12 Derecho Administrativo. p. 106. 76 Otero, op. cit. p. 53-54. 77 Binenbojm, op. cit. p. 6. 75.

(28) 27. atuações da Administração Pública se revelava a preponderância da lei sobre os atos e medidas administrativas. Obedecer à Administração era obedecer à lei, e não à vontade instável da autoridade. Traduziu-se, assim, a hegemonia do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo78. Havia, portanto, uma vinculação do princípio da legalidade a uma interpretação heterodoxa da separação de poderes, que se manifestava na “isenção jurisdicional do Executivo e na firme tendência ao fortalecimento deste, vinculado apenas pela via constitucional do regime parlamentar”79. No século XIX, o princípio da legalidade assumiu duas configurações diversas. Na França, como consequência da convicção na superioridade do Parlamento, a lei era uma condição, e não apenas um limite da atuação administrativa. Administrar era executar a lei. Estruturou-se, desta forma, a noção da vinculação positiva da Administração à lei 80. Essa visão da legalidade, como uma vinculação positiva da Administração à lei e compreendida como uma submissão total de sua atuação à vontade previamente manifestada pelo Legislativo, acabou por afastar o Direito Administrativo do Direito Constitucional81. Não obstante, Ivanega82 afirma que, em vista do conteúdo atual do princípio da legalidade, a norma jurídica não é um limite externo de atuação dos poderes públicos, que se caracteriza como doutrina da vinculação negativa da Administração à lei. Ainda, segundo a autora, é uma condição ou habilitação prévia que o ordenamento jurídico outorga à atuação administrativa, como doutrina da vinculação positiva. Na Alemanha, a legalidade foi traçada de modo diverso. Para a doutrina alemã da época, as leis eram consideradas como limites da liberdade da atuação administrativa. Se a Administração Pública respeitasse os limites resultantes da lei e dos direitos dos cidadãos por esta delineados, a atividade administrativa seria essencialmente livre, contanto que se dirigisse ao interesse público83. Desta forma, construiu-se a tese da vinculação negativa da Administração pela lei que, para Garcia de Enterría84, “operaria, de fato, como um limite externo a uma liberdade básica de determinação”. Os estudos de Michel Fromont sobre o princípio da legalidade na França, Alemanha, Itália e Espanha são importantes para que possamos vislumbrar a evolução deste princípio. 78. Medauar, op. cit. p. 139. Enterría, op. cit. p. 448. 80 Baptista, op. cit. p. 96. 81 Binenbojm, op. cit. p. 6. 82 Ivanega, op. cit. p. 107. 83 Baptista, op. cit. p. 97. 84 Enterría, op. cit. p. 448. 79.

(29) 28. Segundo Fromont85, o princípio da legalidade se compõe de duas regras clássicas de inegável importância: a exigência de reserva da lei e a obrigação de respeitar as normas legais que regem a atividade decisória da Administração. Diz ele ainda que, a partir de uma análise mais atenta, este princípio conduz a uma terceira regra: a obrigação de respeitar as leis gerais, ou seja, aquelas que não foram editadas para regulamentar diretamente a atividade da Administração, mas que devem, ao menos, ser observadas pela autoridade administrativa por tratarem de interesses que a Administração deve considerar. Ao analisar a reserva da lei, que é a primeira regra do princípio da legalidade, Fromont86 lembra que o texto que mais explicitamente a exige é o artigo 18 da Constituição Austríaca87 de 1921, ao dispor que a função administrativa do Estado só pode ser exercida com base na lei. O direito francês, por conseguinte, não é o que dá mais ênfase à necessidade de reserva da lei, uma vez que o juiz administrativo geralmente se contenta em anular, por erro de direito, o ato administrativo tomado em virtude de uma base jurídica inexistente ou nula. No entanto, ainda que interpretada de modo extensivo apenas em algumas decisões, é inegável que a reserva da lei existe no direito francês. Através da técnica que evoca a conversão do ato administrativo, o juiz francês pode, em certos casos, substituir a fundamentação legal citada pela autoridade na decisão administrativa, por outra sobre a qual possa estar baseada validamente. Esta técnica também é utilizada nos direitos alemão, italiano e espanhol. O direito alemão, além desta técnica, afirma fortemente a exigência de uma base legal88. Segundo a doutrina alemã, o princípio da legalidade comporta dois elementos, a saber: o princípio da primazia da lei e o princípio da reserva da lei. Segundo este princípio, a Administração não pode exercer sua função sem que seja chamada a fazê-la com base na lei. Maurer89 já se afinava à ideia de composição dual do princípio da legalidade:. El principio de legalidad de la administración impone la vinculación de ésta a las regulaciones previstas por el legislativo y, de igual modo, la somete al 85. Fromont, op. cit. p. 232-233. ibid., p. 233. 87 Art. 18. (1) The entire public administration shall be based on law. Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/49400/94744/F453042846/AUT49400.pdf>. Acesso em: 13 abr 2017. 88 Fromont. p. 233. 89 MAURER, Hartmut. Derecho administrativo alemán. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2012. 537 p. p. 113. 86.

(30) 29. control de la jurisdicción contencioso-administrativa, a la cual corresponde examinar, dentro del marco de su competencia, la observância de las leyes por parte de la administración. Este principio integra dos componentes: de um lado, el principio de primacía de la ley y, de otro, el principio de reserva de ley.. O princípio da primazia da lei evidencia, segundo Maurer90, a sujeição da Administração Pública às leis existentes. Em sentido positivo, sua atuação deve se dar em conformidade com elas. Já em sentido negativo, não deve adotar qualquer medida que as contradiga. Este princípio dirige-se à totalidade da atuação administrativa e decorre da força obrigatória das leis. Pelo princípio da reserva da lei, a Administração alemã só pode atuar se tiver sido habilitada por uma lei para tanto. Enquanto o princípio da primazia da lei proíbe a violação das leis existentes, a reserva da lei impõe um fundamento legal, uma base jurídica para a atividade administrativa. A ausência de lei exclui a atuação administrativa, não em virtude do princípio da primazia da lei, mas em razão da reserva da lei. O autor propõe, ainda, uma distinção entre a reserva da lei para regulação dos direitos fundamentais e a reserva geral de lei que resulta dos princípios constitucionais democráticos e do Estado de Direito91. As reservas de lei, em matéria de direitos fundamentais, não só exigem um fundamento legal para intervir nesses direitos, mas também sujeitam as intervenções a diversos requisitos e limitações, formais e materiais, para garantia deles mundialmente. O princípio geral de reserva da lei é, portanto, deslocado pelas reservas especiais de lei dos direitos fundamentais, porém permanece como princípio orientador e como regulação complementar92. Prosseguindo a análise da legalidade alemã, Maurer diz que o princípio democrático exige que o Legislativo, revestido de legitimidade oriunda das eleições de seus integrantes, adote tanto as regulações gerais como aquelas que são importantes para os cidadãos. Isso só é possível mediante a reserva da lei, pela qual se reserva ao legislador certas matérias. Sendo assim, a Administração só pode atuar em virtude de uma habilitação legal93. Os estudos de Maurer, ainda que tenham como ponto de partida a realidade alemã, ganham dimensão universal, devido a qualidade de suas conceituações. Assim, ao tratar, por exemplo, do princípio do Estado de Direito, o autor apresenta noções basilares para o Direito. 90. Maurer, op. cit., p. 113. ibid., p. 113-114. 92 ibid., p. 115. 93 ibid., p. 114. 91.

(31) 30. Administrativo. Maurer aponta para a necessidade de que as relações jurídicas entre o Estado e os cidadãos sejam reguladas por leis gerais inequívocas, estáveis e previsíveis. Além de determinar a atuação administrativa, o princípio do Estado de Direito exige também que se confiram direitos subjetivos suscetíveis de serem reclamados perante os tribunais, em caso de litígios94. O princípio da legalidade resulta da democracia, do Estado de Direito e da existência de direitos fundamentais, os quais não podem ser objeto de restrições por uma lei que se ache assentada na Constituição. No passado, o princípio da legalidade aplicava-se apenas às decisões administrativas que impunham limites às atividades dos particulares. No entanto, agora se aplica a todas as atividades da Administração alemã. Não é necessário que a lei defina, detalhadamente, a atividade administrativa, como de fato não o faz. Basta que defina as regras básicas95. O direito italiano admite, igualmente, a existência de reserva da lei. Contudo, não é tão abrangente como na Alemanha, porque se aplica apenas às questões para as quais a Constituição Federal prevê, expressamente, a intervenção do legislador. É o que ocorre com os casos que tratam de liberdade dos cidadãos e de propriedade. Embora a garantia de proteção jurídica dos interesses legítimos das pessoas pareça implicar a natureza ilimitada da reserva da lei, na Itália esse princípio não é tão abrangente, conclui Fromont96. No entanto, a jurisprudência administrativa italiana tem a tendência de exigir a intervenção prévia, senão da lei, ao menos de uma regra geral preestabelecida na matéria. Assim, segundo o Conselho de Estado, todo ato administrativo deve ser a expressão de um poder atribuído à Administração Pública por uma norma específica. Esta norma específica também pode ser um simples regulamento administrativo, em matérias para as quais a Constituição não sujeita a lei à edição de normas essenciais97. O direito espanhol exige, igualmente, que todo ato administrativo seja fundado na lei, como assegura Fromont98. É a função positiva do princípio da legalidade a que García de Enterría se referia, como anotado anteriormente. Por sua vez, Canotilho99 explica o sentido do princípio da legalidade atribuído hoje pela doutrina portuguesa: 94. Maurer, op. cit., p. 115. Fromont, op. cit. p. 233. 96 ibid., p. 234. 97 ibid., p. 234. 98 ibid., p. 234. 99 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. 1.522 p. p. 833. 95.

(32) 31. (...) a administração está vinculada à lei não apenas num sentido negativo (a administração pode fazer não apenas aquilo que a lei expressamente autorize, mas tudo aquilo que a lei não proíbe), mas num sentido positivo, a administração só pode actuar com base na lei, não havendo qualquer espaço livre da lei onde a administração possa actuar como um poder jurídico livre.. Fromont não apenas se detém em apontar a ocorrência do princípio da legalidade em alguns países europeus. Sua conceituação se amplia e se formaliza, ao tratar do conteúdo do princípio da legalidade. Fromont100 diz que a reserva da lei é normalmente uma lei relativa ao ato da autoridade da qual emana a decisão. Contudo, a maior parte do Direito Administrativo europeu se contenta com um simples regulamento administrativo tomado com base em uma lei. Para que a reserva legal seja considerada suficiente, é necessário ser bastante precisa. Em geral, a exigência de precisão é ainda maior quando a decisão limita direitos fundamentais e menor, quando se refere a benefícios concedidos discricionariamente101. É necessário, ainda, que a reserva legal não contenha vícios de nulidade, o que pode ocorrer em um regulamento administrativo. No caso de uma lei inconstitucional, fica sujeita ao controle incidental de constitucionalidade pelo tribunal administrativo, após a intervenção de um juiz constitucional, em análise de uma questão prejudicial. É assim na Alemanha, Bélgica, Áustria, Suíça, Itália, Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda102. Em suas conclusões, Fromont103 assevera que, com ou sem razão, o controle de legalidade da decisão administrativa pelo juiz é construído em torno da seguinte ideia fundamental: a Administração deve respeitar a lei para sua atividade, isto é, para o objeto possível de sua decisão e, sobretudo, para as condições sob as quais a lei as subordinam. Para García de Enterría, sem legalidade, a Administração é um simples instrumento político do Executivo, como na época da monarquia, quando era um instrumento pessoal do monarca, capaz de violar direitos e outorgar exceções sem limites jurídicos efetivos104. Em um interessante levantamento sobre as ocorrências do princípio da legalidade na América Latina, Perlingeiro105 afirma que o princípio da legalidade administrativa é tido como legalidade estrita, isto é, com base apenas na lei. Ao decidir, as autoridades 100. Fromont, op. cit. p. 235. ibid., p. 235. 102 ibid., p. 235. 103 ibid., p. 235. 104 ENTERRÍA, Eduardo García de. Las transformaciones de la justiça administrativa: de excepción singular a la plenitud jurisdicional. ¿Um cambio de paradigma? Pamplona: Thomson Civitas, 2007. 148 p. p. 18. 105 Perlingeiro, 2016, op. cit. p. 44. 101.

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