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Masculino e Feminino: A construção social, cultural e educacional de

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: OS DESAFIOS DE APRENDER A SER

3.4 Masculino e Feminino: A construção social, cultural e educacional de

De acordo com Silva (2000, p. 63), gênero é um “conceito central na teoria feminista contemporânea, refere-se – em oposição à dimensão simplesmente biológica do processo de diferenciação sexual – aos aspectos culturais e sociais das relações entre os sexos”.

Carvalho et ali (2009) a propósito da construção cultural das relações de gênero, assinala que sua origem é marcada pelas diferenças biológicas inscritas nos corpos, servindo daí para justificar e naturalizar as diferenças entre os gêneros. Ao binarismo de sexo então, corresponde o binarismo de gênero, gerando as relações de oposição e dicotomia que ao incluir um, exclui o outro. Descreve essa autora que:

cada cultura define o que é feminino e o que é masculino, isto é, o gênero, construindo socialmente qualidades, valores, papéis sociais, padrões de comportamento, modelos de identidade, representações de homem e de mulher, que, quando utilizados de modo reducionista, tornam-se estereótipos e servem para discriminar. (grifo do original). (Op. Cit, 2009, p. 14).

Na perspectiva de Carvalho, o aspecto relacional do conceito de gênero considera os elementos culturais associados às noções de masculinidades e feminilidades. Eles, assim, se colocam como dependentes e constitutivos um do outro, mas também opostos, assimétricos e dicotômicos. Portanto, o gênero situa-se dentro de um esquema binário, colocados como excludentes entre si. Fixando comportamentos e identidades de homens e mulheres como permanentes e imutáveis, desconsiderando as múltiplas masculinidades e diversidades, despreza também as diferenças individuais marcantes tanto do homem quanto da mulher.

Notadamente, as relações de gênero exprimem relações de poder com base numa masculinidade hegemônica, uma vez que as “características, instituições e comportamentos relacionados ao masculino, são na maioria das vezes, socialmente valorizados como positivos, superiores, em detrimento do que é associado ao feminino” (CARVALHO et ali, 2009, p.17).

Nas palavras de Simone de Beauvoir, a representação social e cultural de gênero se expressa pela clássica frase: “não se nasce mulher, torna-se mulher” (apud LOURO, 2002). Isto é, tornar-se mulher, tanto quanto tornar-se homem, resulta de processos de aprendizado de acordo com padrões e normas sociais estabelecidos, através da imposição e coerção, e que são modificados no tempo, refletindo as mudanças na estrutura dos sistemas sociais que objetiva a realidade.

A “naturalidade” das identidades sexuais e de gênero é questionada na medida em que se revela o caráter cultural dessa construção. Louro (2002, p.6), inclusive aponta que “são precisamente os discursos, os códigos, as representações que atribuem o significado de diferente aos corpos e às identidades”, acrescentando:

A questão deixa de ser, neste caso, a "identificação" das diferenças de gênero ou de sexualidade, percebidas como marcas que pré- existem nos corpos dos sujeitos e que servem para classificá-los, e passa a ser uma questão de outra ordem: a indagação de como (e porque) determinadas características (físicas, psicológicas, sociais etc.) são tomadas como definidoras de diferenças. O movimento permite compreender, talvez de forma mais nítida, que toda e qualquer diferença é sempre atribuída no interior de uma dada cultura; que determinadas características podem ser valorizadas como distintivas e fundamentais numa determinada sociedade e não terem o mesmo significado em outra sociedade; e, ainda, que a nomeação da diferença é, ao mesmo tempo e sempre, a demarcação de uma fronteira. (LOURO, 2002, p.6)

Tomando a luz dessas referências teóricas conforme aqui resgatado, a perspectiva de gênero aqui adotada visa transcender ao viés puramente biológico do sexo sob o qual se assentam as justificativas que naturalizam as distinções fixas das identidades masculinas e femininas. Assume-se então que as relações e identidades assumidas por homens e mulheres policiais militares resultam de um conjunto de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas por meio de aprendizados que se modelam no terreno da cultura organizacional e das relações de poder. Busca-se, na verdade, superar a crença do senso comum que coloca a diferença entre os gêneros, como meramente vinculada às distinções biológicas, cujo argumento tem servido para justificar distinções físicas, psíquicas, comportamentais, para indicar diferentes habilidades sociais e as possibilidades que se destinam a cada sexo.

As representações de masculinidade e feminilidade, quando entendidas através da lógica dicotômica, produzem uma série de oposições (homem é forte e viril; mulher é fraca e meiga), que por sua vez interferem na autopercepção dos indivíduos que não se identificam nessa polaridade. A crítica a esses estereótipos é, portanto, necessária para promover avanços e produzir reflexos no ideal democrático de respeito e igualdade entre as identidades diversas.

Com efeito, Carvalho esclarece que na sua origem, o conceito de gênero estabelece um corte entre sexo/corpo/natureza e gênero/cultura, posteriormente criticado, pelas perspectivas pós-estruturalistas que apontam as imbricações entre corpo, sexo ou sexualidade e gênero, considerando todos como resultantes de construções culturais. As teóricas feministas pós-estruturalistas dizem que não se pode pensar corpo nem sexo sem gênero. Esclarecem ainda que o processo de

construção de ambos se submete às intervenções sociais e culturais (CARVALHO, 2010).

Ainda no contexto dos estudos de gênero, encontra-se em Le Breton (2007, p. 8) a afirmação de as lógicas culturais e sociais que se inscrevem no corpo produzindo sentidos à inserção ativa dos indivíduos “no interior de dado espaço social e cultural”. Ressalta ele que as diferenças biológicas associadas ao sexo, recebem acréscimos de detalhes na sociedade para distinguir histórica, social e culturalmente o que significa o homem e a mulher caracterizando-os num determinado modo de vida, uma determinada forma de socialização, uma dada forma de produzir identificação e reconhecimento das características que lhes são atribuídas. Nessa ótica, o corpo assume importante papel na socialização dos indivíduos e nas construções subjetivas e sociais por eles incorporadas:

De fato, o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o limite que, de alguma forma, o distingue dos outros. Na medida em que se ampliam os laços sociais e a teia simbólica, provedora de significações e valores, o corpo é o traço mais visível do ator [...] No interior de uma mesma comunidade social, todas as manifestações corporais do ator são virtualmente significantes aos olhos dos parceiros” (LE BRETON, 2007, p. 9-10).

Destaca-se da consideração desse autor que a própria gestualidade do corpo é tecida nas relações sociais e culturais. É através da corporeidade que as interações e os rituais entre os atores são elaborados: “A percepção dos inúmeros estímulos que o corpo consegue recolher a cada instante é função do pertencimento social do ator e de seu modo particular de inserção cultural” (Op. Cit., 2007, p. 56).

Já Norbert Elias (1994) aprofunda a epistemologia referente às representações e valores ligados à corporeidade, revelando que o sentido do corpo (masculino e feminino) é assumido como expressões associadas ao fenômeno sociológico com reflexos na aparência, nos gestos, nos comportamentos, expressões e atitudes.

Considerando que no espaço militar a incorporação da hegemonia masculina atravessa o corpo e, se ratifica e consagra mediante as relações sociais que legitimam e naturalizam as posturas e regulam os comportamentos de homens e mulheres, identifica-se que, nesse contexto, o corpo representa um importante elemento no processo de aprendizagem do habitus militar.

Em certa medida, aos/às militares se ensina o uso do corpo seguindo uma lógica específica coerente com o padrão de desempenho adequado às atividades

militares, valorizando-se neles, os atributos da força e as qualidades viris em todos os níveis hierárquicos, mais particularmente, nos níveis subalternos da hierarquia, os soldados.

Isto posto, os aportes teóricos da literatura revisada ressaltam os aspectos da construção tanto do habitus militar, quanto de gênero, centralizando-os no terreno da cultura organizacional, onde os valores tradicionais e as condutas a eles associados assumem significados que lhes legitimam e “naturalizam”, preservando- se a tradição histórica e cultural dessas organizações, sendo então importante discorrer sobre esta categoria.