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Habitus de gênero: a masculinização das mulheres policiais

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: OS DESAFIOS DE APRENDER A SER

3.3 Habitus de gênero: a masculinização das mulheres policiais

O processo do despojamento identitário a que se sujeitam as mulheres ingressas no ambiente militar, conforme pontuado pela literatura aqui resgatada é bem ilustrado por Carvalho (2004) com base na teoria de Bourdieu, a partir da explicação sobre como se dá a conformação do habitus de gênero na construção do masculino e do feminino. Para Carvalho, os habitus de gênero resultam de:

um trabalho pedagógico psicossomático de nominação, inculcação e incorporação que se inicia no processo de socialização infantil e

continua através de variadas e constantes estratégias educativas de diferenciação, no mais das vezes implícitas nas práticas de vários agentes e instituições como a família, a igreja, a escola e os meios de comunicação. (CARVALHO, 2004, p. 1)

Assinala ainda essa autora que os significados socialmente construídos por meio do processo educacional, servem para moldar as identidades de sexo e de gênero e assim, o sentido de masculinidade e feminilidade deve ser entendido como construções variáveis e plurais que se legitimam num determinado espaço e contexto cultural, social e histórico, portanto, sem significado fixo. Gênero então assume o sentido de representações sujeitas a disputas políticas pela atribuição de significado do ser masculino e ser feminino entendidos como complementares e não auto-exclusivos.

Destaca-se dessa leitura o provimento cultural e social da construção dos gêneros resultando sua concepção como um processo de aprendizagem informal, e implícita que se legitima na sociedade e se “naturaliza” como uma expressão biológica de ordem “natural”. Sobre isso, a autora cita Bourdieu descrevendo que:

As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros, se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino. (BOURDIEU, 1999, p. 34 apud CARVALHO, 2004, p.3-4)

A primazia masculina, portanto, legitima-se no fato das sociedades constituírem-se na perspectiva do princípio androcêntrico que pressupõe e prescreve a dominação do masculino sobre o feminino, do ativo sobre o passivo, com base em trocas simbólicas que se revestem do caráter de naturalização, conferindo sentido à lógica da dominação masculina, conforme o próprio Bourdieu descreve:

[...] Cabe aos homens situados do lado exterior, do oficial, do público, do direito [...] realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares [...]. Às mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, veêm ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os trabalhos externos que lhes são destinados [...]. (BOURDIEU, 2002, p.20)

O texto acima bem ilustra o contexto militar e a herança patriarcal legada à sociedade, a partir das relações de poder que conformam o ideal de masculinidade. Insurge daí também o conflito da identidade feminina quando inseridas no meio militar. No impasse conflitivo entre afirmarem-se como iguais à masculinidade hegemônica ou como diferentes, se sujeitam a um tipo de masculinidade subordinada, sendo sempre vistas como entidade de falta, desqualificada e suspeita para o credenciamento páreo.

Por conseguinte, é possível deduzir-se que no espaço do militar se confira um especial reforço aos atributos da virilidade, da força e da coragem, enquanto elementos reforçadores do ideal de masculinidade considerada adequada ao ofício policial. Isso permite que a distinção entre o masculino e o feminino, sob a justificativa biológica, seja ainda mais ressaltada e diferenciada. De fato, a ordem da dominação masculina desenvolvida por Bourdieu e citada por Carvalho assinala que:

[...] Inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através de injunções tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados. As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres…, assinalando-lhes lugares inferiores…, ensinando-lhes a postura correta do corpo…, atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas e mesquinhas. (BOURDIEU, 1999, p. 34 apud CARVALHO, 2004, p.3-4)

Em Norbert Elias (1994, p. 26), encontra-se que o “processo civilizador” na sociedade ocidental é um “processo de produção simbólica”, que naturaliza os conceitos de cultura e civilização tornando-os cristalizados na história coletiva de uma dada sociedade. Nessa obra, também se encontra pistas para compreender a incorporação do habitus militar, caracterizadamente masculino, pelas mulheres ingressas. Conforme ele, a cultura e a civilização “assumem forma na base de experiências comuns” que nunca “se tornam plenamente vivas para aqueles que não compartilham tais experiências, que não falam a partir da mesma tradição e da mesma situação”.

De acordo com Elias, as relações entre as “formas de pensamento e a estrutura da sociedade formam o processo de civilização”. Tomando essa referência, a “masculinização” experimentada pelas mulheres, mediante o ingresso no Curso de Formação, essencialmente, consiste no processo de “civilização” ao contexto militar a fim de tornarem-se aceitas e obterem o respeito e reconhecimento do grupo

através da superação das “limitações de sua natureza física” diferente. (apud LEÃO, 2007, p. 45)

Em Bourdieu, conforme assinalado por Carvalho encontra-se que:

os discursos, as razões e as justificativas que corroboram e sedimentam as relações de dominação enraízam-se em um corpo nelas formado e conformado, em emoções, paixões e sentimentos, disso decorrendo o eventual conflito entre discurso e comportamento, intenção e ação: ‘Os atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira mágica entre os dominantes e os dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra a sua vontade, para sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites impostos, assumem muitas vezes a forma de emoções corporais – vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e de sentimentos – amor, admiração, respeito; emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se traírem em manifestações visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o desajeitamento, o tremor, a cólera ... e outras tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade, ao juízo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar, não raro com conflito interno e clivagem do ego, a cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai às diretivas da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes às estruturas sociais. (BOURDIEU, 1999, p. 51, apud, CARVALHO, 2004, p. 8)

A partir desses elementos teóricos é possível entender como se processa a “masculinização” das mulheres ingressas no meio policial militar, contudo, há ainda que se considerar que neste contexto, duas questões ainda se inscrevem no cotidiano das relações sociais dos sujeitos: a hierarquia e a disciplina. A primeira estrutura as relações de poder delimitando quem manda e quem se subordina, a segunda, assegura a obediência por meio de normas e dispositivos de sanção e recompensas. Ambas são reconhecidas e internalizadas pelos sujeitos e igualmente se inscrevem nas relações de poder sob uma lógica diferente e interdependente entre elas, servindo também para caracterizar a dinâmica do habitus militar, mas, também do habitus de gênero.