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A formação das Oficialas Pioneiras na Academia de Paudalho – PE

4 A FORMAÇÃO E A INCLUSÃO DAS MULHERES PIONEIRAS NA POLÍCIA

4.2 A formação das Oficialas Pioneiras na Academia de Paudalho – PE

Localizada entre as cidades de Paudalho e Carpina, a Academia de Polícia Militar de Pernambuco era comumente conhecida como Academia de Polícia de Paudalho. Ali, em 1987, oriundos de vários Estados do país, dentre eles, Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí e Rio Grande do Norte, a instituição policial pernambucana recebeu 162 alunos. Desse total, apenas quatorze eram mulheres, sendo dez oriundas da própria Polícia Militar de Pernambuco que àquela época já estava familiarizada com a presença de mulheres em seus quadros, além das duas pioneiras da Polícia Militar da Paraíba e também das precursoras do Rio Grande do Norte.

As desistências ocorridas durante o período inicial de formação, logo no primeiro ano, somaram um total de 27, todas referentes a homens. Desse modo, apenas 135 alunos/as foram promovidos/as ao fim do ano de 1989.

Marcada por uma forte e rigorosa tradição militar, a Academia de Pernambuco era àquela época a única instituição de ensino policial militar para a Formação de Oficiais femininos no Nordeste, utilizando o sistema de turmas mistas de homens e mulheres tanto nas disciplinas teóricas quanto nas práticas. Apenas os índices mínimos instituídos para determinados exercícios físicos diferenciavam-se

entre homens e mulheres, contudo, as atividades físicas eram igualmente compartilhadas.

As condições de participação no Curso de Oficial eram igualmente rigorosas. Funcionando em regime de semi-internato de segunda a sexta-feira, exigia-se que as Alunas, tanto no momento da apresentação para o Curso, quanto durante a frequência do primeiro e segundo anos, mantivessem os cabelos cortados na altura da nuca, sendo também vetado o uso de adereços que lhes diferenciassem os corpos do padrão masculino instituído. Até mesmo a cor das unhas era objeto de padronização, de acordo com as normas pedagógicas daquele ambiente de ensino.

Muito embora essa narrativa se refira ao final da década de 80, contemporaneamente, essas normas ainda ganham significado e aceitação no contexto das polícias militares. Ilustra isso o recente episódio protagonizado pela Capitã Esther Lacerda da Polícia Militar de Goiás ao convocar por rede social7 as policiais militares para opinarem sobre os “padrões” mais adequados às suas apresentações pessoais. O debate ganhou repercussão na mídia nacional extrapolando os limites corporativos.

A lógica implícita na “masculinização” é explicada pela via teórica de Le Breton (2007), através da pedagogia corporal tão necessária de intervenção na hegemonia da formação militar, marcando nos corpos femininos as lógicas culturais e sociais contextualizadas histórica e socialmente. Também Norbert Elias (1994) define que a expressão social dos corpos tem reflexos na aparência, nos gestos, comportamentos, expressões e atitudes.

Todavia, a vivência concreta dessa mutação na experiência de quem, efetivamente, subjuga-se a ela ainda é pouco explorada pela literatura. As medidas impostas à transformação dos corpos femininos invade os limites do direito discricionário das escolhas preferenciais sobre a própria aparência, regulando sua apresentação para além do convívio profissional, alcançando a esfera social e familiar de suas relações.

O corte coercitivo dos cabelos mediante a voluntária escolha da carreira profissional se coloca no sentido de sobrepor a identidade militar à aparência física feminina. Contudo, isso para a mulher não ocorre sem conflitos. Na medida em que

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Convocação para participação no Fórum público disponibilizada no site Oficial da Polícia Militar de Goiás (http://www.pm.go.gov.br), trazendo o seguinte título: “Atenção PMs femininas! Deixem suas sugestões para padronização de apresentação.”

o cabelo representa, no contexto da cultura social estética vigente, um objeto da vaidade e do orgulho feminino, para muitas de nós essa mutilação assumia repercussões além da aparência física. No corte tipo “Joãozinho” ecoa o conflito identitário entre a identidade de mulher e de militar, reforçado todas as vezes que o espelho refletia a imagem transformada, convertendo-nos de todo modo a uma masculinidade subordinada, pois que mesmo transformadas na aparência, ainda assim, nunca fomos reconhecidas como iguais.

A despeito dessa transformação dos corpos femininos necessária aos moldes militar, ilustra Le Breton:

O corpo também é, preso no espelho do social, objeto concreto de investimento coletivo [...]. A aparência corporal responde a uma ação do ator relacionada com o modo de se apresentar e de se representar. [...] tem relação com as modalidades simbólicas de organização sob a égide do pertencimento social e cultural do ator.[...] Essa prática da aparência, na medida em que se expõe a avaliação de testemunhas, se transforma em engajamento social, em meio deliberado de difusão de informação sobre si [...]. (2007, p. 77) Com efeito, mesmo quando fora do quartel, a aparência legitimava e reforçava a internalização dos valores culturais masculinos, tornando mais fácil sua incorporação. Essa prática da aparência é bem ilustrada na experiência de Joana D’Arc, Maria Quitéria, entre outras, as quais, optando por lutar em defesa da nação, obrigaram-se a transvestirem-se como homem para “viabilizar seu alistamento diante da condição de guerreiro estar, exclusivamente, identificada com o homem, sendo os símbolos identificadores que o representam a arma e a vestimenta”(SCHACTAE, 2011, p.20).

Desse modo, primando pela lógica da cultura marcante na instituição policial militar, a distinção visual entre alunos e alunas ficava por conta do uso obrigatório de brinco e batom para as mulheres. O uso destes acessórios era uma condição exigida pela Oficial Comandante, Tenente Eunice Arruda, sob pena de sanção disciplinar. Esse aspecto, entretanto, logo depois da transferência da Oficial, foi relegado pelos demais Comandantes masculinos que assumiram posteriormente a Coordenação do Curso.

A “masculinização” dos corpos femininos, conforme instituído à época da formação das pioneiras, do ponto de vista militar, se constituiu numa estratégia psicossomática e também num importante instrumento de pedagogização das subjetividades das mulheres em formação, visando transformar além da aparência

para também alcançar os símbolos femininos de sua identidade, da estrutura psicológica e emocional, como um rompimento necessário à incorporação dos valores institucionais.

Diante disso, antes mesmo do ritual que consagra a condição de militar, denominado “batismo”, para nós mulheres, essa identidade já começava a ser definida no ambiente e no cotidiano da Academia, através da transformação dos nossos corpos para a incorporação do habitus militar.