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2 FUNCIONALISMO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

2.2 As categorias da língua em uso: processos básicos de constituição dos

2.2.2 O processo de referenciação e a compreensão de textos

A referenciação consiste na atividade de construção de referentes dentro do universo discursivo. Ao compor seus enunciados numa interação comunicativa, os interlocutores escolhem introduzir no discurso certos objetos que são representados por

determinadas expressões linguísticas e a esses objetos se reportam ou não conforme suas intenções comunicativas. Esses objetos de discurso são os termos das predicações e formam no texto uma rede referencial que constitui a própria base da textualidade. Trata-se, portanto, de um fenômeno textual-discursivo importantíssimo para a produção e compreensão dos sentidos do texto, pois é por meio dos diferentes processos referenciais que podemos garantir a própria coesão textual e a progressão temática. O fluxo de informação no texto é dirigido pela progressão referencial que se realiza pela introdução de novos referentes, identificação e preservação desses referentes enquanto forem relevantes, bem como reintrodução e retomada desses referentes textuais. É através dessa progressão referencial que se consegue a manutenção e progressão tópica e a organização da informação no processo de produção e compreensão textual.

Neves (2011a) dedica um capítulo ao estudo da referenciação intitulado

“Referenciar Ou: A criação da rede referencial na linguagem”. Nesse capítulo, a autora

descreve dois modos de fazer referência textual: o construtivo e o identificador. No modo construtivo, o falante usa um termo para que o ouvinte construa um referente desse termo e o introduza no seu modelo mental. Já no modo identificador, o falante usa um termo que leve o ouvinte a identificar um referente que já esteja, de alguma maneira, disponível no contexto da interação.

O processo de referenciação não se reduz à simples construção e identificação de objetos da realidade ou substituição de uma expressão referencial por outra. Esse processo se refere à própria constituição do texto como uma rede referencial na qual os referentes são introduzidos e mantidos como objetos de discurso. Os referentes não são objetos do mundo real, mas construções (representações) mentais que podem se referir tanto a objetos do mundo real quanto a objetos do universo discursivo construído e negociado entre os interlocutores em interação.

Ao discutir a noção de referência e outros conceitos correlatos, Neves (2011a) expõe a concepção de referência de Lyons a qual se fundamenta na relação entre uma expressão referencial e o que ela significa em certas ocasiões particulares do discurso. Nessa concepção, a expressão linguística tem seu referente, mas é o falante que faz a referência quando usa a expressão referencial. Importa, pois, saber a que o falante se refere quando usa tal expressão, e não a expressão em si. Por isso mesmo, uma referência bem sucedida não depende da verdade contida na expressão referencial, já que o referente é uma representação mental. Entra em cena a intenção do falante de se referir a algum referente e não a outra expressão linguística, conforme seus propósitos comunicativos. Na discussão da relação de

referência entre o mundo real e o mundo construído no discurso, a autora argumenta assim:

“A comunicação se refere, pois, a estados, eventos, indivíduos que fazem parte do mundo

construído no discurso, não importando a existência ou não das coisas desse mundo no mundo

real.” (NEVES, 2011a, p.80).

Considerando a referenciação como um fenômeno que se relaciona com os objetos de discurso e não com os objetos do mundo real, Neves (2011a) analisa o conceito de referencialidade e afirma que uma referenciação textual é bem sucedida quando o ouvinte identifica o referente do discurso no ponto em que essa identificação é necessária e quando o falante a deixou acessível. Nesse processo, a autora aponta duas propriedades da referencialidade no discurso: a identificabilidade e a acessibilidade.

Com base em Chafe, Neves (2011a) cita três componentes da identificabilidade, a saber: a) o falante julga que o conhecimento do referente a que faz alusão já é compartilhado com o ouvinte; b) o falante usa uma linguagem com um rigor suficiente para que os referentes compartilhados por ele e o ouvinte reduzam-se ao que está em questão; c)o falante julga que o referente em questão é o mais saliente da categoria no contexto.

No tocante à acessibilidade, Neves (2011a) retoma as ideias de Dik sobre as fontes da disponibilidade de referentes: a) a informação de longo termo que partilham os interlocutores; b) informação já explicitamente representada no texto; c) inferência do referente com base em informação disponível na situação comunicativa. Outro conceito definido pela autora é a correferencialidade, que significa a identidade entre um termo (antecedente) introduzido no discurso para expressar um determinado referente e uma expressão (anáfora) que retoma esse mesmo referente.

No capítulo sobre referenciação, Neves (2011a) descreve ainda dois processos de retomada de referentes que são a nominalização e a anáfora associativa. A nominalização consiste em referenciar por meio de um sintagma nominal um processo ou estado já expresso anteriormente por uma oração. A autora destaca os casos de nominalização em que se usam termos linguísticos para expressar nomes de atividades linguísticas ou discursivas e nomes de entidades linguísticas ou metalinguísticas. Quando usamos um sintagma nominal para referenciar uma entidade do discurso não representada no texto, devendo essa entidade ser inferida a partir de outro referente disponível no contexto, temos uma anáfora associativa. Nesse caso, apresenta-se um referente como já conhecido embora não tenha sido explicitamente introduzido no texto.

Neves (2011a) chama a atenção para o fato de que anáfora textual é mais do que a retomada referencial, pois o texto se insere no universo do discurso e é isso que permite a

possibilidade de retomadas anafóricas de referentes que, embora não estejam explícitos no texto, estão implicados no contexto discursivo. Parece oportuno lembrar aqui que os processos referenciais desempenham várias funções não apenas textuais, mas discursivas. De acordo com CAVALCANTE (2012), esses processos servem, entre outras coisas, para organizar a informação, introduzir novos referentes e retomá-los a partir do texto ou do contexto discursivo, dotar o texto de coerência, manter a progressão tópica e ativar a memória do interlocutor.

Foi dito antes que uma referência bem sucedida não depende da verdade contida na expressão referencial, pois se trata de uma relação com objetos do mundo discursivo, não do mundo real, extramental. No entanto, ao se retomar um referente, os interlocutores devem verificar como esse referente é construído, isto é, se tal referente aponta para objetos de existência real no mundo físico ou para objetos do universo discursivo.

A atitude do enunciador em relação ao conteúdo dos enunciados diz respeito ao que se chama modalidade na linguagem. Esse aspecto da constituição dos enunciados será analisado a seguir.