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A forma escolar: quadro histórico e político da instituição escolar

CAPÍTULO I – RELAÇÃO EDUCATIVA

1. Ecossistema da relação educativa

1.1. A forma escolar: quadro histórico e político da instituição escolar

As práticas educativas foram desde sempre configuradas pela organização da escola que, por sua vez, não deixa de se moldar pelo contexto sociocultural (Barroso, 1995). Não obstante as mudanças ao nível das finalidades, dos conteúdos e das abordagens pedagógicas, a escola de hoje mantém traços vincados da sua organização clássica, cuja génese importa conhecer para um entendimento mais claro da matriz estrutural e tecnológica da escola, da pedagogia e da relação educativa propriamente dita. De facto, o sistema administrativo e organizativo da escola e a unidade-padrão em torno da qual se configura a escola têm-se redefinido conforme o modo de ensino vigente.

Como Nóvoa1 explica, a estrutura e organização pedagógicas que influenciaram

profundamente o modelo escolar atual remontam ao século XVII, ainda no seio das congregações religiosas, onde é criada uma cultura escolar pautada por normas que definem saberes e comportamentos a ensinar e a inculcar e por práticas que operacionalizam a sua transmissão e incorporação por um grupo de alunos. Durante este período concretiza-se a existência de um espaço físico destinado à escola, separado da família e do mundo do trabalho – um edifício mobilado e equipado para o propósito da escolarização – e é estruturado um curso por níveis progressivos de conhecimentos, destinados a serem

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transmitidos por um grupo profissional específico a jovens agrupados por faixa etária e saberes (Nóvoa, 2005).

A passagem de uma pedagogia individual para o ensino coletivo não se desliga da referência do ensino individual, caracterizado pela relação dual entre mestre e discípulo, que Barroso (1995) entende ser o arquétipo da organização escolar. De facto, a necessidade de ensinar em simultâneo um número elevado de crianças obriga à reconfiguração da relação educativa, pela impossibilidade de manter a tipologia do ensino individual direto. Assim, a relação professor/aluno passa a ser «mediatizada por uma organização pedagógica», caracterizada pela divisão de alunos, matérias, tempos e espaços, num modelo escolar que se consolida entre os séculos XVII e XVIII e que mais tarde, aquando da estatização do ensino primário, não sofre alterações significativas no que diz respeito a estes traços estruturais (Barroso, 1995:115).

Ao longo do século XIX, acompanhando o projeto sociopolítico dos Estados- Nação, a escola de massas vem responder à necessidade de criação de uma cidadania nacional e transforma-se num forte aparelho ideológico de homogeneização cultural e nacionalista, num espaço de exercício da violência simbólica mandatada pelo Estado (Nóvoa, 2014). De facto, conforme nos diz Bourdieu (2001), a ação pedagógica como encarnação de uma coação – cuja força simbólica, dissimuladamente, impõe, naturaliza e legitima um determinado arbítrio cultural – é uma das peças principais do mecanismo de reprodução das relações de poder presentes na estrutura social, alimentando uma cultura social dominante a partir de uma cultura escolar legitimada.

A estatização do ensino primário e o investimento dos Estados na expansão e consolidação da instituição escolar requerem um modelo de organização pedagógica que inclua critérios de rentabilidade e eficácia, que cumpram os objetivos de difusão e uniformização da educação moral e de um corpo de conhecimentos e práticas de progresso. A escola de massas, orientada pelo compromisso entre a dimensão pedagógica e educativa e as exigências políticas e económicas, impulsiona a consolidação de um modelo organizativo que permitiria instruir muitos alunos com poucos recursos materiais e humanos. É

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nesta conjuntura que é pensado e posto em prática o ensino mútuo (cf. Figura 2), cuja divisão do trabalho por monitores2 cria uma rutura na relação direta entre

o professor e os alunos (Barroso, 1995; Nóvoa, 2005). Os traços estruturais do ensino mútuo tecem a matriz da organização escolar atual, nomeadamente o planeamento metódico do espaço e do tempo, a decomposição e hierarquização dos saberes e os dispositivos de vigilância, aspetos destacados pela análise foucaultiana (Barroso, 1995; Foucault, 1999).

É de salientar que este formato teve implicações também ao nível da arquitetura escolar, sendo que, para além da regulamentação do espaço interior, o edifício

2 O ensino mútuo implicava a seleção de alunos mais graduados e instruídos para ensinar grupos de alunos

de níveis anteriores, possibilitando uma economia no número de professores necessário para fazer face às centenas de alunos de diferentes níveis de ensino, que eram instruídos em simultâneo no mesmo espaço físico (Barroso, 1995a).

Figura 2 - Ensino mútuo

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era pensado de forma a limitar a relação da sala de aula com o exterior, tipologia conservada até hoje em grande parte do património arquitetónico escolar português (Barroso, 1995; Nóvoa, 2014). Aliás, para Estrela (2002), o espaço é um dos principais condicionantes da relação pedagógica, uma vez que a forma como está arquitetado define limites, papéis, estatutos, hierarquias, normas e valores, que, pelo tipo de apropriação que os sujeitos fazem dos espaços, influenciam o tipo de relações interpessoais que se estabelecem na escola e na sala de aula. Tendo como referência a escola tradicional, a autora declara que «em poucas áreas de actividade humana o direito de território é tão evidente», com «muros que separam a escola do mundo», «áreas de circulação restrita» e «espaços reservados aos professores», onde a organização espacial era projetada para servir o propósito de preservação do «território professoral» e ajudar ao fortalecimento da ordem estabelecida (Estrela, 2002:42).

Apesar de o ensino mútuo ter constituído uma fase transitória de curta duração, foi já dito que algumas das suas características foram de tal forma consolidadas que sobreviveram até aos dias de hoje. Todavia, este modo de ensino pecava pelo mecanicismo e pela perspetiva utilitária da educação. As críticas apontavam também o caráter hierarquizante e fiscalizador que se impunha entre os alunos e rapidamente se levantou um debate que acabou por conduzir a soluções organizativas alternativas, nomeadamente a escola graduada3 (Barroso, 1995).

Assim, na segunda metade do século XIX, dá-se uma evolução definitiva do modo de ensino simultâneo. Num movimento animado por pedagogos e professores, reconhece-se a centralidade da relação direta entre o professor e o aluno e a escola passa por uma complexificação organizativa e administrativa (Barroso, 1995). Ainda num modo de organização pedagógica orientado pelo princípio de “ensinar a muitos como se fossem um só”, os alunos são divididos em grupos mais ou menos homogéneos em função dos conteúdos curriculares e da faixa etária, cada um com o seu professor. Constitui-se, assim, a classe – a unidade nuclear a partir da qual se passa a organizar e administrar a escola (cf. Figura 3).

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Com a escola graduada de várias classes surge a departamentalização das matérias, originando o nascimento das disciplinas, a afetação dos professores a matérias de especialização e a emergência de um estatuto profissional técnico- pedagógico dos docentes, formados em escolas normais (Barroso, 1995; Nóvoa, 2014). Ainda na lógica da homogeneização moral e cultural, o modelo generaliza-se, assegurando a formatação e preparação para a sociedade e a progressão sistemática das crianças na aprendizagem escolar (Nóvoa, 2014). A emergência do sistema escolar estatal conforme o conhecemos deve-se a um conjunto de transformações políticas e culturais, que incluem a secularização da moral e a eclosão da revolução industrial como dois dos ascendentes incontornáveis para o seu surgimento. A perspetiva da escola como dispositivo de socialização imposto pelo Estado às populações reconhece-lhe um papel sem igual na afirmação dos Estados-Nação. Trindade (2009) lembra ainda que este é um acontecimento que, por estar inscrito na visão da modernidade, é alicerçado na tríade Indivíduo/Razão/Estado, que veio mergulhar a escola na ideologia do progresso (validado pela verdade que procede da razão e da ciência), nos ideais de justiça e igualdade e nos valores da autonomia e da liberdade do indivíduo. A escola de massas desenvolve-se no final do século

Figura 3 - Modo simultâneo: Classe

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XIX, como via eficaz de difusão e uniformização do conhecimento e de práticas de progresso, e vem assim contribuir para a estabilização de aspetos organizativos e administrativos que regulam e consolidam processos e práticas pedagógicas e para a naturalização desta “gramática da escola” que é, como se sabe, uma construção cultural (Barroso, 1995; Nóvoa, 2014).

A escola configura-se, então, como uma instituição altamente comprometida com o projeto político da modernidade, “fabricando” o indivíduo moderno, desde logo pela imposição de um currículo que institui qual é o saber legitimado como socialmente útil que cada um deve aprender para interpretar e agir no mundo de uma determinada maneira (Estrela, 2002). A transmissão e apropriação eficazes deste currículo pressupõe que haja um mediador entre o aluno e a informação (o professor) e que haja um processo de transmissão intencionalmente organizado. Esta intenção vem justificar a tecnologia da sala de aula baseada: nas classes de alunos, de forma a permitir o ensino simultâneo e uniforme; na despersonalização dos saberes, para que os conteúdos sejam programáveis; e no controlo metódico e sistemático dos resultados (Barroso, 1995; Trindade, 2009). A escola vem a ser, então, marcada por uma normatividade pedagógica que se coaduna com o paradigma da instrução e que, como destaca R. Trindade (2009), determina gestos, rigidifica as relações de mediação e objetiva a realidade, cumprindo os propósitos da instrução, da disciplina e da reprodução social (Bourdieu, 2001). A expressão “socialização metódica”, de que nos fala Durkheim, sugere a ligação íntima da organização da escola às finalidades da educação, nomeadamente à inculcação de normas e valores e ao estabelecimento de uma estrutura e racionalização da ação pedagógica, quase coincidente, a dada altura, com o modo de organização do trabalho industrial (Barroso, 1995). Efetivamente, a forma escolar está fortemente construída à volta da gestão do espaço e do tempo, com o objetivo de domesticar o corpo e, assim, disciplinar os indivíduos pela formatação de pensamentos e comportamentos (Foucault, 1999).

Se, por um lado, o encaminhamento da escola graduada para a autonomização dos processos organizativos e administrativos acaba por se sobrepor ao processo pedagógico e por conduzir a uma burocratização da pedagogia

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(Barroso, 1995) e ao cumprimento formatado de diretrizes reguladoras do Estado, por outro lado, a escola de massas veio introduzir mudanças marcantes no século XX, transformando as sociedades, ganhando «a luta secular contra o trabalho das crianças e dos jovens», reconfigurando as formas de viver em família e em sociedade (Nóvoa, 2014:174).

No final do século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX, as mudanças epistemológicas e sociais da época vêm abalar, necessariamente, o sistema educativo. A crise da escola graduada e do paradigma da instrução é desencadeada pelas críticas à excessiva racionalização do ensino em torno do constructo da classe e da importação de modelos de divisão do trabalho das organizações industriais, com os pedagogos a alertarem para a necessidade de ter em conta a especificidade da cultura escolar e de organizar a escola em função dos alunos (Barroso, 1995).