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O currículo e o processo pedagógico da profissionalização policial militar

4 A FORMAÇÃO E A INCLUSÃO DAS MULHERES PIONEIRAS NA POLÍCIA

4.4 O currículo e o processo pedagógico da profissionalização policial militar

Superadas as consequências daquele penoso episódio, instituiu-se a normalidade da rotina diária que acompanharia a todas nós ao longo dos três anos de Curso.

A carga horária do Curso de Formação de Oficiais contava com um total de 3.344 horas/aula distribuídas ao longo dos três anos de curso. Incluía diversas disciplinas, desde noções de psicologia a sociologia e direito. Entretanto, correspondendo à tendência Nacional, a ênfase curricular da formação nesse período direcionava-se fortemente para a formação do militarismo, valorizando nitidamente a preparação física e as disciplinas diretamente relacionadas com a construção dos valores tipicamente militares. Estas não apenas correspondiam à maior carga horária na estrutura curricular, mas também tinham maior peso no processo de avaliação.

A exemplo disso, a disciplina de Ordem Unida registra, somente no primeiro ano do curso, um total de 98 horas/aula. Caracterizada, universalmente, no ambiente militar como a principal formadora dos valores militares, essa disciplina visa desenvolver, dentre outros aspectos, os reflexos da obediência e a formação moral, a assimilação dos valores e significados próprios da conduta militar. Coloca- se como a disciplina mais elementar na iniciação do militar. Também a Educação Física Militar correspondeu, somente no primeiro ano, a um total de 80 horas/aula. Por outro lado, a disciplina denominada de Operações de Defesa Interna e Defesa Territorial, voltada para o desenvolvimento das posturas pertinentes a operações de guerra e manobras militares em defesa do território Nacional, correspondia a 270 horas/aula, denotando que a formação policial militar àquela época, embora com função absolutamente distinta, ainda espelhava o modelo formativo do Exército Brasileiro.

Com efeito, ante o extenso rol de disciplinas e o volume de carga horária do curso, as atividades letivas durante toda a formação foram intensas. Diariamente, via de regra, elas somavam oito horas, às quais se juntavam as demandas extra- curriculares representadas pelas jornadas de formaturas, estudo individual obrigatório no período noturno, treinamentos físicos para competições esportivas específicas e outras exigências regulamentares relacionadas aos cuidados coletivos e individuais com a apresentação do uniforme e seus apetrechos.

O currículo, entretanto, não está restrito ao rol de disciplinas e seus conteúdos, considerá-lo assim, seria demasiado reducionista, para dar conta do aprendizado de condutas, gestuais e princípios que se incorporam à formação em qualquer instituição. Ademais, a tomada dos tempos e espaços extra-classe, considerando-se ainda o regime de internato da formação militar, que possibilita um currículo total, sem separações entre a vida de estudante e a vida pessoal, implica em tomar uma lente mais ampla compreendendo o currículo em ação.

No regime de internato, o dia se iniciava com o toque de “alvorada” às 05:30 horas da manhã. Em formação típica militar, todo o grupo seguia para o café da manhã no refeitório da Academia, ocupando-se em seguida das tarefas de limpeza do alojamento e arrumação das camas até as 7:30 horas, quando então realizava-se a parada matinal.

Este ritual da parada matinal, caracterizadamente militar, era realizado diariamente como uma cerimônia cívica para o hasteamento do Pavilhão Nacional. Servia também para leitura do Boletim e das Ordens do Dia. Às 8:00 horas, pontualmente, todos/as estavam na sala de aula para o primeiro turno de atividades letivas que se estendia até às 11:45 horas, quando havia a liberação para o almoço com retorno às salas de aula no período da tarde às 13:45 horas.

As aulas teóricas eram encerradas às 17:15 hs e, 15 minutos depois, iniciava-se a prática das atividades físicas. Como as salas de aula distavam cerca de 500 metros dos alojamentos, tanto masculino quanto feminino, utilizados durante o primeiro e segundo ano de curso, nesse momento, instalava-se o caos pela correria que atropelava os mais lentos e frágeis fisicamente.

Entretanto, apesar de todo o desconforto causado pelo curto prazo, esse momento era também celebrado pelo fim da cansativa rotina diária das aulas teóricas que subjugava-nos ao modelo tradicional de ensino-aprendizagem. Embora não fossem de todo vetadas as intervenções dos discentes durante as aulas, com raras exceções, elas não eram muito bem recebidas pelos instrutores, constituídos, predominantemente, por Oficiais da Polícia Militar de Pernambuco.

No momento da prática desportiva, alunos e alunas eram distribuídos pelas modalidades esportivas com as quais se afinavam e aqueles que não participavam de equipes específicas, submetiam-se à rotina previamente programada de treinamento mediante a prática de atividades diversas voltadas para o desenvolvimento e o fortalecimento muscular. Curiosamente, após algumas

reivindicações do grupo de alunas, foi integrado a este momento de prática desportiva, uma atividade reveza entre dança e aeróbica, destinada especificamente às mulheres alunas.

A prática da atividade desportiva se desenvolvia até por volta das 18:15 horas quando, após as providências relacionadas à higiene pessoal, deveriam todos/as se apresentar em formação às 18:45 horas para o jantar. Depois disso, o descanso perdurava até às 21:00 horas quando acontecia a “revista do pernoite”.

Esse ritual consiste na formação militar dos/as alunos/as para responderem à chamada e serem “revistados”, o que na expressão militar, significa serem conferidos não só quanto à presença física, mas também quanto à adequação exemplar de sua apresentação pessoal relacionada ao corte de cabelos, uniformes, acessórios e apetrechos de uso individual como coturnos e cintos. Em geral, a “revista” ocorria duas vezes ao dia, na formatura da parada matinal e durante a formatura do pernoite.

Entretanto, ela poderia acontecer de forma inusitada, em qualquer momento do dia ou mesmo durante a noite, unicamente a critério do desejo e do interesse de qualquer Oficial da Academia. No caso das revistas noturnas, todos eram abruptamente acordados para submeterem-se à conferência. Do mesmo modo, também as revistas nos armários e alojamentos para supervisionar os padrões estabelecidos de limpeza e organização dos objetos coletivos e individuais era uma prática recorrente.

Tanto no caso da apresentação pessoal quanto do ordenamento da limpeza e dos armários, as condutas julgadas inadequadas aos padrões, baseadas também em critérios subjetivos de julgamentos individuais, eram passíveis de aplicação das medidas disciplinares chamadas de “punição escolar” ou LC, que significava Licença Cassada. Essa possibilidade deixava-nos, diuturnamente, em alerta, pela constante ameaça da famigerada “punição escolar”, que consistia na restrição da liberdade, impedindo os infratores de ausentarem-se do quartel durante os fins de semana e/ou feriados para gozar do convívio social da família e amigos.

Durante a semana, de segunda a sexta-feira, o horário estabelecido para manter-se o silêncio era 22:00 hs, quando todas as luzes dos alojamentos deveriam estar apagadas, sendo punidos, coletivamente, todos/as os/as ocupantes do alojamento que descumprisse tal regra. Aqueles que, por qualquer motivo,

quisessem ou precisassem estudar, o faziam nos corredores sob a claridade das poucas luzes que podiam permanecer acesas no complexo escolar.

Todas essas práticas e medidas impostas ao corpo discente da Academia Militar compunham o currículo em ação do Curso de Formação para os Oficiais daquela época. Inevitavelmente, as regras impostas mediante as posturas e comportamentos exigidos durante todo o processo pedagógico da profissionalização para o ofício policial se incorporam definitivamente na visão de mundo daqueles e daquelas que se submetem a ele. Algumas ficam mais fortemente marcadas, outras nem tanto, mas todas assinalam, a partir dali, modos de ser e viver distintos daqueles incorporados antes de seu ingresso.

A força ideológica que opera essa transformação psicossomática, ‘naturalizando’ e legitimando as condutas em meio às relações sociais hierárquicas, encontra na cultura do medo, representada pela permanente ameaça de sanções disciplinares e castigos, um forte mecanismo para coagir àqueles/as mais resistentes. Desse modo, produzem-se e reproduzem-se as identidades militares, refletindo os valores culturais da instituição.