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Conflitos e resistências à presença feminina na corporação Policial Militar

4 A FORMAÇÃO E A INCLUSÃO DAS MULHERES PIONEIRAS NA POLÍCIA

4.6 Conflitos e resistências à presença feminina na corporação Policial Militar

Polícia Militar, cabendo-me o privilégio de coordenar essa primeira turma com a assessoria de algumas das primeiras graduadas em Sargento.

É interessante notar o quanto, pessoalmente, não só ajudei a reproduzir, mais que isso, reivindiquei à época que fossem aplicados os mesmos modelos curriculares e pedagógicos da minha própria formação. Como requisito à matrícula também os cabelos femininos foram cortados, infligindo também a esse grupo a mutilação da sua feminilidade. Praticamente todas as práticas de que eu havia sido vítima, reproduzi como mentora, bem ilustrando a descrição de Bourdieu.

Desse modo, considerando a ampliação considerável do contingente feminino com a formação das primeiras soldados, o Comando da Polícia Militar decidiu criar o primeiro Pelotão de Polícia Feminina no interior do Estado. Acompanhada por três Sargentos femininos e mais um grupo de vinte mulheres Soldados, fui designada para assumir o encargo de instalar esse primeiro pelotão feminino na sede do Segundo Batalhão de Polícia Militar no Município de Campina Grande.

Naquela Unidade fomos recepcionadas numa estrutura física precária quanto às condições para a convivência de mulheres. Não existiam banheiros e menos ainda alojamentos específicos que pudessem ser utilizados. A adaptação das instalações físicas para a presença feminina, portanto, naquele momento, foi uma providência imperativa, entretanto, ela ainda hoje se constitui num dos desafios que se colocam para as policiais militares deste Estado, tendo em vista que muitas das instalações físicas dos quartéis e postos de serviço policial, ainda não dispõem de acomodações adequadas às mulheres.

4.6 Conflitos e resistências à presença feminina na corporação Policial Militar Paraibana

Fundamentada nos princípios da hierarquia e da disciplina, o dever da obediência à ordem legal é uma regra inquestionável por parte dos subordinados aos seus superiores hierárquicos. Desse modo, às atribuições do serviço rotineiro de

uma Oficiala assemelham-se à atividade de coordenação e/ou chefia no universo de qualquer organização, cabendo-lhe autoridade formal sobre todos aqueles que lhe estão subordinados. Dito isto, em certa feita, quando revestida da função de Oficial de Dia em Serviço, comandando um grupo composto, exclusivamente, por homens, ocorreu um fato bastante curioso.

No exercício da função, requisitou-se aos homens que se agrupassem em formação militar para responderem à chamada dos respectivos postos de serviço. Inusitadamente, um deles, simplesmente desconheceu completamente a ordem recebida respondendo ao chamamento de seu nome do lugar onde estava. A postura demonstrada por aquele subordinado gerou uma situação desafiadora da autoridade revestida não só à condição da Oficiala, mas também à função de Comandante respondendo por todo aquele grupo. Uma resposta imediata era necessária àquele comportamento e, por isso, tão logo foram concluídas as providências junto aos demais policiais, apressei-me em ouvir sua justificativa àquele comportamento tão inadequado.

O argumento por ele apresentado, no contexto atual pode ser considerado um verdadeiro afronto, resultando em severas sanções disciplinares, mas à época, embora infringisse às normas disciplinares, entendi que sua postura era coerente com a realidade da instituição. Preservando sua identidade, transcrevo as palavras por ele proferidas em resposta à minha indagação: “Dona aluna, a senhora me desculpe, mas não recebo ordem de mulher não! Mulher prá mim só comanda fogão!”.

Essas palavras dão uma clara noção do tamanho e da complexidade dos problemas que as mulheres enfrentaram na instituição, sobretudo, as oficialas. Entendi que aquele policial não podia responder individualmente por uma concepção que lhe fora ensinada desde a mais tenra infância e legitimada pelas diferentes instituições ao longo da vida, e ainda mais reforçadas no convívio social da própria Polícia Militar.

Era evidente que ele era tão vítima quanto as próprias mulheres de uma disposição social cristalizada no imaginário social. Sua reação à ordem recebida de uma mulher militar, revestida de autoridade superior a ele, representava naquele instante, uma total inversão dos papéis e significados socialmente atribuídos a cada sexo e gênero e invertia a ordem histórica, social e culturalmente estabelecida. Seu comportamento era reflexo da experiência empírica, cultural e social, que demarcava

claramente os papéis exercidos por homens e mulheres naquele momento histórico, não apenas no ambiente policial militar, mas na sociedade em geral.

As posições que homens e mulheres ocupavam na sociedade eram claramente distintas e opostas obedecendo de fato, a uma ordem excludente. Os primeiros ocupavam as funções de chefia e de mando, respondendo pelo controle e pelo monopólio das decisões e do poder. Às mulheres cabia o exercício das atividades domésticas consideradas de menor importância no seio da sociedade. Essa contraposição das tarefas inerentes aos sexos e também dicotômicas do ponto de vista do gênero é ratificada pela ordem social, conforme assevera Bourdieu.

No campo das trocas simbólicas, o princípioandrocêntrico dispensa a força masculina de qualquer justificação e a institui como uma ordem natural, como explica este autor:

[...] a ordem social funciona como uma máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos, é a estrutura do espaço, opondo o lugar da assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres. (BOURDIEU, 2002, p.9)

Também Carvalho (2004) ao descrever o habitus de gênero com base na obra de Bourdieu, enfatiza que:

os discursos, as razões e as justificativas que corroboram e sedimentam as relações de dominação enraízam-se em um corpo nelas formado e conformado, em emoções, paixões e sentimentos, disso decorrendo o eventual conflito entre discurso e comportamento, intenção e ação. (p.7)

Destarte, o impasse gerado pelo episódio narrado, mais do que represália, ou punição disciplinar, mereceu por parte desta investigadora, enquanto Oficial comandante daquele grupamento de homens, uma intervenção pedagógica para desmistificar a ordem social sexista e androcêntrica, tão fortemente cristalizada naquela realidade institucional. Resultou dessa intervenção que, da inicial divergência com aquele subordinado, originou-se uma saudável amizade que perdurou durante todo o tempo em que estiveram em atividade no ambiente da mesma Unidade de trabalho.

A narrativa desta experiência, dentre outras coisas, ratifica a tese defendida por Soares e Musumeci (2005) que a presença das mulheres na instituição policial, embora de forma assistemática atendeu à função de “humanizar” sim, mas neste caso, mais as relações internas do que a qualidade da interação policial com a sociedade civil.

De fato, conforme aqui se pontuou, a participação feminina nas atividades policiais, inicialmente, ficou restrita ao exercício de funções administrativas, portanto, internas aos quartéis; associada à limitação quantitativa da presença feminina, esses fatores acarretam relativa invisibilidade às atividades desenvolvidas pelas mulheres nas funções operacionais da instituição e, em consequência, resulta também na invisibilidade da sua presença nas relações com a comunidade civil.

No entanto, é inegável que as relações humanas e sociais no ambiente dos quartéis, decisivamente, assumiram novas formas a partir da presença feminina. Novas posturas de negociação, de diálogo e sensibilização às singularidades, foram inauguradas pela afirmação da presença feminina que, no sentido prático, também inovou na experiência social do convívio com a diferença, configurando arranjos relacionais totalmente novos. Essa participação, dentre outras coisas, viabilizou relações afetivo-sexuais entre colegas de sexos opostos dentro da corporação, considerando que antes, isso somente era possível no plano das relações homossexuais inaceitáveis no universo militar. (SOARES E MUSUMECI, 2005)

O desconforto causado pela presença das mulheres nos quartéis alcançou também o instituto do matrimônio, no incômodo sofrido das esposas de policiais pelo temor que as relações com as jovens mulheres policiais se estendessem para além do campo profissional. Este risco era também considerado pela instituição policial na medida em que constituía também uma ameaça às estruturas do militarismo, da hierarquia e da disciplina, pela possibilidade de união de patentes e círculos hierárquicos distintos, principalmente entre praças e oficiais, isso além de arriscar a estabilidade dos casamentos.

4.7 Novas configurações nas relações sociais no ambiente policial militar: laços