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2 FUNCIONALISMO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

2.2 As categorias da língua em uso: processos básicos de constituição dos

2.2.4 A formação de enunciados complexos (junção)

Neves (2011a) trata da questão da articulação de orações e frases nos enunciados sob a perspectiva funcionalista, ou seja, considerando a língua em função, e não apenas as estruturas dos enunciados. Segundo a autora, uma análise funcionalista deve examinar a organização dos enunciados complexos em diversos níveis (predicacional, proposicional e ilocucionário), sob diversos ângulos (informacional ou textual, interacional), e incluindo os diversos componentes (sintático, semântico, pragmático).

Halliday e Hasan (1976 apud NEVES, 2011a) definem a conjunção (junção) como um processo textual coesivo, como uma relação semântica pela qual se especifica a conexão que existe entre o que vem depois e o que vem antes em um enunciado. A articulação de orações estabelece um conjunto de relações semânticas entre orações, entre complexos oracionais e trechos de texto que podem ser expressos por diferentes estratégias, e não apenas pelo uso de conjunções.

Na visão tradicional, segundo a autora, a relação entre as orações é resolvida na definição de coordenação e subordinação:

 Coordenação: quando as orações que se articulam são sintaticamente

independentes, isto é, nenhuma oração que forma o período desempenha função sintática em outra;

 Subordinação: quando, na formação do período, uma oração exerce função sintática em outra, que é considerada principal. A oração dependente exerce as funções de sujeito, objeto direto, objeto indireto, complemento nominal, predicativo, aposto e agente da passiva. Nesse caso, as orações são classificadas como substantivas. Quando exercem a função de adjunto adnominal, se classificam como orações adjetivas e, quando têm a função de adjunto adverbial, são chamadas orações adverbiais.

Neves (2011a) relembra a crítica que os pesquisadores de orientação funcionalista fazem à classificação tradicional. Segundo esses pesquisadores, o rótulo subordinação não deveria ser indiscriminadamente aplicado a um grupo que abriga orações de natureza tão diferentes, como as substantivas e as adverbiais, sob a característica de serem construções nas quais uma oração exerce função sintática em outra. Nogueira (2010a) faz uma crítica semelhante à Gramática Tradicional ao afirmar que a sintaxe tradicional trata a articulação de orações numa relação dicotômica entre coordenação e subordinação, ou seja, definindo esses dois termos como características de orações independentes e dependentes, respectivamente. Mais ainda, segundo ela, enquanto o ensino tradicional enfatiza a classificação das orações com base na memorização dos conectivos que as introduzem, as propostas funcionalistas chamam a atenção para as relações textual-discursivas que emergem nesse processo de construção dos sentidos do texto.

Para abordar o tema da formação dos enunciados complexos a partir de uma perspectiva funcionalista, Neves (2011a) apresenta, como base teórica, as propostas de alguns autores, entre os quais se destacam Dik, Halliday , Givón, Matthiessen e Thompson.

De acordo com o modelo de articulação de orações de Dik (1989; 1997, apud NEVES, 2011a), os termos (ou argumentos) compõem com o predicado a predicação nuclear, que é expandida por operadores (meios gramaticais) e por satélites (meios lexicais) de nível 1. Essa predicação (denominada central), por sua vez, é novamente expandida por operadores e por satélites, de nível 2. A predicação resultante (denominada estendida) recebe os satélites de nível 3, formando a proposição. Essa é, por fim, modificada pelos satélites de nível 4, que especificam o ato de fala. Assim, os argumentos (orações substantivas) e satélites (orações adverbiais) constituem elementos de natureza completamente diferente e desempenham diferente papel na organização do enunciado: enquanto as orações chamadas substantivas (argumentos) já fazem parte da predicação nuclear desempenhando um papel semântico determinado pela natureza do predicado, as orações adverbiais (satélites) são opcionais e incidem sobre a predicação já formada, em todos os níveis.

De acordo com a proposta Halliday (1985, apud NEVES, 2011a), a organização dos blocos enunciativos complexos se faz a partir da conjugação de dois eixos que são:

a) o sistema tático, que é relativo à interdependência entre os elementos. Esse sistema se expressa em parataxe (relação entre elementos de igual estatuto) e hipotaxe (relação entre elementos de diferente estatuto);

b) o sistema lógico-semântico, que se refere à relação entre os processos, desvinculada do modo de organização e de estruturação do enunciado. Esse sistema se realiza por uma expansão ou por uma projeção, de uma oração sobre a outra. O processo de expansão se dá por elaboração, por extensão ou por realce. Na expansão por realce se localizam as orações adverbiais. Mas as relações entre uma oração adjetiva restritiva ou uma completiva e sua principal ficam fora do eixo tático por não serem relações nem de parataxe, nem de hipotaxe. São mecanismos de constituência, de encaixamento.

As relações entre as orações na proposta de Matthiessen e Thompson (1988 apud NEVES, 2011a; NOGUEIRA, 2010b) são vistas a partir da organização do discurso. Para esses autores, a articulação das orações reflete a organização retórica do discurso. Eles distinguem dois tipos de relação retórica, a saber: as de lista, quando nenhum membro de um par de orações é auxiliar de outro; e as relações do tipo núcleo-satélite, quando uma oração é auxiliar de outra dentro do período composto. Essas mesmas relações se refletem na produção e na compreensão dos sentidos do texto no qual algumas partes são consideradas centrais,

enquanto que outras são auxiliares ou complementares. As orações adverbiais da classificação tradicional são consideradas como expansão de realce no eixo semântico-funcional da proposta de Halliday. Matthiessen e Thompson (1988 apud NEVES, 2011a) consideram que as relações expressas pelas orações adverbiais (como as de causa, condição, concessão, etc.) são relações retóricas que existem entre quaisquer partes de um texto, tanto na relação de listagem (ou parataxe: nenhum membro é subordinado), quanto na relação núcleo-satélite (correspondente à hipotaxe: um membro do par é auxiliar do outro). Hopper e Traugott (1993 apud NEVES, 2011a) propõem um continuum, num percurso que vai da subordinação (dependência e encaixamento) à parataxe (não dependência e não encaixamento), passando pela hipotaxe (dependência, mas não encaixamento). Nesse último tipo de relação, se encontram as orações as adverbiais. A autora destaca ainda o pensamento de Givón, que também admite um continuum na hierarquia de integração de orações, negando a existência de uma simples fronteira rígida entre coordenação e subordinação. Além disso, afirma que nenhuma oração é totalmente independente de seu contexto oracional imediato, existindo uma relação icônica entre a integração das orações e a integração dos eventos.

Todas essas propostas de tratamento do tema da articulação das orações na formação de enunciados complexos podem favorecer uma mudança na maneira tradicional de abordar essa questão a qual se restringe à análise sintática de frases descontextualizadas, com base na memorização de conectivos (geralmente conjunções) para reconhecer e classificar as orações em coordenadas ou subordinadas. Esse tipo de análise pouco contribui para explicitar as relações semânticas e textual-discursivas decorrentes da maneira como o enunciador escolhe articular orações para produzir sentidos, pois se trata de uma análise restrita à estrutura das sentenças, sem levar-se em conta também as relações que produzem sentidos e ultrapassam esses limites frasais, pois se inserem no contexto maior da atividade discursiva.